Grupos evangélicos põem em risco línguas e culturas indígenas da Amazônia

Especialistas alertam que uma organização que traduz a Bíblia para línguas indígenas, a SIL, “facilita” o trabalho de missionários evangélicos e desrespeita assim a diversidade e os direitos humanos. O caso foi denunciado à Unesco

Por Cida de Oliveira, da RBA

A atuação de grupos evangélicos está ameaçando línguas e culturas de povos indígenas da Amazônia. De acordo com linguistas e antropólogos brasileiros e estrangeiros, entre eles Noam Chomsky, uma organização estadunidense que traduz a Bíblia para línguas indígenas amazônicas, o SIL, tem atuado com missionários evangélicos. E com isso, desrespeitado a diversidade e os direitos humanos.

O SIL (Summer Institute of Linguistics) se intitula uma organização evangélica cristã sem fins lucrativos. Seu objetivo seria estudar, desenvolver e documentar idiomas, especialmente aqueles menos conhecidos. E assim expandir o conhecimento linguístico, promover a alfabetização, traduzir a Bíblia cristã para os idiomas locais e ajudar no desenvolvimento de idiomas minoritários.

No entanto, sua atuação tem ido além no Brasil. Por meio da Associação Linguística Evangélica (Alem) e da Jovens com uma Missão (Jocum), que aglutina evangélicos de diversas denominações, o SIL tem foco na conversão dos indígenas aos dogmas cristãos de cada uma dessas missões.

É o que disse à reportagem da RBA o linguista Sidney da Silva Facundes, da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Na visão dessas missões, muitos dos elementos da cultura tradicional dos povos indígenas seriam incompatíveis com tais dogmas cristãos”, disse Facundes.

Segundo o especialista em linguística indígena, nesse processo a cosmologia indígena é substituída pela narrativa bíblica do cristianismo. “O povo deixa de contar suas histórias tradicionais, os mais jovens não as aprendem, colocando em risco todo um patrimônio cultural que serve de base para a relação dos povos indígenas com a natureza”, disse.

Prejuízos do proselitismo de evangélicos

Mas não é só. Conforme destacou, esse é apenas um exemplo da cultura imaterial relacionada às narrativas tradicionais e à cosmovisão indígena frutos do equilíbrio entre as pessoas e seu ambiente natural. Em outras palavras, essas narrativas são cruciais para ensinar os mais jovens a importância de respeitar a natureza. Sobre quais árvores, animais e outros elementos são sagrados e que, portanto, exigem respeito.

“Essa relação especial deles com a natureza é o que explica o fato de ser nas terras indígenas que as florestas sobrevivem, como ilhas rodeadas por áreas desmatadas. Há inúmeros relatos de casos em que missionários proibiram narrativas tradicionais, cantos ou danças. Favoreceram, assim, apenas as práticas religiosas dessas missões”, afirmou.

Entre outros prejuízos do proselitismo, conforme citou, estão aqueles relacionados às práticas cotidianas que fazem parte do identitário dos povos originários. É o caso do rapé, mistura de várias substâncias naturais, usado por vários povos do Amazonas. “Presente na narrativa da criação desses povos, tal prática é uma das primeiras a ser eliminada. Assim como outras práticas tradicionais, ocorre não apenas dentro de contextos cerimoniais importantes para esses povos, como na prática da cura do pajé”, destacou.

“O conhecimento associado a essas práticas, inclusive aqueles relacionados à medicina tradicional indígena, desaparece quando a doutrina cristã é introduzida como substituto das crenças e práticas tradicionais. Isso faz com que atores tradicionais centrais das sociedades indígenas (pajés, xamãs, cantores, contadores de histórias) percam a sua importância e desapareçam, deixando um vácuo cultural, social e histórico com consequências imprevisíveis para o futuro dessas sociedades”, alertou.

