ES: Guarani rebatem mentira inventada sobre sua presença no Caparaó

Parque e fazendeiros querem retirá-los de terreno doado para abrigar casa de reza e servir de apoio a rituais junto ao Deus da Montanha

Por Fernanda Couzemenco, Século Diário

Mais um capítulo da guerra declarada pelo Parque Nacional do Caparaó contra os Guarani se processa nesse início de 2023 e, novamente, inflamada por mentiras espalhadas por proprietários de terras declaradamente não afeitos à cultura indígena e que se empenham para intervir na decisão oficial de quem pode permanecer dentro da unidade de conservação ou no seu entorno, com suas construções e empreendimentos turísticos, e quem não pode.

Desta vez, a desinformação espalhada é a de que os indígenas querem tomar um terço da área do Parna para demarcar uma grande aldeia.

O cacique Werá Kwaray, da Tekoa Porã (Aldeia Boa Esperança), em Aracruz, norte do Estado, contesta e explica que o único desejo de seu povo é reconstruir a Casa de Reza (Opy) que foi incendiada no início do ano – fato ainda não apurado pelos órgãos competentes – e retomar a presença de algumas famílias que queiram firmar a Tekoá Yy Retxãkã (Aldeia Águas Cristalinas Sagradas) no local, um pequeno terreno doado no final dos anos 1990 por um grupo de amigos, entre eles o fundador de Século Diário, jornalista Rogério Medeiros, e que foi incorporado à área do Parque Nacional quando houve sua expansão para os atuais 31,8 mil hectares.

A intenção, ressalta, é que a Opy e a aldeia que a suporta sirvam também de apoio para os rituais sagrados feitos periodicamente, há mais de 20 anos, pelo pajé Guarani de Aracruz, Tupã Kwaray, junto ao Deus da Montanha, em incursões sagrada até o Pico da Bandeira.

A necessidade de diálogo com o Deus da Montanha foi revelada pela xamã Tatantin-Rua Retée, que guiou os Guarani até Aracruz, em busca da Terra Sem Males. Na Terra Indígena demarcada para sua gente e também para os parentes Tupinikim, no entanto, os ataques de grandes empreendimentos industriais do ramo do petróleo, celulose e portos, descaracterizaram a natureza e o modo de vida das comunidades. Poluíram e secaram as águas, afugentaram os animais, reduziram a biodiversidade, contaminaram o solo e impuseram pressões urbanas sobre a segurança das aldeias.

As irregularidades são tamanhas, que a situação é acompanhada pelo Ministério Público Federal (MPF), por meio do Fórum Permanente de Diálogo entre Empreendimentos e Comunidades Indígenas, com objetivo de fazer com que as empresas cumpram a legislação pertinente, realizando os estudos, condicionantes e compensações devidas pelos impactos causados por suas atividades industriais dentro e no entorno da TI Tupinikim Guarani.

Apesar dos esforços de reflorestamento e manutenção da língua, artesanato e outras tradições, os Guarani necessitam de um local com natureza preservada onde possam se reconectar com o sagrado e receber os direcionamentos corretos em busca da Terra Sem Males.

As montanhas do Caparaó são esse ponto de apoio para os Guarani, conforme revelado pela xamã e, anos depois, ao seu neto, o cacique Werá Kwaray, que reafirma: a ocupação de um terço do Parque Nacional do Caparaó ou qualquer área para além do terreno que receberam há mais de vinte anos, é infundada.

“As informações estão erradas. Essas pessoas estão querendo jogar um povo milenar contra um povo que às vezes não consegue entender nossa realidade, cultura e crença, como nosso povo Guarani. A gente quer um lugar bem preservado para buscar nosso criador, os guardiões das montanhas, os guardiões da floresta, mas isso os brancos não entendem. A gente sabe o limite, até que ponto pode ser uma pequena aldeia. Cinco, seis famílias, não é uma aldeia grande que a gente quer. É um lugar sagrado. Minha avó Tatantin-Rua Retée sempre ensinou para a gente: todo lugar sagrado tem as pessoas que têm os pensamentos iguais que podem morar nessas aldeias sagradas. Se tiver cinco famílias que tem pensamento igual, essas cinco famílias podem morar ali”, explica o cacique.

