O que dizem as atas secretas sobre a compra de vacinas

Grupo de trabalho para coordenar a compra de vacinas só foi criado seis meses após início da pandemia

Por Alice Maciel, Rubens Valente, Caio de Freitas Paes, Laura Scofield, Matheus Santino, Bianca Muniz, Thiago Domenici, Agência Pública

O comitê de crise, criado no governo de Jair Bolsonaro (PL) para supervisionar e monitorar os impactos da Covid-19, esperou passar seis meses de pandemia para formar um Grupo de Trabalho para coordenar a aquisição e distribuição de vacinas contra o vírus. O GT foi oficialmente instituído em 9 de setembro de 2020, mas a primeira reunião entre seus membros só aconteceu um mês depois, em 8 de outubro. Naquele dia o Brasil já contabilizava 149 mil mortes e registrava mais de cinco milhões de infectados.

As informações sobre a atuação do GT de vacinas constam nas atas de 233 reuniões sigilosas realizadas entre diversos ministérios e órgãos no Palácio do Planalto, sob a coordenação da Casa Civil, então chefiada pelo general da reserva Walter Braga Netto. Na memória dos documentos há registros de apenas três encontros do Grupo de Trabalho. Além do dia 8 de outubro, outro em 27 do mesmo mês e em 27 de novembro.

Os documentos inéditos aos quais a Agência Pública teve acesso mostram ainda que até outubro de 2020 não havia empenho do governo federal para a compra e produção de vacinas. A aquisição dos imunizantes foi pauta de apenas cinco dos 101 encontros que ocorreram entre 17 de março – data da primeira reunião do comitê – e 7 de outubro.

Ao menos desde julho de 2020, no entanto, o Ministério da Saúde já recebia ofertas para a compra de imunizantes contra a Covid-19. Conforme ficou comprovado pela CPI da Pandemia no Senado, o Executivo ignorou diversas propostas das farmacêuticas, que teriam salvado vidas.

Foi apenas em 2 de setembro de 2020 que o Subchefe Adjunto da Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil, Ronaldo Navarro, encaminhou para análise dos membros do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP) a resolução que posteriormente iria instituir o “Grupo de Trabalho para a coordenação de esforços da união na aquisição e na distribuição de vacinas contra a Covis-19 (sic)”. O documento foi aprovado na reunião seguinte, dia 4, e em 9 de setembro foi publicado no Diário Oficial da União.

O GT tinha como competência “coordenar as ações governamentais relativas à aquisição, ao registro, à produção e à distribuição de vacina(s) com qualidade, eficácia e segurança comprovadas contra a Covid-19” e “colaborar no planejamento da estratégia nacional de imunização voluntária contra a Covid”. Relatórios quinzenais com informações atualizadas sobre as ações em curso tinham que ser enviadas ao Comitê de Crise, mas não há registros nas atas de informações sobre o conteúdo desses relatórios.

Comandado pelo Ministério da Saúde, chefiado à época pelo general Eduardo Pazuello, o grupo era composto por representantes de órgãos que compunham o CCOP.

O CCOP era formado por 26 órgãos federais, incluindo os principais ministérios, agências reguladoras, bancos públicos, a Polícia Federal e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência). A Pública teve acesso à memória escrita dos encontros realizados entre 2020 e 2021. O documento contém detalhes da gestão de Jair Bolsonaro sobre o combate à pandemia, que estão sendo revelados em uma série de reportagens desde 10 de fevereiro.

Pouco mais de um mês antes da criação do Grupo de Trabalho, em 12 de agosto, o Plenário do Tribunal de Contas da União (TCU) havia determinado que a Casa Civil apresentasse em 15 dias ações planejadas e indicações de riscos para a vacinação. Um plano com o Ministério da Saúde e secretarias estaduais de saúde também deveria ser apresentado em 60 dias.

O Primeiro Plano de Vacinação do governo foi entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 12 de dezembro de 2020.

O desinteresse do governo pela CoronaVac e Pfizer exposto 

A primeira vacina aplicada no Brasil, a CoronaVac – desenvolvida pela biofarmacêutica chinesa Sinovac e distribuída pelo Instituto Butantan – foi citada nas reuniões do comitê de crise pela primeira vez em 16 de janeiro de 2021, um dia antes da enfermeira Mônica Calazans ganhar a primeira dose em São Paulo.

O imunizante foi alvo de politização entre Jair Bolsonaro e o então governador de SP, João Doria. O ex-presidente chegou a dizer que não compraria vacina chinesa, atrapalhando as negociações em curso do Ministério da Saúde para a aquisição da vacina.

A primeira referência da CoronaVac no CCOP foi feita durante a reunião extraordinária em que a Subchefia de Articulação e Monitoramento (SAM/CC) descreveu o número de doses que o governo teria, caso a Anvisa autorizasse o uso emergencial da CoronaVac e da Astrazeneca, o que se confirmou em 17 de janeiro.

Em depoimento à CPI da Covid no Senado, o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, afirmou que fez a primeira oferta de 60 milhões de doses da CoronaVac ao Ministério da Saúde em 30 de julho de 2020 e a segunda em 8 de agosto, mas foi ignorado. Segundo ele, as vacinas teriam sido entregues no último trimestre daquele ano, caso o governo tivesse apresentado interesse.

Já a Pfizer, fez três ofertas ao governo brasileiro só em agosto de 2020, para a venda de 70 milhões de doses. Elas também seriam distribuídas no mesmo ano, mas a empresa, assim como o Butantan, não foi respondida pelo governo federal. Ao todo, foram 81 correspondências da Pfizer ao governo brasileiro, enviadas de 17 de março de 2020 a 23 de abril de 2021, das quais 90% não obtiveram respostas.

As ofertas ou interesse de compras pelas duas marcas de vacinas não aparecem na memória das atas do comitê de crise, ao contrário da Astrazeneca, fabricada na Índia. Das poucas referências nas atas do CCOP sobre a aquisição de vacinas antes de outubro de 2020, está a movimentação do Ministério da Saúde para comprar a Astrazeneca. Em 29 de junho de 2020, por exemplo, a pasta comunica ao comitê que havia anunciado dois dias antes “que vai firmar acordo de cooperação entre a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), Universidade de Oxford e AstraZeneca para o desenvolvimento tecnológico e acesso do Brasil à vacina para Covid-19”.

Conforme destacado no relatório final da CPI da Pandemia, apurou-se ao longo da investigação parlamentar, “que o governo federal centralizou sua atenção na vacina AstraZeneca, em de ampliar suas opções, para outros imunizantes como a CoronaVac, que tinha o Butantan como parceiro, a Pfizer, que tinha uma estrutura promissora para a produção de grande quantitativo de vacinas, a Jansen, que detinha a tecnologia de dose única, entre outros”.

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