‘No garimpo, o que tem dentro das tuas pernas não é teu: tem que dar lucro’

SUMAÚMA publica, com exclusividade, o relato da venezuelana Patri. Ela chegou ao Brasil aos 27 anos, após sofrer sucessivas violências em seu país. Entre 2021 e 2022, trabalhou como prostituta em cinco acampamentos de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami. Suas memórias, escritas e desenhadas em pequenos cadernos, escancaram as vozes das mulheres que se equilibram na linha fina entre a sobrevivência e a brutalidade

por PATRI, em Sumaúma

A escrita autobiográfica de Patri
por Marcela Ulhoa*

Patri é seu nome fictício, uma escolha para proteger sua identidade em terra de violências. Uma parte das memórias aqui compartilhadas foi escrita por ela em um pequeno caderno azul de espiral e a outra é resultado de uma conversa que tivemos em Boa Vista, Roraima, no início de março de 2023. Desde que saiu da Venezuela em direção ao Brasil, em 2017, Patri mantém o hábito de escrever e desenhar suas vivências e percursos. Ela coleciona cadernos que contam detalhes de sua infância, da relação com as mães (a adotiva e a biológica), namorados, sua jornada como migrante, mãe, prostituta e mulher no garimpo. Sonha em publicar um livro algum dia, juntando as peças de sua vida. Para Patri, seus relatos representam a oportunidade de conversar com mulheres como ela. “Eu não sabia nada, falaram que fazia dinheiro rápido no garimpo. Se eu tivesse lido alguma história parecida com a minha, eu teria pensado muitas vezes antes de ir ou teria ido mais preparada.”

Sua escrita autobiográfica, mais do que os relatos de sua experiência pessoal, é um recorte histórico e social. O recorte de uma mulher que, ainda adolescente, foi abusada pelo padrasto, fugiu de casa aos 15 anos e decidiu migrar de seu país aos 27. Ao chegar ao Brasil, inseriu-se no mundo do trabalho sexual, engravidou de um de seus clientes, tentou viver uma história de amor, mas acabou sozinha com o filho. Habituada a correr riscos e a sofrer todo tipo de violência, o garimpo ecoou em sua vida como uma oportunidade. “Eu me arrisquei duas vezes [no garimpo] e foi pelo mesmo motivo: ter um pouco de sorte. Perigo tem em todo lugar, e na rua eu não ia conseguir ouro. Mas aconteceram muitas coisas que viraram o jogo, nada saiu como eu planejei”, diz Patri.

As regiões de Homoxi e Xitei foram seus destinos nas duas vezes em que deixou o filho de 4 anos em Boa Vista, capital do estado de Roraima, sob os cuidados de sua vizinha, e se arriscou em busca do sonhado “Eldorado”. Na Venezuela, El Dorado era um garimpo conhecido, onde muitas mulheres trabalhavam como prostitutas e atendiam os trabalhadores das minas. O garimpo brasileiro não tinha relação com o imaginário construído por Patri. No Brasil, ela viveu nas vilas da mineração ilegal em dois períodos: a primeira vez em 2021 e a última em 2022. Segundo o relatório “Yanomami sob Ataque”, publicado pela Hutukara Associação Yanomami em 2022, o Xitei foi a região com maior aumento relativo de desmatamento e da atividade ilegal do garimpo em 2021, com uma taxa de crescimento superior a 1.000%.

No período em que Patri permaneceu por mais tempo na terra indígena – cinco meses dentro do garimpo –, saiu de lá com cerca de 25 gramas de ouro no bolso, o que equivale a cerca de 5.000 reais. No total, ela passou por cinco acampamentos de garimpeiros na TI Yanomami. Em cada um desses lugares, um cabaré diferente, um “dono” diferente e uma nova “trampa” a ser vivida. Em meio à complexidade do garimpo, o relato de Patri também amplia as vozes de outras tantas mulheres que sobrevivem nas bordas, equilibrando-se numa linha fina entre o lucro e a violência.

Marcela Ulhoa. Jornalista e mestre em literatura pela Universidade Federal de Roraima, Marcela editou o material bruto dos relatos de Patri. Ela trabalhou com migrantes, refugiados e a população indígena no estado de Roraima e desenvolveu sua pesquisa a partir dos diários íntimos de Patri. Seu primeiro documentário como diretora, Aquí en la Frontera, estreia em 2023


15 gramas de ouro, um avião clandestino e muitas dívidas

Quando vivia junto com o pai de meu filho, ainda em 2018, escutei várias pessoas falarem do garimpo. Não sabia seu significado, até que não pude aguentar a curiosidade e perguntei por que ele não ia, já que estávamos passando por uma forte crise de dinheiro e eu estava sem trabalho, assim como ele, e já estava grávida. “Tá louca? Eu não vou morrer na mão de ninguém lá, muito menos por ouro. Ninguém sabe se eu vou pegar, se vão me matar.” Eu disse: “A gente tem que ir sempre nos projetos com a mente positiva, pra tudo dar certo. Se tu confia em Deus, eu sempre tenho Deus presente ao meu lado, meu irmão, tu vai ser bom ganhador!”. Mas pra ele tudo era não, era eu prefiro comer arroz com manteiga, mas para lá eu não vou…

Naquela época eu comecei a escutar que mulheres iam para lá. Eu pensei: eu já trabalhei na rua, já me estupraram, quase fomos assassinadas e enterradas, minha prima e eu, por quatro rapazes dentro de um carro, e a gente já nem dormia direito pra fazer 400, 500 reais. Já passamos perigo, por que eu não vou pra lá? Eu vou me arriscar sim! Eu vou me arriscar. E tomei a decisão. Na época que decidi ir, eu estava separada do pai do meu filho, morando em uma vila na periferia de Boa Vista, sem trabalho. Era junho de 2021.

