Um programa para a agricultura familiar brasileira. Por Jean Marc von der Weid

Desenvolvimento Agrário promete apostar na agroecologia para a produção de alimentos. Mas será preciso um programa que articule produtores e universidades. Formação, crédito, seguro-safra e compras públicas serão essenciais

em Outras Palavras

1. Introdução

Tomei conhecimento da demanda do novo MDA, solicitando à sociedade civil contribuições para o programa de assistência técnica e extensão rural (ATER) do governo. Embora atrasado na minha contribuição, quero dar algumas ideias a partir de 40 anos de experiência como diretor e técnico de uma ONG de promoção do desenvolvimento agroecológico da agricultura familiar, a AS-PTA, e como participante do CONDRAF ao longo dos 14 anos de sua existência. Neste período, fiz parte do processo de formulação e de aplicação das duas políticas mais significativas (pela sua amplitude) que incidiram sobre as formas de produção adotadas pelos agricultores familiares: a de crédito e a de ATER.

2. Uma questão de método

Fiquei surpreso com a falta de uma avaliação da aplicação destas (e de outras) políticas por parte do governo. Isto não aconteceu nem antes das eleições, na formulação das propostas do candidato popular, nem no processo da transição, que se concentrou na formulação de propostas genéricas, nem agora, com o novo MDA em ação. Pedir propostas de programa de ATER, sem uma visão do impacto do conjunto das políticas adotadas e uma avaliação dos acertos e erros de cada uma delas, me parece um convite para a repetição de problemas já vividos no passado.

O MDA deveria ter chamado um ou mais seminários abordando os aspectos mais gerais e mais específicos apontados acima. Destes seminários deveriam participar desde os que, nos governos de Lula e de Dilma, formularam e executaram estas políticas, além das organizações dos agricultores que viveram os impactos destas políticas, das organizações da sociedade civil que contribuíram neste processo e dos especialistas das academias que estudaram o que ocorreu.

Sem esse esforço estamos navegando às cegas.

Na equipe de transição afirmou-se, com muita ênfase, o princípio da adoção da agroecologia como o modelo produtivo a ser promovido pelo governo, no que concerne à agricultura familiar. Será que esta proposição corresponde a uma autocrítica implícita sobre a orientação das políticas públicas aplicadas no passado?

A ênfase atual na opção agroecológica representa um avanço sobre os conceitos dominantes nas equipes governamentais nos governos de Lula e de Dilma, que viam a agroecologia como uma prática dirigida a um nicho de produtores e não como um modelo a ser generalizado. Por outro lado, sem uma avaliação das políticas postas em prática no passado, especificamente no pouco que se fez na promoção da agroecologia, fica ainda mais precária a discussão de como levar a agroecologia para o conjunto da agricultura familiar.

E, desde logo, fica-se sem saber se esta meta maior (levar a agroecologia para o conjunto da agricultura familiar) é viável no prazo dos quatro anos deste governo. A meu ver, ela não é viável e, não o sendo, torna-se necessário discutir metas adequadas para favorecer a transição agroecológica. Torna-se necessário, também, refletir sobre o que propor para a parcela da agricultura familiar que não poderá ser integrada nesta transição.

A meu ver, existe uma adesão política à proposta da agroecologia, o que muito me alegra, mas pouca noção sobre as implicações desta decisão. Como fazer a promoção do desenvolvimento agroecológico não é algo que esteja dominado nem pelos técnicos do governo nem pela maioria das organizações dos agricultores e das entidades que se voltam para apoiar a agricultura familiar, sejam elas estatais sejam elas da sociedade civil.

Neste ponto aproveito para lembrar de uma experiência recente de promoção massiva da transição agroecológica, tentada nos dois primeiros anos de um governo progressista no Sri-Lanka. Vivendo os mesmos limitantes que estamos enfrentando, o governo deste país asiático fracassou redondamente e teve que abandonar a política, inclusive por pressões dos próprios agricultores familiares. É um alerta importante para que evitemos todo voluntarismo ideológico ao formular e executar políticas de promoção do desenvolvimento agroecológico.

