Para o pesquisador, combater a desinformação a partir das bases acadêmicas requer que a ciência seja comunicada de “maneira simples, direta, coerente e, acima de tudo, imparcial”
Por: João Vitor Santos, em IHU
É preciso ir direito ao ponto: a desinformação tem uma raiz econômica. Isso tanto do ponto de vista das fake news como do chamado negacionismo científico. Embora ainda tenhamos o exemplo forte da pandemia de Covid-19, em que a letalidade do vírus e os riscos das sequelas da doença eram negados em “prol da economia”, também é preciso compreender que este fenômeno vem ocorrendo nos mais variados níveis da produção científica. “O negacionismo científico refere-se à negação consciente de fatos comprovados cientificamente por parte de indivíduos ou grupos. É importante frisar que muitas vezes o negacionismo não acontece pela falta de conhecimento científico, mas está associado a interesses particulares”, observa o oceanógrafo Thomás Banha.
Ele e os pesquisadores que integram seu grupo têm vivido de perto os efeitos desse negacionismo. De um lado, seus e outros tantos estudos comprovam a existência do chamado grande recifal amazônico, junto da Foz do Rio Amazonas. De outro, aqueles que, usando de fontes e métodos científicos, alegam a inexistência desses recifes na porção litorânea da Amazônia. Nesse caso, como em outros, a divergência é muito maior do que pontos de vista científicos distintos. Há interesses econômicos por trás. “No caso dos recifes da Foz do Amazonas, o negacionismo está diretamente ligado à exploração de petróleo. Alguns grupos que se beneficiariam da exploração vêm tentando diminuir a importância desse ecossistema, afirmando que esse ambiente não é relevante, questionando diversos aspectos como a vitalidade, a extensão e, até mesmo, a existência dele”, completa.
O caso veio à tona mais recentemente quando o Ibama negou licença para que a Petrobras realize perfurações na região. Além de questionar a decisão do órgão regulatório, muitos levantaram a tese de que recifes na Foz do Amazonas não passam de fake news. “Compilamos diversas evidências publicadas em revistas científicas para reiterar que o recife é fato e não fake: trata-se de um ambiente extenso, em contínuo crescimento, habitado por diversos organismos (de forma semelhante aos recifes mesofóticos encontrados em outras regiões), e de extrema importância tanto do ponto de vista ecológico quanto econômico”, contesta Thomás.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o pesquisador detalha como opera o negacionismo científico a partir as bases acadêmicas. “Infelizmente, essa tendência tem se tornado mais frequente. Vários estudos têm sido publicados como ‘preprints’, que são trabalhos disponibilizados em plataformas abertas antes de passarem pela revisão de especialistas da área. Embora essa prática permita que os autores recebam um maior feedback da comunidade científica, além da revisão por pares, e, também, aumente sua visibilidade, os ‘preprints’ podem ser usados para disseminar desinformação”, observa.
Por fim, o entrevistado reflete sobre o papel da ciência e do cientista na promoção do conhecimento e no combate à desinformação. “Como cientistas, temos a responsabilidade de informar a sociedade de maneira simples, direta, coerente e, acima de tudo, imparcial. O papel do cientista é gerar conhecimento e contribuir para as discussões e aplicações dos dados de maneira objetiva”, sintetiza.
Thomás Nei Soto Banha é oceanógrafo pela Universidade Federal do Pará e mestre em Oceanografia pelo Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo. É doutorando em Ecologia no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, com o projeto apoiado pelo Programa Bolsas Funbio – Conservando o Futuro. Possui experiência em Oceanografia Biológica e Zoologia e Ecologia Marinha, principalmente nas seguintes áreas: Recifes de coral, Recifes marginais, Conservação Marinha, Ecologia marinha, Mudanças climáticas, Branqueamento de corais, Scyphozoa. Juntamente com o professor Ronaldo Francini-Filho, tem atuado em pesquisas sobre recifes de corais na Foz do Amazonas.
Confira a entrevista.
IHU – No que consiste o negacionismo científico e como o podemos compreender a partir do caso dos recifes da Foz do Rio Amazonas?
Thomás Banha – Em poucas palavras, o negacionismo científico refere-se à negação consciente de fatos comprovados cientificamente por parte de indivíduos ou grupos. É importante frisar que muitas vezes o negacionismo não acontece pela falta de conhecimento científico, mas está associado a interesses particulares.
No caso dos recifes da Foz do Amazonas, o negacionismo está diretamente ligado à exploração de petróleo. Alguns grupos que se beneficiariam da exploração vêm tentando diminuir a importância desse ecossistema, afirmando que esse ambiente não é relevante, questionando diversos aspectos como a vitalidade, a extensão e, até mesmo, a existência dele. Afirmam que este sistema recifal mesofótico é uma fake news, embora diversos trabalhos publicados em revistas científicas respeitadas demonstrem sua alta biodiversidade, importância econômica e seu crescimento, mesmo diante da turbidez da pluma do rio Amazonas.