“Nós Guarani não fala que eles acabaram com nossa mata, por que eles querem falar contra nós, só porque nós queremos formar uma pequena aldeia de cinco, seis famílias?”, prossegue. “Nós povos Guarani não vamos destruir rio, matar todas as caças, derrubar as matas, porque a gente aprendeu, oralmente e na nossa vivência ancestral no dia a dia, não no papel, a cuidar e preservar o meio ambiente. A fauna e a flora, somos defensores. Por que comparar a gente com destruidor da biodiversidade? Biodiversidade a gente sempre preservou, para cuidar da medicina natural”, pontua.

Perseguição histórica

A histórica perseguição branca contra os indígenas consta inclusive no site do próprio Parque Nacional do Caparaó, que, em um trecho sobre o histórico da unidade de conservação, afirma: “A região que onde se encontra o Parque Nacional foi ocupada, em tempos remotos, por diferentes grupos indígenas. Encontravam-se aí Botocudos, Poris (ou Puris), numerosas tribos Tapuias e, posteriormente, os Tupis. Genericamente, a região abrigava grupos de caçadores-coletores que com sua resistência à colonização dos portugueses impediram, por certo tempo, a destruição da Mata Atlântica em várias regiões, sendo alvo de perseguição oficial e legalizada”.

‘Ameaça’ e ‘impactos’

Por email, o chefe do Parna Caparaó, Carlos Henrique Bernardes, respondeu ao Século Diário. Sobre os boatos de que os indígenas teriam intenção de tomar um terço da área do Parque, ele disse ter tomado conhecimento por meio de proprietários de terra da região. Mesmo não tendo confirmado a informação junto aos Guarani, afirmou considerar que qualquer intenção de formalização de uma aldeia no local é “uma ameaça a este importante patrimônio natural dos brasileiros, especialmente capixabas e mineiros”.

Carlos Henrique Bernardes também lista impactos que, segundo sua avaliação, “são causados pela presença dos Guarani no lote que lhes foi doado, como presença de lixo, ausência de saneamento básico, caça, introdução de espécies exóticas e ocorrências de incêndios”.

Impactos, registra-se, que ocorrem em outros pontos do parque por proprietários de terras não indenizados quando da expansão do parque, mas que não recebem a mesma hostilidade que os indígenas, além de caçadores e palmiteiros que utilizam trilhas clandestinas para cometerem esses crimes ambientais com objetivo comercial, sem que recebam a devida fiscalização do órgão gestor.

O chefe do Parna afirmou ainda que o terreno doado aos Guarani foi adquirido pelo ICMBio em 2012, havendo escritura registrada em nome do órgão federal, fato que é desconhecido pelos indígenas.

“Entendo que essa questão precisa ser melhor conhecida e debatida, especialmente no âmbito da sociedade capixaba, de modo que todos possam conhecer as diferentes versões e narrativas envolvendo a questão”, pondera Carlos Bernardes, antes de concluir sua mensagem, perguntando: “Afinal, o que querem os capixabas: conservar e proteger o único Parque Nacional que possuem em seu Estado, ou deixar que a parte capixaba deste Parque se transforme em Terra Indígena com todas as consequências e impactos que isso poderá causar ao Parque Nacional, independentemente do tamanho final que venha a ter essa Terra Indígena?”, pergunta o gestor.

O questionamento final deixa claro um posicionamento ainda carregado pelo preconceito insuflado por pessoas que decidiram dar seguimento à perseguição histórica iniciada pelos colonizadores europeus contra os indígenas. Perseguição que, há 500 anos, teve início com claro objetivo de dizimar os povos originários que protegiam as florestas e que, agora, é camuflada, ora de preocupação ambiental, como no caso em tela no Caparaó, ora de desenvolvimento necessário, como no caso do massacre do povo Yanomani da Amazônia.

Diálogo necessário

Uma conversa formal sobre o caso atual ainda aguarda agenda, por parte principalmente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) de Brasília, com lideranças Guarani, chefia do Parna, gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Ministério Público Federal (MPF), urgente para a busca de um consenso que garanta os objetivos de conservação e o direito indígena e de todos os que desejam se somar nessa tarefa, cada vez mais necessárias em tempos de crise climática e resquícios de intolerância e desinformação.

Foto: Rogério Medeiros

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