Falta de rumo na saúde mental pode não ser apenas um tropeço de Lula. Governo pode e deveria rever o caminho que escolheu
por Paulo Capel Narvai, em A Terra é Redonda
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) recomendou ao governo federal revogar a criação do Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas (DACT), no ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS). A indicação foi feita no final de janeiro, mas não surtiu qualquer efeito até o momento. Também a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) se posicionou contrariamente ao Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas, afirmando que sua criação “cria um conflito interno na gestão federal, prejudica a implantação de políticas já existentes e ameaça os princípios da reforma psiquiátrica e da defesa dos direitos humanos das pessoas em sofrimento mental”.
A Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) repudiou a criação do DACT assinalando que “após um processo de transição marcado pela escuta dos movimentos sociais, e uma proposta de construção dialogada de uma política que efetivamente cuide da população brasileira, é paradoxal que seja criado um departamento cuja função específica é dar apoio a um dispositivo asilar como as chamadas comunidades terapêuticas que, nos últimos anos, tem sido alvo de diversas inspeções que produziram relatórios apontando graves violações de direitos humanos”.
Não obstante a oposição ao DACT, tudo indica que o órgão terá vida longa no governo de Lula, no ministério comandado por Wellington Dias, cujo orçamento anual é de cerca de 90 bilhões de reais e tem no Fundo Nacional de Assistência Social um instrumento estratégico para a gestão das ações nessa área no Brasil. Fica a aceitação, tácita, de que as ações de “comunidades terapêuticas” são válidas no enfrentamento de problemas de saúde mental.
O Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas (DACT) foi criado pelo Decreto nº 11.392, de 20 de janeiro de 2023 no MDS, vinculado diretamente à secretaria executiva da pasta, com a missão de:
“i) assessorar e assistir o ministro de Estado, no âmbito das competências do ministério, quanto às ações do Governo e do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas relacionadas à atenção e à reinserção social de usuários e dependentes de drogas;
ii) apoiar o ministério da Justiça e Segurança Pública e demais órgãos do poder executivo federal, no âmbito de suas competências, na execução das ações do Governo e do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas relacionadas à atenção e à reinserção social de usuários e dependentes de drogas;
iii) apoiar as ações de cuidado e de tratamento de usuários e dependentes de drogas, em consonância com as políticas do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, em articulação com o ministério da Justiça e Segurança Pública e os demais órgãos do Poder Executivo federal;
iv) desenvolver, coordenar e monitorar a implementação de ações e projetos na área de cuidado, apoio e mútua ajuda, no âmbito das competências do ministério, de acordo com as diretrizes e orientações da Política Nacional Sobre Drogas, do ministério da Justiça e Segurança Pública e dos demais órgãos do Poder Executivo federal;
v) propor ao Secretário-Executivo a celebração de contratos, convênios, acordos, ajustes e instrumentos congêneres com os entes federativos, entidades públicas e privadas, instituições e organismos nacionais, e acordos internacionais, no âmbito de suas competências;
vi) propor parcerias com órgãos governamentais e não governamentais que realizam atividades voltadas ao cuidado, em articulação com o ministério da Justiça e Segurança Pública e os demais órgãos do Poder Executivo federal, de forma a integrar as ações desenvolvidas nacionalmente, no âmbito de suas competências;
vii) propor, planejar, analisar, coordenar, apoiar e acompanhar parcerias e contratações na área de cuidado;
viii) analisar e propor a atualização da legislação relativa à sua área de atuação”.
Porém, nada disso foi proposto, no período da transição do governo federal, ao grupo de especialistas incumbido de avaliar a situação da saúde no país, e do Sistema Único de Saúde (SUS) em especial. Especificamente para a saúde mental, o grupo da saúde recomendou que a área, historicamente uma coordenação na estrutura do ministério da Saúde (MS), fosse alçada à condição de Departamento de Saúde Mental (DSM), proposição que foi elogiada nos quatro cantos do país.
A recomendação foi aceita e, ao reestruturar o MS com a edição do Decreto nº 11.358, de 1º de janeiro de 2023, o governo criou o Departamento de Saúde Mental e Enfrentamento do Uso Abusivo de Álcool e Outras Drogas, subordinado à Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES), com a atribuição de:
“a) coordenar os processos de implementação, fortalecimento e avaliação da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e da rede de atenção psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas no âmbito do SUS;
b) elaborar instrumentos técnicos e participar da elaboração de atos normativos para subsidiar o desenvolvimento, a implantação e a gestão das ações estratégicas e das redes de saúde vinculadas ao Departamento;
c) incentivar a articulação com movimentos sociais, organizações não governamentais e instituições afins, para fomento à participação popular e social na formulação, no acompanhamento e na avaliação das ações programáticas estratégicas e das redes de saúde vinculadas ao Departamento;
d) fomentar pesquisas relacionadas às ações programáticas estratégicas;
e) promover cooperação técnica com instituições de pesquisa e ensino para o desenvolvimento de tecnologias inovadoras de gestão e atenção à saúde das ações programáticas estratégicas para a rede de atenção psicossocial”.