IHU – As grandes multinacionais que investem e dependem da exploração e do beneficiamento dos combustíveis fósseis têm centralidade no debate acerca do negacionismo climático. Como podemos compreender suas estratégias? Em que medida algo semelhante ocorre agora, com o desejo de explorar petróleo na Foz do Rio Amazonas?
Thomás Banha – O negacionismo é uma ferramenta amplamente utilizada como uma estratégia para influenciar a opinião pública, e a opinião da sociedade desempenha um papel significativo, especialmente no aspecto econômico. Há um esforço por parte do grupo interessado na exploração, que vai além das empresas, para sustentar esse negacionismo. Além delas, temos veículos de mídia, políticos e vozes influentes da sociedade, todos em uníssono, sustentando a opinião sem base na ciência.
No caso específico dos recifes da Foz do Amazonas, temos os grupos que apoiam a exploração de petróleo na região. Embora diversos trabalhos apontem a importância da região e do IBAMA ter negado a licença para a Petrobras com base em critérios técnicos, a pressão continua.
IHU – Seus estudos estão entre os pioneiros que comprovam a existência dos recifes na Foz do Amazonas. Gostaria que recuperasse sua experiência nesses estudos e explicasse como eles têm sido questionados.
Thomás Banha – Embora sejam conhecidos desde a década de 1970, somente na última década houve um maior esforço para conhecer os recifes amazônicos com mais detalhes. As primeiras imagens dos recifes e de toda a sua biodiversidade foram divulgadas apenas em 2018 e estão sendo analisadas como parte do meu doutorado, junto com outras filmagens adquiridas posteriormente.
Durante o desenvolvimento da nossa pesquisa, percebemos alguns questionamentos aos recifes dentro do meio acadêmico. Ao analisar os artigos, constatamos que as justificativas apresentadas eram inconsistentes com a literatura científica. Esses estudos levantaram dúvidas sobre a vitalidade, a extensão e a existência dos recifes da Foz do Amazonas, o que fornecia subsídios para os negacionistas.
Eles afirmavam que o recife era composto apenas por algas calcárias e corais mortos, e que a pluma do rio Amazonas não permitiria o crescimento de um recife. Além disso, questionavam o próprio termo “recife”, alegando que o que existia era apenas uma fina camada de organismos incrustantes.
Diante disso, compilamos diversas evidências publicadas em revistas científicas para reiterar que o recife é fato e não fake: trata-se de um ambiente extenso, em contínuo crescimento, habitado por diversos organismos (de forma semelhante aos recifes mesofóticos encontrados em outras regiões), e de extrema importância tanto do ponto de vista ecológico quanto econômico.
IHU – Por que explorar petróleo na Foz do Amazonas é um risco? Quais os principais argumentos contrários aos seus e como os responde?
Thomás Banha – Esta não é a primeira vez que se tenta explorar a área. Desde a década de 1980, foram feitas tentativas, mas mais de um quarto delas foi interrompido devido a acidentes. Além disso, a região abriga o maior cinturão contínuo de manguezais do mundo, que é um ecossistema extremamente sensível a derramamentos de óleo.
Aqueles que argumentam a favor da emissão da licença, mesmo com o parecer técnico contrário do IBAMA, baseiam-se no fato de que não ocorreram acidentes de grandes proporções como os observados em outros lugares, como o Golfo do México, e na evolução da tecnologia de exploração. No entanto, eles não levam em consideração que as distâncias envolvidas e, consequentemente, o tempo necessário para uma resposta eficaz em caso de acidente impossibilitam a contenção adequada do vazamento de petróleo.
Experiência de 2019
No derramamento de 2019, que afetou a costa brasileira, em especial o Nordeste, pudemos observar que ainda não estamos preparados para lidar com grandes vazamentos.
Problema diplomático
Além disso, é importante destacar que alguns argumentam que a Guiana já realiza a exploração de petróleo em suas águas e que deveríamos seguir o mesmo caminho na área da Foz do Amazonas. No entanto, é necessário esclarecer que não é a Guiana Francesa, que faz fronteira com o Amapá. A Guiana Francesa não realiza atividades de exploração de petróleo em suas águas e não possui planos concretos para lidar com vazamentos em larga escala no mar. Ou seja, um vazamento na região da Foz do Amazonas poderia se tornar um grande problema diplomático envolvendo diversos países, o que exigiria uma coordenação e cooperação internacional para lidar com as consequências desse evento.
Baixa produtividade
Dos 95 poços já perfurados na região da Foz do Amazonas, 56 estavam secos ou não apresentavam indícios de petróleo em níveis comerciais. Isso demonstra a incerteza quanto à existência de reservas viáveis nesta região específica. Esses aspectos são fundamentais para uma análise abrangente e embasada sobre a exploração de petróleo na Foz do Amazonas, garantindo que todas as informações relevantes sejam consideradas antes de tomar qualquer decisão.
A área ainda apresenta algumas das correntes oceânicas mais fortes do mundo. As modelagens apresentadas ao IBAMA indicam que, em caso de vazamento, o óleo nunca chegaria à costa. No entanto, essa afirmação tem sido questionada por organizações civis e pesquisadores, que criticam a baixa resolução dos modelos utilizados e a falta de dados locais e atualizados na modelagem.
