Inácio França, MZC
“É como se tivesse levado um tapa na cara dado pelos homens brancos do Conselho Federal de Medicina”. Foi isso que Tânia Bezerra, clínica geral e especialista em Medicina de Família e Comunidade, sentiu ao ver uma postagem do CFM, assinada em conjunto com os Conselhos Regionais de Medicina, em campanha contra o programa Mais Médicos. Na publicação, fixada no alto do perfil do Instagram, há a foto do rosto de mulher negra ao lado do texto “Você confiaria a vida da sua mãe a um médico não habilitado?”. Mais abaixo, uma mensagem sobre a revalidação do diploma e o slogan “Medicina é coisa séria”.
Na seção de comentários, mais críticas do que elogios à postagem, com várias pessoas relacionando a imagem da negra às médicas cubanas que participaram da primeira versão do programa, ainda no governo Dilma Rousseff.
Para médicas negras como Tânia Bezerra, no entanto, o post foi encarado como um insulto: “Durante toda a minha vida profissional, convivi e enfrentei situações racistas. Quantas vezes, numa emergência de hospital, atendia uma pessoa e, depois, escutava a pergunta ‘e a médica vai vir?’ Agora, vem o CFM com uma postagem dessas, usando a foto de uma negra para atacar um programa que conseguiu chegar aos locais mais distantes e beneficiou quem mais precisava”.
A coordenadora do programa de Residência Médica da UPE, Marianne Araújo Sabino, acredita que o conteúdo publicado permite a leitura racista, pois reforça a ideia de que “nós, mulheres negras, sofremos o não reconhecimento, como se o espaço da medicina não fosse feito para negras. Quantas vezes não fui confundida com auxiliar de enfermagem ou a dos serviços gerais? Não que seja funções menos dignas, mas são situações que dimensionam o preconceito, pois as pessoas não conseguem enxergar uma mulher negra como médica”.
Marianne faz algumas ressalvas à interpretação da postagem. “O CFM tem usado imagens de mulheres negras em outras postagens, não foge muito do padrão que vinham fazendo. Não é só por usar a foto de uma negra, que a postagem foi racista. Há outro aspecto que também é importante, pois a população negra é a maior beneficiária do programa que o Conselho ataca, então é preciso estar de olho também no oportunismo de usar a imagem de uma negra e se perguntar o que o CFM faz em defesa da população negra que não tem acesso à saúde”, questiona.
Fora do ambiente médico, o conteúdo postado pelo CFM também foi percebida como uma manifestação racista. Mestra em Educação e analista pedagógica, a representante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Sheyla Xavier afirmou que a entidade “repudia veementemente essa publicação, esse posicionamento. Acreditamos que as pessoas negras têm que ser vistas cada vez mais com as suas potencialidades. Nós não aguentamos mais estar aí combatendo situações racistas e não celebrando os nossos saberes, nossas potencialidades e tudo que podemos oferecer à sociedade e estarmos sempre relegados a esse lugar, o lugar da incompetência, o lugar do trabalho braçal, de não ter o direito também a exercer um trabalho que é visto aí para ser ocupado apenas pelo branco ou pelas classes mais elitizadas da sociedade”.
Para a ativista feminista, historicamente “as pessoas negras têm seu potencial e sua competência sempre ligadas à dúvida. A falta de acesso à educação de qualidade e a espaços mais valorizados na profissão, não só na medicina como em qualquer outra, causa ainda um estranhamento e uma reação da sociedade, cheia de racismo, preconceitos e maus tratos em relação às pessoas negras”.
Reação imediata
A postagem recebeu, até o momento em que este texto foi publicado, 1.343 comentários, número bem maior do que a média das publicações do Conselho.
O primeiro a comentar foi o médico infectologista Luiz Henrique Sangenis, que foi incisivo: “Sou médico e totalmente contrário a essa postagem descabida do CFM”.
A ativista antirracista Rosália de Oliveira Lemos foi direto ao ponto: “Essa campanha é muito desagradável, usar uma imagem de uma mulher negra é, no mínimo, desastrosa, uma vez que nos associa a uma pessoa que não tem qualificação para o exercício da profissão”.
