Militares, poder e ditaduras: longe da tentação. Por Rosa Freire d’Aguiar

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Nos anos em que cobri a redemocratização da Espanha, desde a morte de Franco em 1975 até a eleição do socialista Felipe González, em 82, a questão militar era um tema onipresente. A ditadura de Franco durou 40 anos, as Forças Armadas — especialmente o Exército — estavam coalhadas de oficiais de alta patente medularmente franquistas e de ultradireita.

Os dois primeiros governos pós-Franco fizeram grandes reformas, votaram a nova Constituição, mas não conseguiram avançar no front militar. Resultado: em fevereiro de 1981 um alucinado tenente-coronel da Guardia Civil (este aí abaixo) invadiu o Parlamento, de arma em punho, tendo a seu lado 150 soldados, e pôs todos os parlamentares no chão, literalmente, exigindo, para soltar os reféns, que o Exército tomasse o poder.

Cheguei a Madri na manhã seguinte ao golpe e tremi ao conversar com um grupo de velhos exilados que, já de passaporte no bolso, e diante do Parlamento, temiam que os militares voltassem ao poder, obrigando-os a mais um exílio. O receio não era infundado: desde a morte de Franco tinha havido uma dúzia de estados de alerta e sedições potenciais nos quartéis, finalmente abafados.

Tudo isso mudou a partir de 1982, quando Felipe González foi eleito. Seu ministro da Defesa, o economista Narcis Serra, promoveu uma profunda reforma militar que, em poucos anos, afastou de vez a tentação golpista dos militares.

A ideia de González era formar um Exército mais moderno, mais reduzido e mais operacional.

A reforma teve três eixos principais:

(1) enterrar de vez a noção de “inimigo interno”, que identificava as correntes de esquerda em todos os seus matizes. Dentro da pátria não há inimigos; inimigos são os que estão más allá de la frontera, e podem ameaçar a pátria; sai o conceito de “inimigo interno”, entra o de “defesa nacional”. Eram essas as diretrizes.

(2) rever de alto abaixo o ensino militar. Multiplicaram-se os contatos entre alunos e professores militares e civis. Lançaram-se programas para levar professores universitários às academias e, inversamente, jovens cadetes às aulas de história e ciências sociais nas universidades. O currículo das academias, que era elaborado apenas por chefes do Estado-maior, passou a ser definido em acordo com o Ministério da Defesa. Simbolicamnte, aboliu-se a disciplina “Guerra civil: cruzada contra o comunismo”.

(3) remover das chefias os militares franquistas. Este foi sem dúvida o eixo mais difícil e o mais caro da reforma, pois o governo teve de bancar, com polpudas indenizações, o afastamento de centenas de oficiais superiores. Sob Franco não havia reforma compulsória, e a Espanha tinha 1300 generais , número maior do que o de todos os exércitos da Europa ocidental. A reforma reduziu pela metade o total de generais, e diminuiu de 250 mil para 90 mil os efetivos do Exército. As promoções passaram a obedecer a critérios profissionais e não apenas de antiguidade.

A reforma ainda incluiu mudanças profundas na Justiça Militar, na disciplina dos quarteis etc.

reciclagem deu certo. Muito hábil e prudente, Felipe González neutralizou o antagonismo de um Exército que ainda era dado a espasmos golpistas.

Gonzalez era desses que afirmavam, com razão, que com militares ou se manda ou se obedece. (sub-texto: nada de contemporização).

E lembro de um grande intelectual espanhol que repetia à exaustão: Civilização vem de civil.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Zelik Trajber.

Comments (2)

  1. Obrigada pelo texto. Deixo aqui minha ponderação:
    “Dentro da pátria não há inimigos; inimigos são os que estão más allá de la frontera” – Bem, lá teve guerra civil e isso diz muito sobre desarmar o exército e de seu consentimento sobre depor as armas. Mas, lá não houve imediatamente a extinção do franquismo. Quando moramos em Madri em 2003, um pequeno grupo de franquistas protestava na nossa rua diante da estátua de Franco, as que ainda existiam diante de prédios públicos e eram, na cidade do Franquismo, ainda muito presentes nos anos 2000.. Discutia-se tirar as estátuas do espaço público.
    Uma dessas estátuas equestres, em que Franco podia ganhar alguma altura (baixinho que era), estavam cercadas do que chamavam “das viúvas” do franquismo, em vigíllia. Elas, viúvas e viúvos de Franco, ainda estão à solta e atendem no partido PP de Aznar por longa década e depois por um partido absurdo de extrema direita (o VOX). Sempre pode piorar, mesmo sem o ETA.
    A Espanha nunca conseguiu fazer uma reparação aos desaparecidos do período do Franco, mesmo especialistas deles nesse tema invejam a transição na Argentina. Todos os passos da reparação foram movidos pelo estado e aí, diferente da Argentina, não desemperraram uma porta velha trancada. Inclusive nas portas do monastério de Franco, construído pelas mãos e pelo sangue de presos políticos durante o período franquista, ainda segue operante como lugar de turismo e continua recebendo protestos por não ter se tornado um lugar de memória da ditadura e, sim, ainda reverencia a Franco.
    O que quero dizer é que de longe tudo é lindo. Mas a extrema direita não é “nacional”, é um movimento mais espesso que exige vigilância sobre como aparece e reaparece em um e outro canto do globo.
    Enfim, como não esquecer que Felipe Gonzalez, eu gostava tanto dele… embarcou rapidamente para a Venezuela para “defender a democracia” de Guaidó, subindo no cavalo do lado errado da história? Sejamos vigilantes com o fascismo, ele é bem volátil.

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