Eu falei com uma amiga que tinha conhecimento de como era o garimpo, e ela comentou que uma conhecida estava lá e que, no lugar onde ela estava, a patroa precisava de uma mulher para trabalhar no cabaré. A passagem de ida eram 15 gramas de ouro [cerca de 3 mil reais].

Eu conversei com a minha vizinha, a gente fez uma boa amizade na época: “Eu tô indo amanhã pro garimpo e não tenho com quem deixar o meu filho”. Ela disse: “Será que também pode ir o meu marido?”. Ela também estava numa crise econômica bastante forte. A gente pegou o número da dona do cabaré e acertou para o esposo dela ir. Isso foi assim, rápido.

No outro dia, eles ligaram: “Olha, aqui tem o número do dono do avião, ele vai pra sua casa, vai pesar as suas coisas, vai pesar você, o rapaz, as coisas dele, e às 5 horas da manhã vai te pegar pra levar pra fazenda [de onde saem os voos]. É só esperar que chegue o avião pra você entrar no garimpo”. Nesse dia choveu muito. Aí eles ligaram antes das 22, 23 horas: “Se continuar chovendo, não vai dar certo viajar hoje, mas amanhã com certeza a gente busca uma fazenda pra você ir embora, porque sua passagem já está paga. A sua passagem vai ser 15 gramas de ouro e, quando você chegar lá, você se resolve com a dona”.

Me explicaram que existem três tipos de avião: um com capacidade máxima de 300 quilos, outro de 500 quilos e o “tubarão”, que leva mais de mil quilos. Na época eu estava bem magra, lembro que estava pesando 52 quilos, algo assim. Fui no avião de 500 quilos, e junto comigo foram as mercadorias pra dona do cabaré: comida, bebida e balas [para armas].

Nós não conseguimos viajar nesse dia, só no dia seguinte. “Montem, que a gente vai levar vocês pra longe daqui, pra uma fazenda, porque lá não chega a polícia”, disseram. Eu não sei exatamente onde era nem quem era o dono do lugar, só sei que era muito longe. Demoramos umas duas ou três horas para chegar e levamos 15 minutos de carro para percorrer o trajeto do portão de entrada até chegar no galpão onde ficavam os aviões. Ao redor eu só via mato, não tinha nenhuma construção, nenhuma casa, era no meio do nada.

O galpão tinha o teto alto, bem estruturado, muitas ferramentas. Dois rapazes, acho que eram os mecânicos, estavam ajeitando o avião antes de a gente sair. Quando terminamos de arrumar as coisas dentro do avião, o piloto e eu nos preparamos para subir e partir. Fiz algumas fotografias com meu celular, fiz uns vídeos. Estava nervosa não porque estava no ar, no avião, mas porque na verdade eu não tinha ideia para onde eu ia, como era o lugar, nem como ia ser a minha chegada. O que me acalmava era que a amiga da minha amiga estaria no mesmo lugar, ainda que minha cabeça estivesse dando vueltas.

Três horas depois, se não me recordo mal, o piloto me informou que estávamos chegando. Recordo de ver parte da paisagem. Havia várias máquinas e buracos enormes na maioria dos lugares. O menino que era piloto, que não passava de 20 anos, me disse: “Muito cuidado”. E me desejou sorte. Tiramos uma foto juntos.

Sexo com homem fedorento e cheio de cachaça: o que eu fiz?

O avião ficou dentro do garimpo até amanhecer o outro dia. Ele foi embora, e nós fomos para o cabaré. Fomos andando, eu não tinha botas. Não sabia o que a gente tinha que ter. Estava só com minhas sandálias pretas, uma calça jeans rasgada e uma blusa verde bem folgada. Tinha um detalle no meu pescoço, um cordãozinho prata com a letra Z, que é a inicial do nome da minha irmã mais nova. Quando por fim cheguei, cansada, fui [falar] com a patroa, a Bruxa [nome fictício], e com a amiga da minha amiga, que me disse: “Se puder, seja cega, surda e muda, trate de ser muito paciente e calma e não fale muito”. Ao me dizer isso, deixou claro que ali não era um lugar onde eu poderia me equivocar e que é tu e somente tu.

