Acesso a medicamentos e esqueletos no armário. Por Reinaldo Guimarães

Relançamento do Farmácia Popular é ótima notícia. Mas algumas ideias fora do lugar que ainda perduram podem ser obstáculos na distribuição justa de remédios. Extensão do prazo de patentes e conceito equivocado de “inovação” são duas delas

No Outra Saúde

No Brasil, as despesas com saúde são o principal item nos gastos para as famílias de baixa renda. Destacam-se nesses gastos aqueles destinados à compra de medicamentos e daí resulta que a ampliação do acesso a esses produtos deve ser uma tarefa central do Sistema Único de Saúde. O principal programa com esse objetivo, existente desde o primeiro governo do presidente Lula, é o Farmácia Popular (FP), em suas três versões (Farmácia Popular do Brasil, Aqui Tem Farmácia Popular e Saúde Não Tem Preço). Recentemente, a ministra Nísia Trindade relançou o programa, que havia sido bastante negligenciado nos últimos anos.

Esse relançamento aperfeiçoou e ampliou o programa, sendo as mudanças mais importantes o aumento do número de produtos incluídos e um maior direcionamento da FP aos segmentos populacionais onde tais gastos pesam mais. Isto se deu mediante um critério socialmente orientado, tanto na adesão de novas farmácias ao programa quanto na inclusão automática dos participantes do Bolsa Família – 22 milhões de famílias – na modalidade de gratuidade completa.

O novo critério de adesão de farmácias privadas passa a obedecer a necessidades de saúde em cada território e não mais em critérios de mercado estabelecidos pelas redes de farmácias. Certamente, um passo muito relevante que deverá ter impacto sensível nos gastos das famílias bem como nos indicadores de doença e morte para algumas enfermidades.

Mas nem tudo são flores nas políticas de acesso a medicamentos, pois ao longo da conjuntura dos últimos seis anos foram realizadas movimentações e apresentadas propostas que vão no sentido oposto. São algumas ideias fora do lugar que, neste momento, aparecem como “esqueletos no armário” e, caso sejam implementadas, podem impactar negativamente a ampliação do acesso a medicamentos.

Vejamos:

1. A Lei de propriedade intelectual brasileira foi promulgada em 1996, apenas dois anos após a assinatura dos acordos TRIPS na Organização Mundial do Comércio (OMC). Esses acordos, datados do período de euforia neoliberal, promoveram uma radicalização do regime internacional de patentes em benefício dos países detentores da maior parte das patentes no mundo. Dentre as suas cláusulas havia a previsão de um período de até dez anos para que os países pudessem ajustar seus interesses às novas regras. O Brasil não apenas promulgou logo a sua lei como incluiu nela dispositivos ainda mais radicais, denominados TRIPS-plus. O mais relevante foi o parágrafo único do artigo 40 da lei, que estabelecia a extensão do prazo de proteção patentária além dos 20 anos previstos nos acordos da OMC por até 10 anos a partir da data da concessão da patente.

Pesquisa realizada em 2016 estimou que esse dispositivo implicou em um custo adicional para o SUS de R$ 2,1 bilhões relacionados a nove medicamentos selecionados. Outra estimativa indicou perdas de R$ 288,4 milhões para três medicamentos antirretrovirais (1). Em 6/5/2021, o STF declarou inconstitucional esse dispositivo (Ação Direta de Inconstitucionalidade 5529). Inconformada, através de seus representantes sindicais e de escritórios de advocacia, a indústria farmacêutica multinacional vem procurando encontrar brechas nessa decisão, sugerindo atalhos legais capazes de manter a extensão do período de proteção. Até agora não conseguiu, mas é essencial ficar atento. Essa é, talvez, a principal ideia fora do lugar e o esqueleto mais robusto a ser sepultado.

2. Somos todos a favor de políticas que estimulem a inovação. Mas em 2019 foi lançada proposta para estabelecer um regime próprio na precificação de medicamentos que apresentassem inovações em seu desenvolvimento e produção. A proposta, que foi objeto de estudos por uma comissão coordenada pela Anvisa e na qual participaram os ministérios da Economia (hoje Fazenda), Saúde e Justiça, prevê que medicamentos com inovações incrementais tenham seu preço definido pela empresa fabricante. O racional da proposta é que possam concorrer entre si nas farmácias, hospitais e nas compras governamentais medicamentos para indicações similares com e sem as inovações. O comprador poderá escolher entre o mais caro (com inovação) e o mais barato (sem inovação).

Conceitualmente, essa expectativa se sustenta na suposição neoclássica de que o mercado vai regular a decisão na aquisição de um produto quando uma empresa lançar um produto “incrementado” já tendo outro(s) “velho(s)” – sem a inovação – no mercado. Ora, todo o marketing sobre os prescritores nas farmácias, consultórios e hospitais será, naturalmente, focado no “incrementado” mais caro e a tendência será o fim-de-carreira do “velho”. Tendencialmente, teremos um mercado onde cada vez mais haverá produtos com essa precificação especial, haja vista a imensa flexibilidade daquilo que pode ser considerado uma inovação incremental.

O conceito mais disseminado dessa modalidade foi elaborado pela OCDE e apareceu em 1990. Uma das características da sua utilização são as grandes indeterminação e elasticidade de suas fronteiras. Podem ser focadas em produtos, processos, marketing, design, mudanças organizacionais etc. Por exemplo, mudanças de embalagem são também consideradas inovações incrementais, nesse caso uma inovação de marketing. Preços mais elevados significam restrição de acesso. Pergunto: o que terá acontecido com essa iniciativa que parece ser mais uma ideia fora do lugar e mais um esqueleto a ser concedido o merecido descanso?

3. Em 2021, através da Consulta Pública SEAE nº 02/2021, foi lançada proposta que enfraquece a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), transferindo da Anvisa para o então ministério da Economia (atualmente Fazenda) a sua Secretaria Executiva. No Brasil, por razões sanitárias e de proteção da economia popular e do SUS, os preços de medicamentos são controlados. Portanto, não há qualquer razão para que a Secretaria Executiva da CMED saia da esfera de competência da saúde (Anvisa), que desenvolve um trabalho técnico altamente especializado, para o ministério da Fazenda.

O sucesso da regulação sanitária e econômica de preços no Brasil deve-se ao seu caráter intersetorial, com diferentes ministérios atuando dentro de sua esfera de competência. O grande prejuízo da implementação dessa proposta seria o esvaziamento da Anvisa, com o deslocamento de um tema da ordem sanitária para a órbita econômica. É fundamental recuperar a capacidade técnica da Secretaria Executiva da CMED na Anvisa para que continue desempenhando seu papel de suporte à regulação de preços.

Devemos sempre lembrar que desde 2003 os preços no Brasil apresentam trajetória oposta à tendência mundial de inflação nos preços de medicamentos e isso deve ser creditado à CMED. É certo que sempre haverá espaço para aperfeiçoamentos no algoritmo que governa a precificação. Mas nunca no sentido de deslocar a política de controle da esfera sanitária para a esfera econômica. Por fim, vale notar que essa consulta pública, caso venha a produzir efeitos, poderá ser implementada mediante um decreto. Essa é mais uma ideia fora do lugar e mais um esqueleto dentro do armário.

 

Nota:
1) Paranhos, J. et al – O custo da extensão da vigência de patentes de medicamentos para o Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública 36 nº.11. Rio de Janeiro, Novembro, 2020. https://cadernos.ensp.fiocruz.br/csp/artigo/1252/o-custo-da-extensao-da-vigencia-de-patentes-de-medicamentos-para-o-sistema-unico-de-saude

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