A médica pernambucana Paulette Cavalcanti, professora da UPE e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, também criticou a publicação afirmando que o post é “racista, preconceituoso e apelativo sobre uma questão tão séria para todo o Brasil”.
A ex-senadora pelo PT de Rondônia, Fátima Cleide, que é negra, comentou assim: “Além de racismo e misoginia esta campanha é também xenófoba”.
O jovem negro Lucas Vieira, estudante de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que usa no Instagram perfil @viieirinha14 questionou se “a pessoa preta da imagem, seria o profissional ou a mãe? É através dessa subjetividade que o racismo é naturalizado no nosso cotidiano”.
Ontem, terça-feira (6), em aparente recuo, o Conselho postou mais uma publicação contrária ao Programa Mais Médicos. Desta vez, foi usada uma foto de um menino branco acompanhado da frase “Você confiaria a vida do seu filho a um médico não habilitado”.
Bônus: desinformação
Médicos e médicas registraram que o CFM não foi só racista na campanha contra o Mais Médicos, mas apelou para a desinformação – ou fake news, para usar a expressão que se popularizou após a eleição de 2018. No texto que acompanha a imagem, a equipe de comunicação alerta para a possibilidade das pessoas serem atendidas por “alguém que não comprovou conhecimento em medicina”. Concluindo que “pessoas que possuem diploma de medicina obtido no exterior só podem exercer a profissão no Brasil após aprovação no Revalida”.
Acontece que o edital da nova versão do Mais Médicos, publicado em 19 de maio, estabelece que para preencher as 6.252 vagas disponíveis, os médicos e médicas precisam ser “formados em instituições de educação superior brasileiras ou com diploma revalidado no País, com registro no Conselho Regional de Medicina” e “médicos brasileiros com habilitação para exercício da Medicina no exterior”. Não há a possibilidade levantada pelo CFM.
CFM explica
A assessoria do Conselho Federal de Medicina respondeu aos questionamentos da Marco Zero, explicando que “as imagens utilizadas na campanha em curso, a qual a pergunta se refere, representam pacientes brasileiros e não médicos ou profissionais da saúde; em suas ações publicitárias, o CFM tem buscado inserir imagens que representem a diversidade da população e dos médicos brasileiros, utilizando modelos com diferentes perfis de idade, etnia, sexo, etc.”. Para reforçar a justificativa, foram enviados links com postagens que comprovariam a explicação dada.
Essa não é a primeira vez que o CFM se vê vinculado a pautas da extrema-direita. Durante a pandemia, o Conselho se alinhou e fez vistas grossas à desinformação promovida pelo então presidente Jair Bolsonaro em defesa do uso da cloroquina e da ivermectina para “curar” a covid-19. Na época, o CFM emitiu um parecer esclarecendo que médicos que receitassem os medicamentos sugeridos por Bolsonaro para pacientes com covid não estariam cometendo infração ética.
A postura do Conselho, além de provocar um racha político sem precedentes entre os médicos brasileiros, levou a CPI da Covid a pedir o indiciamento do então presidente da entidade, Mauro Luiz de Britto Ribeiro. Meses antes, o Ministério Público do Mato Grosso do Sul já havia pedido sua demissão por abandono de cargo por ele ter faltado 873 vezes ao trabalho na Santa Casa de Campo Grande.
O atual presidente, empossado em abril de 2022, não é menos bolosnarista. Além de ter comemorado a vitória de Jair Bolsonaro, em 2018, publicando artigo na página do Conselho Regional de Medicina de Rondônia, José Hiran Gallo afirmou que o ex-presidente havia “se desdobrado” durante a pandemia e que a culpa do caos na condução dos esforços contra a covid-19 teria sido do Judiciário e da mídia. Em julho, às vésperas da campanha eleitoral, o CFM recebeu a visita de Bolsonaro e, mais uma vez, Gallo fez discurso em sua defesa.
* Colaboraram Giovanna Carneiro, Maria Carolina Santos e Raíssa Ebrahim.
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Imagem: Crédito: reprodução instagram @medicina_cfm