Quando a Bruxa se aproximou, eu pensei: cadê a patroa? Na foto do WhatsApp ela era mais jovem e forte. Mas quando ela se aproximou parecia mesmo uma bruxa. Ela era uma mulher da terceira idade, com um aspecto físico muito descuidado. Magra, alta, com muito cabelo, mal pintado, pele ressecada e um rosto marcado por linhas de expressão. Ela chegou e alisou o meu cabelo, me abraçou e me falou pra tomar um banho e me arrumar pra sentar no salão. O salão era uma área aberta, coberta só por lona, com um pau no meio para as mulheres fazerem striptease e com bancos grandes de madeira onde se sentam todas as mulheres de programa e começam a debater entre elas quem é o seu cliente.

Não senti uma boa energia da minha patroa, nenhum tipo de conforto. Eu estava supermorta de cansaço, mas suponho que para ela isso não importava. Quanto mais rápido eu me apresentasse a seus clientes, mais rápido ela recuperaria seus gramas [de ouro].

Quando me encontrava pronta pra me sentar no salão, um senhor de uns 70 anos chegou e perguntou pra patroa: “Ela é nova, é?”. “Sim, ela chegou agora, mas tu não vai ficar com ela não.” Ela já tinha um cliente específico pra mim. Tinha [também] uma menina que havia chegado um dia antes e ainda não havia trabalhado. Então o cara tava dando 15 gramas [3.000 reais] por ela, pra levar ela pro barraco dele. Entendi que esse era um outro tipo de contrato. Quando você aceita ficar mais tempo com o cara no barraco dele, tem que lavar a roupa, fazer comida e não pode fazer programa com outro cliente durante esse período. Só que, quando esse senhor me viu, ele disse: “Não, não quero ela não. Quero essa mira”. Ele me chamou de mira porque eu era a única venezuelana [em Roraima, os venezuelanos são pejorativamente chamados de mira]. “Eu vou pagar 20 gramas [4.000 reais] pra levar ela pro meu barraco por sete dias.” Só que a dona não queria me soltar.

Quando você chega lá [no garimpo], o que tu tem dentro das tuas pernas não é teu, é da dona. Tu até pode falar que não vai ficar. Mas tua consciência sabe que tu tá devendo. Então ela está te mandando. Tu tem que ir. Ou, pelo menos, dar lucro. Se tu não tá acostumada a beber cachaça, tu vai ter que fazer o cara gastar tomando cachaça. A dona da cantina vende balas, e tem um monte de peões com arma. E acabam as balas, porque, normalmente, quando ficam bêbados, eles ficam atirando no ar. Tu vai e tu fala “bora lá me ensinar a disparar, a atirar”. Só pra fazer o pessoal consumir.

Tu tá na “trampa”, como eles falam. Está no jogo. Tu tem que aprender a jogar, porque nem todo tempo tu vai querer perder. Se tu perde, vai sair dali lisa, sem nada no bolso. Quando tu paga teus 15 gramas, dali pra frente tu quer continuar ali no cabaré fazendo dinheiro. Mas tudo é caro dentro do garimpo, ali se ganha, ali se gasta. Pra tu poder te alimentar toda semana, tu tem que pagar 1 grama de ouro pra cozinheira [cerca de 200 reais]. Se um cabaré tem sete mulheres, todas elas têm que pagar 1 grama de ouro pra essa cozinheira toda semana. Esse é um lucro pra dona, porque é ela que gerencia também o trabalho da cozinheira. É a dona do cabaré que faz a gestão do voo que traz a mercadoria, porque tudo vem da rua. Pra acessar a internet, você tem que pagar até 60 gramas de ouro [12.000 reais].

Normalmente os primeiros pagos, se tu é habilidosa, porque tem mulher habilidosa, caem na tua mão. Se tu sabe fazer teus negócios, se tu já era acostumada, já era esperta na matéria, esse ouro vai chegar na tua mão e tu vai pagar depois pra dona. Mas se tu é novata, como eu, que nem a outra menina que chegou antes de mim, vai cair na mão da dona. E nem sabe quanto o cliente pagou. Eu, por exemplo, transei com quatro caras e praticamente foi de graça. Pra mim nunca chegou nada, e ela disse que pra ela nunca chegou, mas eles juraram, e brigaram com ela, que pagaram até 4 gramas [800 reais] por noite pra mim.

Os primeiros dois, três dias foram um pouco complicados pra mim porque, na verdade, ser garota de programa no garimpo foi pior do que ser garota de programa na rua. Minhas expectativas ficaram no chão. Porque todos esses peões, eles não tomam banho direito, obviamente. Porque a higiene lá é bem perturbada mesmo. Você tem que pedir pra ir pro rio, tomar banho nas grotas dos rios. Tu não fica com aquela privacidade de tomar banho em um banheiro real, fazer cocô em um banheiro real. Você tem que se adaptar a muitas coisas. E o clima fez mal pra mim, sou alérgica aos carapanãs [mosquitos], e aquele medo da escuridão… E era muita pessoa com cachaça, todo dia.