Ação evangélica e divisão dos grupos indígenas

Facundes lembrou que nesse tipo de intervenção missionária, de caráter proselitista, são muito comuns conflitos e divisões nas comunidades indígenas. Nesses casos, a parte convertida aos dogmas cristãos tem acesso a benefícios da missão religiosa. Já a parte não convertida fica à margem da comunidade. E que nesse processo os missionários, conforme o caso, ofereceram remédios e outros tratamento de saúde, além de transporte, para estimular à conversão.

“O SIL usa a língua indígena como instrumento para introduzir a doutrina cristã em total detrimento do conhecimento oral transmitido entre gerações por centenas de anos dentro de cada povo indígena. Assim que o missionário aprende a língua indígena, parte para traduzir a Bíblia. Em momento algum essas missões usam o mesmo instrumento para valorizar e fortalecer o conhecimento tradicional indígena”, criticou.

Para o professor da UFPA, é mais uma violência contra os povos indígenas. “Se chegassem missionários muçulmanos, budistas ou hindus no Brasil, com tradução de seus dogmas para o português, e ensinassem isso a todos nós como a única verdade, indicando que tudo o que praticávamos antes estava errado e era pecado, ao menos nós teríamos acesso aos ensinamentos de outras religiões e poderíamos escolher. Aos povos indígenas não se dá essa opção. Isso é bem diferente de propiciar conhecimento científico ao povo, sem desvalorizar os seus conhecimentos e costumes tradicionais.”

O linguista, assim como Chomski e outros 200 especialistas no Brasil e no mundo, dos quais 76 especialistas nas línguas nativas da Amazônia, assinaram carta entregue em dezembro à Unesco (Fundo das Nações Unidas para a Educação, a Cultura e a Ciência). A reivindicação é que o órgão vinculado à ONU descontinue a “parceria inadequada neste mundo cada vez mais descolonizado, onde outras opções menos destrutivas estão disponíveis.”

Diversidade cultural e dignidade humana

A própria Unesco estabelece que “a defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, indissociável do respeito à dignidade humana. Implica um compromisso com os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas pertencentes a minorias e dos povos indígenas”.

A carta é fruto de uma das primeiras reuniões de um grupo de trabalho sobre a década internacional das línguas indígenas (2022-2032). Na ocasião, foi questionada a cooperação da Unesco com o SIL. Um representante do órgão manifestou interesse em informações sobre o tema.

Com apoio da bancada da Bíblia, esses grupos têm atuação que vão além do proselitismo religioso. É o caso da Missão Novas Tribos do Brasil (agora chamada Ethnos360, sediada na Flórida, EUA), parceira do SIL. Como lembraram os especialistas à Unesco, em fevereiro de 2020 Edward Luz, filho do presidente das Novas Tribos, saiu algemado de uma área indígena ao ser flagrado apoiando ruralistas em uma ação contra servidores do Ibama. O missionário acabou expulso da Associação Brasileira de Antropologia e do curso de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB).

SIL excluído de outros países Amazônicos na década de 1980

Por causa de suas próprias atividades contra a diversidade cultural e o apoio às outras missões, o SIL tem resistência de entidades que se preocupam em proteger a cultura indígena. No Brasil, um acordo entre a então Fundação Nacional do Índio (Funai) e o SIL, em 1985, foi repudiado por 41 delas, incluindo a Associação Brasileira de Antropologia, a Associação Brasileira de Linguística, e a União Das Nações Indígenas.

Tanto é que, atualmente, nenhuma universidade brasileira não-religiosa tem acordo de cooperação com o SIL. E linguistas científicos brasileiros praticamente não mantêm relações com o SIL, segundo a carta à Unesco. E mais: os especialistas são enfáticos ao alertar que, em outros países amazônicos, o apoio governamental e acadêmico ao SIL terminou na década de 1980.

A RBA procurou a Unesco, que não se manifestou até a conclusão da reportagem.

Imagem: Thiago Gomes/Agência Pará

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