No entanto, em menos de três semanas o DSM foi amputado das atribuições relacionadas com o “enfrentamento do uso abusivo de álcool e outras drogas”, que migraram da pasta da Saúde para a do Desenvolvimento Social. O Decreto nº 11.391, de 20 de janeiro de 2023, alterou o nome do Departamento, mas manteve formalmente a atribuição do DSM de “coordenar os processos de implementação, fortalecimento e avaliação da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (…) no âmbito do SUS”.
Como o SUS é, tecnicamente, um sistema nacional e não um serviço nacional, suas ações não precisam se ater ao denominado “setor saúde”, e podem ser articuladas e organizadas de modo intersetorial. Na prática, porém, o SUS é gerido, predominantemente, como um serviço setorial de saúde. Isto significa que, competindo ao MDS, “desenvolver, coordenar e monitorar a implementação de ações e projetos na área de cuidado” relacionado com o uso de “álcool e drogas”, ao Departamento de Saúde Mental cabe agir nas matérias afetas à “implantação e gestão das ações estratégicas e das redes de saúde vinculadas ao Departamento”.
Saúde Mental é uma das áreas mais tensionadas do ministério da Saúde. Segundo o pesquisador Paulo Amarante, uma das principais referências nessa área, ao tomar posse na presidência da República, Michel Temer “nomeou um coordenador absolutamente defensor do modelo manicomial”, cuja inadequação à política de saúde mental, na perspectiva do SUS, vem sendo reconhecida desde a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental (1987), que rejeitou o modelo manicomial e, conforme Amarante, consolidou a consigna “Por Uma Sociedade sem Manicômios” e, propondo a “participação de usuários, familiares, militantes de movimentos de direitos humanos, passou a vislumbrar uma sociedade sem violências, sem exclusão, concebendo o manicômio como não apenas o prédio do hospício ou de outras instituições de reclusão e repressão, mas as práticas e mentalidades sociais de opressão, de ausência de solidariedade, empatia e reconhecimento da diferença e da diversidade”. Por essa razão, houve reações ao modelo imposto no período Temer, mas o pior viria no governo de Jair Bolsonaro que “resolveu” as dificuldades simplesmente extinguindo a coordenação de saúde mental do MS.
A saúde mental divide, agora, o governo Lula. Mas essa divisão vem de longe. É certo que problemas de saúde requerem ações intersetoriais e, portanto, o conjunto das políticas públicas, sociais e econômicas, devem convergir para promover a saúde coletiva. Neste caso, a saúde mental. Mas é também consensual que a coordenação das políticas de saúde incumbe ao SUS e ao seu comando único em âmbito nacional, que é o ministério da Saúde. Não faz sentido um Departamento, com “terapêutico” em sua denominação, que não esteja vinculado ao ministério da Saúde, vale dizer, ao SUS.
Ou faz sentido? Depende de quem busca sentido. O Conselho Nacional de Saúde, a Abrasco e a Abrasme, evidentemente definiram suas posições institucionais com base em conhecimentos científicos contemporâneos que indicam que a “saúde mental” decorre de múltiplos aspectos que podem ser resumidos na expressão “determinação social”, não se restringindo aos aspectos apenas biológicos envolvidos.
Para o CNS e as entidades, embora se reconheçam os aspectos sociais da saúde-doença mental, as terapêuticas nesta área implicam reconhecer as dimensões biopsicossociais dos problemas e, portanto, a necessidade de atuação de profissionais e instituições de saúde que devem orientar suas ações segundo preceitos éticos e de humanização que recusam o encarceramento, a abstinência e o fundamento religioso como base da abordagem e outros procedimentos considerados terapeuticamente inadequados, como a opção manicomial sistemática e banalizada e ausência de perspectiva de reinserção social do paciente. Busca-se, em síntese, que a política de saúde mental assegure o cuidado em liberdade, laico, humanizado, integral, antiproibicionista, antirracista e antilgbtfóbico.