O cabaré é uma estrutura feita de troncos de árvore. Nós contribuímos pra destruição da floresta. São feitos vários formatos de casinha com uma grande lona pesada amarrada com linha, bem forte, bem puxada mesmo, pra dar aquela estrutura de teto. E tem os quartos, que nós, dentro do garimpo, chamamos de fuscon. Nossos fuscones, literalmente o local onde tu vai trabalhar. Não sei se é uma palavra em português, ouvi pela primeira vez no garimpo e nunca consegui achar o seu significado. Acho que os garimpeiros adaptaram essa linguagem dos índios. É a mesma coisa quando falamos xapona, já sabemos que é uma casa de índio.

Muitas vezes a dona do cabaré te proporciona camas, como muitas vezes tem muito cabaré que só te proporciona o fuscon, que é o quartinho, e tu leva tua rede. E trabalhar em rede é horrível. A cama é mais confortável pra fazer esse tipo de trabalho. E sair de um quarto de hotel para ir pra um fuscon desse, onde tem só carapanã, tem barulho de mosquito, tem todo tipo de bicho debaixo dos pés, e fazer sexo dentro de uma rede com uma pessoa toda suja, toda fedorenta, cheia de cachaça, sem saber se vai te bater e sem ninguém poder te ajudar… É muita coisa louca. Foi quando eu me toquei: porra, o que eu fiz? Me dei conta de que, muitas vezes, decisões que você toma em sua vida trazem uma consequência muito grande, que tu fica arrependida até tu não aguentar.

Tem um momento dentro do garimpo que tu fica louca. Tu fica com aquela adrenalina, fica sempre com medo, perseguida, achando que o fulano te olhou feio. Tuas atitudes começam a mudar dentro do garimpo só pelo fato de você saber que tem que ser respeitada. Porque senão, mano, tu não vale nada. Se tu é fraca, eles te abusam tanto, os caras te obrigam a fazer só a vontade deles.

A maioria das donas de cabaré vem com uma história bem marcada dentro do garimpo, marcada no sentido de que elas são bem reconhecidas pela trajetória que têm dentro do garimpo antes de serem donas, antes de terem lucro ou respeito dentro do garimpo, porque tudo é tipo um território. Quando eu cheguei no garimpo, eu tinha medo de tudo, até de falar grosso pra uma pessoa ou de recusar uma proposta. Aí eu percebi que no meio do tráfico as pessoas marcam território de poder. Porque não se chama outra coisa. Isso é tráfico. Não tem outra palavra pra descrever essa situação de drogas, pistolas, balas, armas, ouro, gasolina, entre outras coisas – muitas – que eu comecei a perceber em poucos dias.

No caso, a dona do primeiro cabaré em que cheguei vinha com uma história muito forte. Quando ficava muito bêbada, ela começava a desabafar seu relato de vida pessoal. Ela foi estuprada, vendida a homens do garimpo. Sempre escutei ela falar quanto se esforçou para criar seus dois filhos e ter o que ela tinha naquele momento. E ela era assim muito arrogante, muito imponente do seu jeito. Mas às vezes eu sentia pena dela, porque quando ela ficava muito bêbada ficava lembrando que ela tinha matado uma pessoa, porque ela foi estuprada e não teve outro jeito, teve que matar para fugir daquele garimpo. E ela praticamente se tornou a pessoa que era naquele momento devido à situação de vida dela. Então eu fiquei com pena e fui criando uma amizade com ela, não sei como. Não sei se foi porque me senti um pouco complementada com a história dela.

Perder dinheiro no Pix ou me arriscar?

Bater pano é quando a pessoa, o homem que trabalha com máquina e que uma vez por semana limpa aquela máquina, tira o que se chama de cobertor, onde fica o ouro. Eles limpam, passam aquela química, como é que se chama? Mercúrio! E fazem aquele processo pra fazer o ouro. Todo fim de semana, ou antes do final de semana, na sexta ou de sábado pra domingo, eles batem pano. É quando vem mais ouro, quando as cantinas, os cabarés, o jogo de sinuca, as apostas [fervem], até os índios ficam muito bêbados.

Quando eles batem pano é muito bom. Muitas vezes tem mulheres de programa que se relacionam muito com um cliente, e o fato de dar muita confiança pra só um cliente faz com que outros peões não te vejam mais como mulher de programa, mas como mulher desse peão. Mas se tu não tá relacionada com nenhuma pessoa, então tu faz até quatro, cinco programas por noite [quando eles batem pano].

O ouro na rua é 300 reais 1 grama. Mas dentro do garimpo, como tem muito ouro, é 180 reais. E te cobram uma taxa por cada Pix que varia entre 50 e 70 reais. Então, literalmente, você está perdendo dinheiro vendendo o teu ouro no garimpo. Agora, tem outra opção: tu tem 10 gramas de ouro e quer mandar pra rua. Pode fazer, mas está arriscando. O que acontece? [Dá o ouro pra uma pessoa] e mais tarde essa pessoa pode vir com uma história: “Me pegou a polícia, pegou o ouro”. O ouro chegou chueco, ou seja, incompleto: em vez de 10 gramas, chegaram 5 gramas. Pra mim, então, era melhor pelo menos mandar 180 reais do que mandar 300 reais [que talvez nunca chegassem].