A iniciativa do DATER/MDA, ao convocar propostas sobre um programa de assistência técnica agroecológica, comete o erro de achar que isto poderá se fazer sem que se ajustem as políticas de crédito, de seguro da produção, de mercado, entre outras. Além disso, comete-se o erro de não rever os modos de se fazer a promoção do desenvolvimento agroecológico, derrapando, na prática, para a adoção de uma abordagem que funciona bem para um modelo de desenvolvimento convencional, de tipo agroquímico e motomecanizado. Neste modelo, as políticas que facilitam o desenvolvimento são operadas separadamente. As soluções técnicas são formuladas por empresas de pesquisa, como a EMBRAPA ou as estaduais; estas soluções são levadas aos agricultores pela assistência técnica; os bancos entregam créditos para financiar a adoção destas práticas; o mercado ou o governo compra os produtos. São operações separadas, embora integradas conceitualmente em um modelo compartilhado pelos diferentes atores.

A prática da promoção da agroecologia aponta para a necessidade de se integrar todas estas políticas em programas dirigidos para grupos de agricultores familiares, definidos em espaços territoriais e sociais com alguma unidade física, organizacional e de agroecossistema produtivo. Ao invés de se aplicarem políticas separadas e de forma universal, o governo deveria oferecer recursos para projetos integrados de desenvolvimento, colocando-os em um mesmo orçamento a ser gerido pela entidade que assume a promoção do desenvolvimento de um conjunto de beneficiários bem definido. Crédito, pesquisa aplicada, fomento para a experimentação camponesa, assistência técnica, beneficiamento e mercado deveriam fazer parte de um mesmo pacote de recursos.

3. Como oferecer projetos integrados?

Não existe modo de entregar recursos para projetos integrados no presente momento. Seria necessário criar um fundo de promoção do desenvolvimento com uma dotação robusta e licitar projetos a serem apresentados por entidades ou conjuntos de entidades, incluindo (idealmente) organizações dos agricultores, de ATER, de pesquisa, de mercado e de crédito. Formular o modelo destes projetos vai cobrar a contribuição de quem tem experiência nos diferentes aspectos que envolve a promoção do desenvolvimento. Vai ser um exercício complexo, até porque não existe um modelo único de abordagem de desenvolvimento adotado por todos os que hoje se empenham neste objetivo. Vai ser necessário modular a proposta de forma a que ela contemple diferentes abordagens, ao mesmo tempo em que o governo deve procurar ir propiciando intercâmbios entre os projetos locais de forma a que as melhores metodologias sejam aproveitadas, com o tempo, por todos os agentes.

Há experiências parciais de integração de diferentes políticas, em particular no programa Ecoforte, do BNDES/FBB. No entanto, esta experiência não inclui o crédito, um elemento chave para os projetos integrados.

Vai ser preciso ajustar o programa a limitantes legais. As práticas de crédito de maior sucesso entre as organizações da sociedade civil são os Fundos Rotativos, onde existe um financiamento não bancário dos agricultores. No entanto, se os recursos dos projetos integrados são definidos como doações para as entidades promotoras, não pode haver devolução por parte dos agricultores, mesmo que estes recursos fiquem nas comunidades dos beneficiários. É um dos impasses a ser superado.

Como não existe uma adesão maciça dos agricultores familiares para a adoção da agroecologia, não só este modelo aqui proposto deverá ter condições muito atraentes para o público, como vai ser preciso pensar em outras políticas dirigidas para os que não aderirem a ele.

A dimensão de um programa deste tipo, gerido por um Fundo de Desenvolvimento Agroecológico da Agricultura Familiar, fica na dependência de vários fatores: a quantidade de adesões entre os agricultores familiares; a existência de entidades de apoio de vários tipos (como já sinalizado acima) capacitadas para este fim; a existência de técnicos formados nas práticas e nas metodologias da promoção da agroecologia. Na minha experiência estes fatores limitarão a demanda inicial e/ou a capacidade operacional das entidades de apoio deste programa e deste Fundo. Vai ser necessário inventariar esta demanda e a capacidade instalada para atendê-la para dimensionar o tamanho do programa. Um exercício de avaliação dos custos destes projetos deverá ser feito, respeitando a diversidade de situações existentes no país. Entidades envolvidas na promoção da agroecologia em distintos biomas e regiões deverão ser chamadas a contribuir nesta formulação.

