Em áudio, coordenador da Funai promete liberação de garimpo em terras indígenas

Segundo militar que coordena regional de Barra do Garças (MT), medida está sendo estudada pelo presidente do órgão, Marcelo Xavier

por Marcos Hermanson Pomar, João Peres e Tatiana Merlino, em O Joio e o Trigo

O coordenador regional da Funai de Barra do Garças (MT), capitão da reserva Álvaro Carvalho Peres, afirmou, em reunião fechada, que o presidente do órgão, Marcelo Xavier, pretende editar instruções normativas legalizando o garimpo e a extração de madeira em terras indígenas.

“Presidente Marcelo [Xavier] está em estudo, com muita luta, de duas instruções normativas. Uma que permite o indígena fazer o manejo florestal, vender a madeira, cultivar a madeira. E a segunda é o garimpo em terra indígena, que já existe hoje de forma irregular”, diz ele em gravação obtida com exclusividade pelo Joio.

As declarações foram dadas em uma reunião entre servidores de alto nível da Funai e indígenas ligados ao projeto Independência Indígena – que desenvolvem, junto a fazendeiros vizinhos, plantio de soja, milho e arroz dentro da Terra Indígena Sangradouro, no leste de Mato Grosso.

Além de Peres, responsável por coordenar as atividades da Funai em seis terras indígenas da etnia Xavante, estavam presentes o coordenador de Promoção à Cidadania da Funai, Tenente Coronel Jorge Claudio Gomes, o superintendente de Assuntos Indígenas do Governo do Mato Grosso, Agnaldo Santos, e indígenas ligados à cooperativa Cooigrandesan, criada para viabilizar o projeto de lavoura mecanizada em Sangradouro.

A Funai foi procurada através de sua assessoria de imprensa para comentar as declarações, mas não encaminhou resposta até a publicação da reportagem.

“Então, esse negócio de cooperativas, chefe, está crescendo”, afirma Peres, em outro momento da gravação. “E é isso aí que o indígena quer. Indígena não quer mais a roça de toco, não, eles ficarem no sol com a enxada, não. Ele quer é o maquinário, ele quer a colheitadeira, ele quer a plantadeira, ele quer o trator.”

O encontro foi realizado no dia 23 de agosto, em um galpão da Cooigrandesan, e durou cerca de três horas. O objetivo era discutir a multa e o embargo impostos pelo Ibama, em julho, aos fazendeiros ligados à lavoura, por desmatamento ilegal e construção de empreendimentos potencialmente poluidores em área protegida.

O Coronel Fernando Fantazzini Moreira, diretor de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai – um dos cargos mais altos do órgão – participou da segunda parte da reunião. Ele e Gomes se deslocaram de Brasília a Cuiabá de avião, e depois de carro até Sangradouro, numa viagem que dura em média quatro horas.

Na ocasião, os dois se comprometeram a produzir documentos atestando que a área embargada já estava antropizada – ou seja, já havia sido desmatada antes da abertura da lavoura – e a abrir negociações com o Ibama para derrubar as sanções. Como o Joio revelou em setembro, a área técnica da Funai de Barra do Garças mostrou que apenas 20% da área da lavoura sofreu ação humana antes do início do projeto.

Alvo fácil

Durante a reunião, representantes de organizações não governamentais (ONGs), servidores de carreira da Funai e lideranças indígenas que se opõem ao Independência Indígena foram apontados mais de uma vez como os culpados pela multa e pelo embargo.

“O Álvaro tem sido um guerreiro, porque além de ele ser o coordenador lá de Barra do Garças, ele é o motorista, é tudo na vida, entendeu? Ele fez a correria e tem tido muito problema com os concursados de Barra [do Garças]”, argumentou Agnaldo Santos, superintendente de Assuntos Indígenas do Governo do Mato Grosso.

Em julho, Santos admitiu ao Joio que o projeto Agro Xavante, de Sangradouro, é muito próximo de um arrendamento em terra indígena, prática vedada pela Constituição: “É tipo um arrendamento, só que os indígenas estão lá dentro, trabalhando”, disse ele em entrevista à reportagem.

Garimpo

Em 2020, o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 191, que abre espaço para atividades de mineração em terras indígenas e coloca a Funai na posição de mediadora entre comunidades indígenas e empreendedores – prevendo também compensação financeira e participação das comunidades nos lucros.

“Esse projeto não é impositivo”, declarou o presidente Jair Bolsonaro durante visita a uma estação de garimpo ilegal na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), em outubro do ano passado. “Se vocês quiserem plantar, vão plantar. Se vão garimpar, vão garimpar. Se quiserem fazer algumas barragens no vale do rio, vão poder fazer.”

Em entrevista à Rádio Jovem Pan em agosto, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, também defendeu a liberação da mineração nas TIs: “A vontade da mineração em terras indígenas é do Constituinte originário, ele colocou isso na Constituição. Desde 1988 não é cumprida”.

Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, “a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só pode ser efetivada com autorização do Congresso Nacional”. O texto constitucional define que os povos indígenas têm “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

Ouvida sob sigilo, uma fonte que atuou na Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Social (DPDS) da Funai de Brasília durante a gestão Xavier lembrou que a autarquia estava trabalhando em uma instrução normativa de liberação do manejo florestal nas terras indígenas.

O ex-servidor da DPDS afirma, no entanto, que o entendimento geral dentro do órgão na época era de que a liberação de garimpo seria diferente, pois dependeria da aprovação de uma lei complementar no Congresso Nacional.

A informação de edição de uma instrução normativa sobre extração de madeira consta no dossiê “Funai – Fundação Anti Indígena”, publicado em junho pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e pela ONG Indigenistas Associados (INA), que reúne funcionários da Funai. O documento é uma denúncia à gestão da Fundação durante o governo Bolsonaro.

O presidente da INA, Fernando Vianna, disse ao Joio que não se surpreenderia caso a cúpula da Funai tentasse editar uma instrução normativa liberando não só a extração de madeira, mas também o garimpo em terras indígenas. “Seria algo bastante polêmico, mas se encaixaria nessa tendência mais geral de infralegalismo autoritário que tem sido a marca do governo Bolsonaro”, afirmou.

O termo “infralegalismo autoritário” faz referência à edição de instruções normativas, portarias e outros atos normativos que buscam dar aparência de legalidade a práticas que são inconstitucionais ou ilegais.

Um exemplo seria a Instrução Normativa Conjunta nº1 Funai/Ibama, editada em 2021, que permite que empreendimentos econômicos em terras indígenas fiquem isentos de licenciamento ambiental – na prática abrindo espaço para o arrendamento desssas terras, o que é ilegal.

Para o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo de Oliveira, a atual administração da Funai tem se excedido na edição de normas infralegais que vão, em sua opinião, contra os direitos dos povos originários.

“É mais um absurdo e mais uma arbitrariedade da atual direção da Funai com relação aos direitos indígenas”, disse ele à reportagem. “O Cimi é totalmente contrário [à edição de uma instrução normativa que libere o garimpo em terras indígenas] e considera que esse procedimento é ilegal e representa uma violência contra os povos indígenas, na medida que permite que os territórios sejam totalmente desprovidos de vida, inviabilizando a existência das gerações presentes e futuras.”

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