O dia em que o velho me levantou com a faca

Na segunda vez que voltei pro garimpo, em 2022, vivi um momento muito difícil. Um dia chegou um cliente que era trabalhador do dono do cabaré, um homem que não só ganhava com o cabaré, mas também com suas máquinas [de extração de ouro]. Bueno, esse cliente bebeu tanto que me disse que iria ao banheiro, e quando eu fui ao meu fuscon encontrei um velho bêbado dormindo na minha cama. Comunico isso ao meu patrão, que estava com sua amante nos seus aposentos. Ele me diz: “Dorme em outro, já que as suas outras amigas foram embora”. Ou seja, que fueran pal coño. Fui e me deitei [no fuscon] ao lado.

Por volta das 2 ou 3 horas da madrugada, chegou alguém. Escutei passos e alguém entrou no meu fuscon e me chamou. Eu respondi: “Não estou aí, estou ao lado”. O tipo entra e diz que vem de longe pra me fazer uma proposta: “Tenho 3 gramas [600 reais] e 250 reais em dinheiro. O outro grama [200 reais] te pago depois”.

O tipo tinha um cheiro horrível nas suas patas, além do que estava quase pra quebrar a minha paciência querendo tirar o preservativo. Eu sugeri que, se ele continuasse, poderia pegar seu dinheiro e ir embora. Porque eu trabalho me cuidando, não concordando com essa forma. Ele, ao final, viu que não conseguiria nada e me disse: “Ok, não te molesto porque senão não vou acabar [gozar] nunca”.

O velho que estava dormindo dentro do meu fuscon, ao lado, acordou, e eu senti alguma coisa palpitando dentro de mim, tipo um alerta. Só puxou aquele facão e rasgou o fuscon: “Vai, acorda, filha da puta! Onde que tu tá?”. Eu abri o outro lado do fuscon e saí correndo. Ele foi atrás de mim, me xingando, dizendo: “Maldita venezuelana, vou te matar, tu acha que eu sou o quê? Um otário? Sou um homem, tu me respeita, maldita. Vou te matar agora!”.

Ele me levantou com a faca, colocou bem no meu pescoço e falou: “Levante, levante, filha da puta! Tou falando!”. No momento em que eu levantei, ele virou o facão, reto, pra me cortar e falou: “Vai e manda mensagem pro seu filho e se despeça do seu filho, porque tu vai morrer hoje”. No momento que esse homem falou isso, meu corpo todo tremeu de frio. Chorei, pedi piedade: “Por amor de Cristo você não faz nada comigo, por favor. Não marquei nada com você”. Teve um momento em que eu estava na frente, mas não sei como, em questão de segundos, virei e fiquei nas costas do cara com quem eu tava dormindo [o do cheiro horrível nas patas]. E o cara, que tinha um revólver embaixo do colchão, disse assim: “Ei, flaco, tu baixa esse facão e deixa a menina, porque você tá errado. A menina não tá contigo, não tá te acompanhando”.

Levantei e fui rapidinho na área onde estavam dormindo os meus patrões, porque era um casal, e expliquei [o que estava acontecendo]. Eles ficaram só sorrindo, achando graça. Aí tu vê a realidade, que tu não é protegida por ninguém.

Lembro direitinho do cliente falar “eu vou dar os 6 gramas [1.200 reais] pra tu, mas tu hoje tem que sair desse cabaré, porque se tu não sair hoje desse cabaré tu vai morrer”. O cara me falou assim, um velho já experiente de garimpo: “Tu vai morrer, sai”. Tu acha que eu dormi naquela noite?

Nesse dia eu fui na grota, chorei muito, tomei um banho, um banho de água bendita. Lembro que esse dia foi o que mais me impactou, que pensei estou aqui, viva, tomando água da natureza, sentindo a água me tocar. Tou aqui, chocada, mas aqui. A grota é um buraco com uma ponte em cima, e lá tu pode lavar roupa, pode tomar água, pode se banhar, porque a água vai correndo… E eu deitei ali e fiquei um montão de tempo. Não queria chegar no cabaré. O homem do lado da gente falando… “gostosa”. Eu não queria estar ali.

Aí terminei de tomar meu banho, me assear, lavar minha roupa, fui estender a roupa, esperei o almoço, fui comer. E os outros peões falavam: “O que foi, mira? Bora, te levo pra outro garimpo”. Eu falei: “Como?”. E eles: “A gente te leva, tem uns índios que levam as mulheres [para outro garimpo próximo]”. E eu perguntei: “Onde fica isso?”. E eles: “É longe daqui, tem que andar duas horas, mais ou menos, dentro do mato. Tem que ser um índio de confiança”.

Lembro que peguei minha roupa, dobrei, fiz minhas malas, paguei os 19 gramas, me despedi da cozinheira, ela gostava muito de mim, me despedi dos trabalhadores desse homem, dono do cabaré, que tinha máquina, além do cabaré tinha máquina, tinha cantina, tinha muito dinheiro. E fui.

Nunca tive um cliente índio

Quando passou uma hora [de caminhada], descansei no meio do mato com dois índios e dois brasileiros que iam pelo mesmo caminho. Os índios viajam de um acampamento pra outro e nunca me faltaram ao respeito. Pelo contrário, a gente buscava brincar com eles: “Ah, tu gosta de mulher, tu gosta de chupar?”. E eles diziam: “Eu não, eu casado, minha mulher”.