Finalmente, vai ser preciso enfrentar o problema legal da forma de relação entre o governo e os executores destes projetos. No passado, tanto o modelo de convênios como o de contratos mostraram-se problemáticos. O jurídico do MDA terá que se debruçar sobre estes problemas e buscar a melhor solução para eles. É mais uma das razões que me levam a considerar que uma avalição das políticas previamente aplicadas é mais do que necessária.

4. O que fazer com os agricultores familiares que não quererão ou não poderão ser beneficiários deste programa? 

Acredito que esta parcela da agricultura familiar será a mais numerosa ao longo deste governo. Se o programa de apoio a projetos integrados de desenvolvimento agroecológico chegar a contemplar 10% dos agricultores familiares, algo como 380 mil famílias, já será um tremendo salto qualitativo no avanço da agroecologia. E o que fazer com os cerca de 3,5 milhões de outros?

Devemos lembrar que existem cerca de 2 milhões de agricultores familiares classificados como minifundistas, isto é, com áreas disponíveis menores do que o módulo fiscal de cada município. Embora o módulo varie muito de lugar para lugar, a grande maioria desta categoria tem menos de 2 hectares de terra, sendo que nem toda ela pode ser plantada, por várias razões. Estes produtores são candidatos natos a programas de reforma agrária, mas não vejo as condições econômicas e políticas para um amplo processo de aumentar o acesso deste público a novas terras. A melhor proposta possível para estes agricultores é a criação de um programa de melhoria da qualidade alimentar/nutricional das famílias, incrementando a produção de hortaliças e frutas, a criação de animais de pequeno porte (porcos, galinhas, ovelhas, cabras, abelhas, peixes, outros) e alimentos básicos como feijão, milho, mandioca, trigo, centeio, arroz, dependendo da região. Serão sistemas intensivos no uso do espaço e dependentes, sobretudo no semiárido, mas não só, de infraestruturas de captação, depósito e distribuição de água de chuva. São muitas, sobretudo no Nordeste, as experiências deste tipo e que podem ainda gerar pequenos ganhos financeiros com o comércio de curta distância, além da melhoria alimentar e nutricional das famílias.

Pode parecer contraditório indicar que existem poucos técnicos em práticas e métodos da agroecologia, assinalar que um programa agroecológico terá limites por causa disso e propor um programa de autoabastecimento alimentar agroecológico envolvendo 2 milhões de famílias. A meu ver os projetos técnicos para este fim serão muito menos complexos e demandadores de tempo e investimentos de todo tipo para se viabilizarem. E a formação de técnicos com base nas experiências existentes, bastante mais simples também. A meu ver este programa deveria ser dirigido prioritariamente para as mulheres camponesas, como já é o caso nas experiências citadas. Devido à situação de pobreza deste público não deve haver recurso de crédito, mas doações para a construção de infraestruturas hídricas (ver o programa que já existiu, “Uma Terra e Duas Águas”), para construção de cercas e abrigos para animais, compra de animais, de sementes e de mudas de árvores frutíferas ou para outros fins, de esterco para adubação, de insumos para a produção de caldas de controle de pragas e doenças.

Como técnicos com experiência nestas práticas não abundam, o governo terá que financiar um programa de formação específico, usando o apoio de universidades e da EMBRAPA.

5. O que propor para os agricultores familiares que não estarão contemplados nas duas propostas acima apresentadas? 

Estamos falando de 1,4 milhão de agricultores. Uma minoria se incorporou ao modelo agroquímico promovido pelos governos de FHC, Lula e Dilma, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste. Outros são agricultores tradicionais ou produtores adotando sistemas híbridos, com práticas tradicionais e convencionais.