Mas esse entendimento dos problemas na área de saúde mental parece não predominar no MDS, onde a perspectiva da atuação do DACT, definida em suas atribuições, chama para si a coordenação das “ações do Governo e do Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas”, e apoiar “o ministério da Justiça e Segurança Pública e demais órgãos do poder executivo federal”, as “ações de cuidado e de tratamento de usuários e dependentes de drogas, em consonância com as políticas do SUS e do SUAS”, além de “desenvolver, coordenar e monitorar a implementação de ações e projetos na área de cuidado, apoio e mútua ajuda, no âmbito das competências do Ministério, de acordo com as diretrizes e orientações da Política Nacional Sobre Drogas, do Ministério da Justiça e Segurança Pública e dos demais órgãos do Poder Executivo federal”.
Para dar conta de tudo isso, o DACT/MDS celebrará “contratos, convênios, acordos, ajustes e instrumentos congêneres com os entes federativos, entidades públicas e privadas, instituições e organismos nacionais, e acordos internacionais” além de “propor parcerias com órgãos governamentais e não governamentais que realizam atividades voltadas ao cuidado”, bem como “propor, planejar, analisar, coordenar, apoiar e acompanhar parcerias e contratações na área de cuidado”. Embora se afirme que tudo se fará sempre “no âmbito de suas competências”, o DACT poderá ainda “analisar e propor a atualização da legislação relativa à sua área de atuação”.
A esta altura, com toda razão, o leitor, a leitora, estarão a se perguntar: mas, então, cabe ao SUS e à rede de serviços de saúde fazer o quê?
Um dos principais desafios enfrentados pelos reformistas que, na segunda metade do século XX, idealizaram o SUS foi, justamente, lograr que o sistema de saúde proposto unificasse efetivamente tudo sobre saúde, sob o comando nacional do ministério da Saúde. Não foi fácil, mas avançamos, embora as unidades de saúde militares tenham ficado à margem do SUS e, também, muitos hospitais e serviços de saúde universitários que, ainda hoje, expressam estranhamento ao se verem incluídos no SUS, como “sistema”.
Mas, agora, o DACT/MDS parece devolver o SUS ao período pré-SUS. Mais do que “um problema institucional”, porém, a manutenção do DACT no MDS e o aprofundamento da perspectiva manicomial que o cerca, acende um enorme sinal amarelo quanto ao papel de instituições religiosas na política de saúde mental, notadamente no que se refere ao enfrentamento do uso de “álcool e drogas”. São frequentes as denúncias de maus tratos e recorrentes violações de direitos humanos praticadas em “comunidades terapêuticas”, notadamente em localidades remotas, relativamente isoladas e não fiscalizadas, ou precariamente controlados por órgãos do poder público.
É bem conhecido que a ampla maioria das “Comunidades Terapêuticas” se vinculam a entidades religiosas, que as criam, organizam, mantêm e lhes dão identidade. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, 74% das entidades são católicas ou evangélicas. Isto não é, em si, um problema. O problema é que, em muitas dessas instituições, frequentemente a ciência é substituída pela fé e por valores relacionados à moralidade adotada pelo respectivo segmento religioso.
A fé entra por uma porta, a ciência sai por outra. Não que não seja possível a convivência, mutuamente respeitosa, mas a vulgarização religiosa, quase sempre integrista, busca a submissão do conhecimento científico a alguma ideologia religiosa. Sem falar em algumas situações – felizmente excepcionais – em que é flagrante a deformação religiosa para fins político-ideológicos ou mera corrupção no uso de recursos públicos, como tristemente constatado, ainda recentemente, em episódios envolvendo líderes religiosos.
No Brasil, não bastou a separação entre o Estado e a Igreja Católica Romana, produzida politicamente pela Proclamação da República, em 1889. Apesar da separação formal, por décadas e ainda hoje, diferentes correntes religiosas se consideram no direito de receber tratamento privilegiado por órgãos e servidores públicos, prática largamente tolerada no país. É como se políticas públicas precisassem do aval de instituições e líderes religiosos para serem implementadas. Tal é o caso da pretensa institucionalização de “comunidades terapêuticas”, como recursos assistenciais com funções na política pública de saúde mental. Se vários segmentos sociais rejeitam essa possibilidade, é bem verdade que para outros tantos esse é um caminho a ser seguido.
O silêncio do governo aos reclamos pela extinção do DACT no MDS deve ser compreendido à luz desse dilema que se abate sobre o Estado e governantes no Brasil, agravado pela fragilidade da nossa democracia. Confrontar, na condição de autoridade pública, o poder de líderes religiosos pode ter consequências (pelo menos eleitorais) que faz calar a boca e prender a mão de muitos governantes.
Nessa perspectiva, a falta de rumo da política de saúde mental do governo brasileiro pode não ser apenas um tropeço de Lula, mas indicar um rumo que, deliberadamente, o atual governo escolheu. Mas que pode, e segundo vários segmentos ligados à luta em defesa do SUS e do direito à saúde, deveria rever.