Nunca tive um cliente índio. Se eu tivesse estado com um índio, eu teria sido expulsa na hora. Ou pelo menos eu teria sido recusada por todos os peões, me veria obrigada a sair desse garimpo, porque não teria clientela nenhuma. Pra maioria das pessoas, os índios não têm higiene, não têm aquele cuidado. E são praticamente inocentes, é como estar se aproveitando de uma situação que não tem nada a ver. Se é por sexo, tem muito peão brasileiro que está aí pra sexo e se é por ouro, são os mesmos brasileiros que podem te oferecer ouro. Mas um índio? Não sei, é um pensamento aqui que a gente tem sobre eles.

Eu nunca vi uma índia se prostituir ou ser explorada, mas já escutei histórias contadas pelos próprios peões. Um dia tava um cara sentado comigo e disse, olhando pra uma criança de uns 12 anos: “Ixe maria, aquela chinoquinha, linda demais, aqueles peitinhos bonitos, se a periquita dela for limpa, eu como”. O pensamento daquele homem me deixou irritada, e eu levantei e falei um monte de coisas pra ele.

Escutei mais de uma vez eles conversarem entre eles que tinham comido chinocas que foram vendidas pra eles. Naquele garimpo as mulheres indígenas já tomavam [cachaça], se sentavam com os clientes, brigavam com as outras mulheres brasileiras por homem.

Corre, as índias vão nos matar!

Tinha duas semanas que eu havia chegado no novo cabaré, da Pequena [nome fictício], e inesperadamente aconteceu um grande problema pra todas as mulheres que trabalhavam de puta. Recordo de me levantar pra tomar um banho, como de costume. Era comum ver os índios a toda hora andando no rio, assim não percebi nada demais. Vi a Rubi [nome fictício], ela levava uma torta em suas mãos pra celebração do aniversário do famoso Sorriso [nome fictício], um cara muito poderoso, invejado por outros homens e que pagava bem pra todas as mulheres.

Depois de alguns minutos, ela veio correndo, com o rosto aterrorizado, e dizendo: “As índias, as índias, elas vêm para nos matar! Corre, corre!”. Eu saí correndo como uma bala pra despertar minhas amigas, aos gritos.

Dulce [nome fictício] estava confusa e a Branca [nome fictício] estava tão nervosa que queria correr pra dentro da mata. E eu pensava: não, de que vale nos esconder dentro da mata se vão nos alcançar? Elas conhecem suas montanhas como se fossem a palma das mãos. “Pequena, Pequena”, gritamos todas, mortas de medo. Ela despertou, porque as índias romperam parte da sua cantina com a ponta de um machado, enquanto diziam muitas coisas em seu idioma. Eu não entendia a menor palavra.

Eram muitas, entre 50 mulheres indígenas e 13 jovens, todas já com filhos e filhas. Estavam pintadas de cor vermelha. Outras somente tinham uma massa em seus rostos de cor branca, que eram cinzas de seus parentes defuntos. Isso identificava que elas estavam de luto, mas mesmo assim elas foram à luta contra todos os garimpeiros. Havia uma senhora mais velha de joelhos, chorando com uma grande dor, expressando tristeza, nojo, raiva, impotência. Havia outro índio que falava um português perfeito e também o idioma deles, e então ajudou a traduzir o que a senhora falava.

Ela falava que estava cansada de ver [em sua xapona] os homens chegarem bêbados. Os homens, que deveriam defender suas esposas e filhas, chegavam brigando e batendo nas suas esposas, brigando com seus irmãos indígenas ao grau de se matarem. Senti seu choro em meu coração. Quis abraçar a velha e dizer que tudo isso ia acabar, mas pra quê, se era uma grande mentira? O tradutor dos indígenas disse o seguinte sobre o pedido de toda a sua comunidade:

“Garimpeiro não vende cachaça pra índio! Índio toma cachaça, índio cabeça doida, índio mata outro irmão, índio trata mal a chinoca, chinoca chora muito. Índio antes tranquilo. Cabeça louca, culpa de cantineiro. Filho pequeno fica doente, água suja. Cantineiro vende só comida pra índio. Se índio souber que rapariga, cantineiro, garimpeiro vende cachaça, índio vem e mata todo mundo. Todos vocês respeitem a índia, a criança, tudo mais, tá bom?”.

Então as índias fizeram a gente cozinhar pra todos eles, colocaram a gente a cozinhar peixe, frango, carne. E elas vendo a gente cozinhar. Era uma humilhação, sabe? E a gente vai fazer o quê? Não vai poder falar que não. E aí saíram todas as mulheres cozinhando, cada uma 2, 3 quilos de arroz, carne, frango na brasa. E elas estavam todas sentadas assim, com um monte de filhos pequenos, os homens indígenas protegendo elas. Era muita coisa. Elas ficaram desde as 7 horas da manhã até as 5 horas da tarde, uma hora antes de o sol se esconder. Eles têm uma cultura muito bacana nesse sentido. Eles têm um horário pra tudo. E eles foram dormir na xapona deles.