Estas categorias são as que mais contribuem, atualmente, para a produção de alimentos de base para o mercado interno. A parcela, estimada em cerca de 500 mil, adotando as práticas convencionais, vai necessitar da manutenção das políticas universais consagradas pelos governos citados acima: crédito, preços mínimos, seguro, compras governamentais e assistência técnica convencional.

Chamo de políticas universais aquelas que se dirigem, indiferenciadamente, a todos os interessados, que as acessam individualmente. Ou seja, o produtor se dirige à Emater local para assistência na formulação de um projeto de crédito e o apresenta nas agências dos bancos públicos que executam o Plano de Safra. Se este produtor ambiciona vender seus produtos ao governo, ele deverá formular um projeto e apresentá-lo à CONAB, seja para suprir a demanda da PNAE, a do PAA ou a formação de estoques reguladores. Este processo é totalmente distinto do descrito na proposta de projetos integrados de desenvolvimento agroecológico, ou os projetos de autosuficiência alimentar apresentados acima. Nestes casos as políticas são integradas em programas e o acesso é coletivo e dirigido a grupos organizados de produtores em territórios bem definidos.

Apesar de não haver condições para levar este público a adotar a produção agroecológica, é possível promover alguns avanços na direção da produção de alimentos mais saudáveis. Mesmo uma assistência técnica convencional sabe como lidar (ou pode se informar a respeito nos centros de pesquisa) com sistemas de manejo integrado de pragas, invasoras e doenças, reduzindo o volume e a toxidade dos produtos químicos de controle. Entretanto, vai ser preciso fazer um exercício de formação das gerências dos bancos públicos, de forma a que contribuam e não inibam o uso destas práticas ao receberem projetos de crédito dos agricultores.

Dado o fato de que uma parcela significativa deste público estar integrada nos circuitos de produção e comercialização de commodities, vai ser preciso criar políticas de preços mínimos para produtos alimentares muito atraente, além de crédito facilitado, combinadas com uma forte demanda das compras governamentais para atrair mais agricultores familiares a se converterem em produtores de alimentos. E a cobertura de um seguro safra robusto.

6. Iniciativas em apoio aos programas de promoção da agroecologia

A promoção da agroecologia já acumulou muita experiência em todo o país nos últimos 40 anos, mas as abordagens, métodos e práticas não foram sistematizadas e difundidas. Seria da maior importância que o governo promovesse um amplo processo de sistematização e avaliação destas experiências, visando a socialização dos melhores resultados entre os praticantes, sejam eles as entidades de apoio ou as entidades dos agricultores. A produção de materiais didáticos em forma de manuais e vídeos educativos permitiria ampliar o número de técnicos capazes de assumir novos programas integrados. O diálogo com as universidades e centros de pesquisa teria papel fundamental nesta iniciativa.

Por outro lado, não vai ser possível atrair uma ampla parcela de produtores, sobretudo aqueles já integrados no circuito de commodities, sem que se adote uma política que elimine ou, pelo menos, alivie a concorrência desleal que favorece os que adotam o modelo do agronegócio. A suspensão de subsídios, a cobrança de impostos e a inibição de práticas predatórias ao meio ambiente teria um papel gigantesco para favorecer a ênfase no esforço de promover a autossuficiência na produção alimentar no Brasil. E entre os que usam práticas agroquímicas na produção de alimentos, a ANVISA deveria pôr em prática um sistema de controle da contaminação por agrotóxicos dos produtos que se dirigem à mesa dos brasileiros.

Finalmente, cabe ao governo (incluindo o MEC e o MDA) abrir um debate voltado para a redefinição dos currículos das universidades e escolas técnicas rurais, procurando criar uma formação voltada para a agroecologia desde o ciclo básico. Até agora, apesar dos progressos, os centros de ensino rural estão orientados para uma formação convencional, agroquímica, e oferecem apenas uma ou outra cadeira que introduz o tema da agroecologia. No nível de pós-graduação existem mestrados e doutorados com abordagem agroecológica, sempre dificultados pela contradição entre a formação de base convencional e um currículo agroecológico em total contradição.

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