As mulheres indígenas proibiram vender cachaça pro esposo, tava proibido dar licor pra mulher e proibido dar armamento. Aí o filho [da mulher que falou] disse: “Não, armamento sim!”. O outro indígena dizia que precisava se proteger contra o inimigo, do outro garimpo. Percebi que para os homens era importante a arma, mas que as mulheres não gostavam, porque eles começavam a disparar quando ficavam bêbados, e a agressão na comunidade tinha aumentado muito.

Todas as mulheres nos apontavam como se fôssemos as culpadas de suas tragédias, entre raiva e gritos nos suplicavam pra que a gente deixasse suas vidas tranquilas. Pediram também que depois das 9 horas da noite a gente abaixasse o volume da música, porque a xapona ficava muito perto, a uns 250 metros, e era difícil pra eles dormir com barulho, ao som de Marília Mendonça, Gusttavo Lima, todo tipo de sertanejo, ou funk. Com toda essa situação, entendi que as mulheres estavam brigando por sua tranquilidade, por seus direitos. Dentro de mim recordei então que em minhas veias corre o sangue índio de meus ancestrais.

Os garimpeiros, por um momento, creio que se sentiram mal, mas seus objetivos continuavam em suas cabeças. Às 7 horas da noite, todas as mulheres dos cabarés e os donos de máquina se reuniram para falar sobre o que tinha acontecido. O cabaré estava cheio de clientes. Trabalhamos muito nesse dia, o serviço foi até 4 horas da madrugada. Música baixa, mas todo mundo ali.

Para os indiozinhos, cachaça e cacos de 51

Um dia eu tava bêbada e deixei meu fuscon aberto. E como todo indígena, dá pra perceber isso deles, que eles são muito curiosos, parecem crianças. E quizás eles viram a mala aberta, viram algumas coisas que lhes chamaram a atenção, pegaram xampu, pegaram desodorante, um lençol novo, cremas, esse tipo de coisa que eu acho que eles gostaram. E depois, aos poucos, eu vi uma índia com o meu lençol, que era do meu filho. Mas eu acredito que não foi ela, que foi o esposo que pegou, porque ela tem um bebê. E aí eu pensei: deixa! Mas fiquei assim, porque era o lençol do meu filho, quando era bem bebezinho. Era um lençol de panda branco com preto, e eu gostava demais desse lençol. Aí eu perguntei pra ela: “Quem te deu esse lençol?”. E ela me olhou como quem não sabia, que não hablaba mi idioma. E eu: “Ai, índia safada, tu sabe sim, tu roubou o meu lençol, era do meu filho, eu tenho um filho também”. E ela sorriu pra mim.

A gente brincava com elas, com as índias, né? Nós dávamos muitos dulces, eles comem muitos dulces de pacote, balinha, pirulito, bolacha Maria. Os donos de cabaré, de cantina, também dão um monte de dulces para as crianças.

Os garimpeiros, a maioria bota aquelas caixas de 51 [cachaça] e quebra, eles jogam ela no ar e atiram e terminam quebrando. E os índios são acostumados a andar no mato descalços, é seu hábito natural, ninguém mais conhece isso melhor que eles. E um indiozito desses de 4 anos, bem parecido assim com o meu filho, cortou o dedo, faltava só um pouquinho pra sair do lugar.

Entrou uma coisa assim no meu corpo, ele chorava com aquele sentimento. E eu fui ajudar o indiozinho. Peguei ele, sentei na área onde dançam as mulheres, as stripteasers [que ganham menos, cerca de 100 reais, pra ficar nuas no cabaré], e ele botava um monte de sangue. Era um sangue que não parava. Peguei umas meias e coloquei em cima dele, fui dar um medicamento e meu patrão falou assim pra mim: “Não é para dar nenhum medicamento para eles não, porque se acontece alguma coisa eles vêm pra cá pra tirar a sua cabeça. Eles não deixam que ninguém ajude eles. Deixa eles, não sei onde está a mãe”.

Daí o meu patrão começou a falar pros outros: “Cadê a mãe desse menino?”. Aí foram buscar a avó, porque a mãe estava doente, não sei que tipo de doença tinha, mas estava na xapona dela. E ele disse: “Chinoca, pega o menininho, cortou!”. Ela pegou assim, parecendo um boneco dentre los brazos, no colo, e levou ele pertinho, em uma grota toda suja, porque essa grota, quando eu cheguei, estava muito limpinha, mas depois estava muito suja porque tavam trabalhando já, explorando a terra. Tavam destruindo, sabe? Depois de uns poucos dias eu voltei a ver o menino, só que o dedinho não voltou a se movimentar mais, eu acho que ficou duro, entende?

Tristeza, eu senti pena deles. Porque às vezes a consciência da pessoa que tá estudada, que sabe as consequências dos atos, quando chega no garimpo se transforma, parece bicho. Se transforma em bicho, perde a essência de educação, de empatia, de preocupação. Então a maioria dos garimpeiros não está nem aí se prejudica os bebezinhos. Os garimpeiros dão cachaça pras crianças. Eu vi essas situações, não aceito, mas não tinha outra [opção]. Não aceitava, mas fazer o quê? Eu sozinha ali, se nem eu mesma podia me cuidar, me proteger.

Tinha um grupo que vendia maconha, haxixe, pedra, coca, distribuía pros novatos, os jovens que entravam no garimpo. Alguns jovens indígenas também compravam droga com o ouro que conseguiam fazendo algum tipo de serviço pros donos das máquinas. A diária paga pros jovens era de 1 grama de ouro [200 reais] pra descarregar as mercadorias do avião e levar até o barraco do patrão ou pra buscar a madeira pra construção dos barracos.

Quando descobri que os índios têm sentimentos

A gente tinha que subir uma colina, atravessar as máquinas e chegava na xapona deles. Normalmente nós não somos bem recebidos lá, porque é a intimidade deles, mas eu cheguei a entrar em um lugar desses.

Foi por circunstância de emergência, porque tinha acontecido algo muito forte entre eles. Eles se golpearam, uma guerra entre eles mesmos. Um queria expulsar o outro grupo porque tinham roubado e já não era a primeira advertência do chefe na área deles. O outro não aceitava porque sentia que tinha o mesmo direito do chefe. E se pegaram com pau de bambu, começaram a dar um contra o outro na cabeça. Eles literalmente partiam a cabeça. Era desde o más pequeño, desde os 6 anos, até o mais velho. Entre toditos, isso foi uma guerra assim visual que eu vi. Estavam pintados de preto, outros com pintura vermelha na cara.

Nesse mesmo dia, à noite, chegou alguém deles e pediu à cantineira que chamasse um piloto que viesse buscar um fulano de tal, que estava morrendo. E todo mundo tava assim: quer ajudar, mas dá um trabalho, vai demorar, melhor amanhã… Claro, não é a família deles, né? E o cara insistindo: “Liga, liga, liga por rádio”. Lembro que mandei uma mensagem: “Mira, aqui está um índio, está morrendo e necessitam sacá-lo, porque se não sacam vai ser outro problema”. Quando eu entro na xapona [em alguns momentos, Patri usa a palavra xapona para falar da comunidade, e não necessariamente da parte de dentro da casa] tem outro índio pior que ele, porque arrebentaram a coluna dele. Estavam velando esse índio. E eu pensava que era um velório em uma caixa, tipo a gente. Mas não, penduraram ele em uma árvore, na mata, por três, quatro dias. Que vaina és esa? Una vaina que yo nunca había visto. Meu Deus do cielo amado! Me saque de aquí.

Me deu tudo, me deu asco o cheiro. Mas tavam chorando o morto. E o morto ali na mata, na árvore. No outro dia vi as índias com as cinzas no corpo. E elas têm que ficar com as cinzas no corpo por um mês, esse é o luto deles por um irmão, um parente. E eu aprendi uma coisa nova na minha vida.

Quando chegamos, todos estavam chorando, cantando, muito bêbados, cantando uma canção muito bonita. Não sei o que diziam, o que significa, mas com aquele sentimento. É difícil aceitar a forma como velam um parente, mas é sua cultura. Me senti muito triste, porque eles estavam muito tristes. Eu achei humano, [porque] eu pensava que eles não tinham esse tipo de sentimento, tinha uma ideia de que eles eram brutos, selvagens e violentos. Mas eu descobri que eles se sentem doídos por um ser querido deles. Eles sofrem por seus parentes, eles choram, eles velam seus mortos, eles cuidam dos seus filhos. Da sua maneira, mas fazem.

Mesmo com a brutalidade, que marca, eu voltei

O que faz uma pessoa querer voltar pro garimpo? O dinheiro, o ouro. Ter um sonho e uma expectativa de ganhar dinheiro rápido. Acreditar em algo que você não sabe se vai dar certo, mas tem que testar. Ninguém te abre a porta se você não bate nela. Não é nem luxo, porque luxo é na cidade. Mas é ambição. E acho que nessa categoria eu posso me colocar, porque aqui na cidade eu vou lutar, mas não vou obter o mesmo resultado em pouco tempo. É arriscado, é perigoso, sim, mas é um projeto, uma perspectiva.

De toda a minha experiência, eu ressaltaria não a satisfação de ter ouro no bolso, mas a brutalidade com que a mulher é tratada e que marca. É o que mais eu experimentei. Nunca gostei do trato, o respeito é muito pouco, a consideração, mínima. A autoestima da mulher sempre tá como puta, não como uma mulher guerreira. Tem que ser muito forte, tem que ter uma leoa dentro de você se te ofendem. Sabendo que podem te matar, você vai ter que brigar.

A VENEZUELANA PATRI (NOME FICTÍCIO) RESOLVEU SE ARRISCAR NO GARIMPO APÓS UMA SUCESSÃO DE EXPERIÊNCIAS TRÁGICAS, COMO ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA E ESTUPRO NA JUVENTUDE. FOTO: DANIEL TANCREDI/SUMAÚMA

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