Importa ressaltar que a deficiência na capacidade de resposta em caso de acidente e a fragilidade das modelagens foram os principais motivos para a negativa do IBAMA. Além disso, a pesca desempenha um papel extremamente importante na região norte, e prejudicar esse habitat teria um impacto direto nos organismos que habitam o local e o utilizam como berçário. Isso ameaçaria a subsistência e a segurança alimentar de uma grande parte da população local.
IHU – Neste contexto de pós-verdade, fala-se muito em fake news. Mas, dentro da academia, notícias falsas, teses obscuras e acusações que põem em xeque anos de estudos são comuns. Como observa e analisa esse cenário?
Thomás Banha – Infelizmente, essa tendência tem se tornado mais frequente. Vários estudos têm sido publicados como “preprints”, que são trabalhos disponibilizados em plataformas abertas antes de passarem pela revisão de especialistas da área. Embora essa prática permita que os autores recebam um maior feedback da comunidade científica, além da revisão por pares, e, também, aumente sua visibilidade, os “preprints” podem ser usados para disseminar desinformação.
Uma vez que esses manuscritos não passaram pela revisão rigorosa de especialistas, não há garantia científica naquilo que está escrito, e muitos deles nem sequer são publicados em revistas científicas respeitadas.
Observamos isso durante a pandemia de Covid-19, com “preprints” contendo desinformação sobre o vírus que acabaram sendo posteriormente retratados devido a críticas de cientistas. Isso acaba fornecendo munição para aqueles que propagam fake news e ignoram fatos científicos em suas argumentações. No caso dos recifes da Foz do Amazonas, cientistas, políticos e indivíduos ligados ao setor produtivo têm feito declarações afirmando que tudo não passa de fake news, ignorando e desmerecendo os artigos científicos publicados em revistas com revisão por pares.
Isso molda, de certa forma, a opinião pública e fortalece aqueles que argumentam, sem embasamento, que é uma mentira criada para impedir o desenvolvimento da região.
IHU – O combate ao negacionismo passa essencialmente pelo quê? Qual o papel da ciência de base no combate à desinformação?
Thomás Banha – Esse combate ao negacionismo passa por uma discussão abrangente e franca sobre as questões científicas, com uma discussão isenta de viés econômico e que deve se basear em argumentos fundamentados em dados científicos que sejam públicos, facilmente acessíveis e obtidos de forma independente. E a ciência também desempenha um papel fundamental no combate à desinformação.
Como cientistas, temos a responsabilidade de informar a sociedade de maneira simples, direta, coerente e, acima de tudo, imparcial. O papel do cientista é gerar conhecimento e contribuir para as discussões e aplicações dos dados de maneira objetiva. Isso significa que a posição do cientista nunca deve ser influenciada por aqueles que financiam sua pesquisa. Devemos produzir conhecimento confiável, submetido à revisão por pares; trabalhar na verificação e validação de informações, que se mostrou extremamente importante durante a pandemia, e que é desempenhada por diversos atores, como o Facebook do Observatório do Clima e o Instituto Questão de Ciência; comunicar de forma clara e acessível para que o conhecimento gerado seja transmitido de forma efetiva para toda a sociedade e contribua para a tomada de decisão; e fornecer uma base sólida de conhecimento científico a ser usado em escolas e universidades, para capacitar os indivíduos a entender e avaliar criticamente as informações que recebe.
IHU – Qual a centralidade do Grande Sistema Recifal da Foz do Amazonas para o ecossistema da região e como o senhor vem estudando esse recifal?
Thomás Banha – Temos um grande sistema recifal, adjacente ao maior cinturão contínuo de manguezais do mundo, recebendo aporte do rio com a maior vazão do mundo. Temos organismos que habitam os recifes e usam a costa como berçários e são extremamente importantes para a economia e subsistência local. Ainda, organismos que transitam entre o Brasil e o Caribe usando esse sistema recifal como corredor. A pesquisa que desenvolvemos no nosso grupo busca entender e avaliar diversos aspectos desse ambiente, incluindo diversos aspectos bióticos, abióticos e sociais que permeiam os recifes.
No âmbito do meu doutorado, nos concentramos na ecologia e conservação do Grande Sistema Recifal da Foz do Amazonas e da costa amazônica. O meu projeto de pesquisa tem como foco a análise da biodiversidade de peixes e invertebrados na região, bem como a investigação dos padrões de utilização dos diferentes habitats pelas espécies que habitam a plataforma continental amazônica. Além disso, buscamos propor medidas de conservação para proteger e preservar esse ecossistema único.
Nosso objetivo é contribuir para a gestão adequada e sustentável da plataforma continental amazônica, de forma a preservar sua biodiversidade e garantir a saúde e a resiliência desses ecossistemas no futuro.
IHU – O que o mar tem nos ensinado sobre o desequilíbrio climático e a vida na Terra?
Thomás Banha – O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC tem alertado há bastante tempo sobre os níveis perigosos do aumento de temperatura que estamos alcançando. O oceano tem absorvido 90% do aquecimento resultante do aumento dos gases do efeito estufa nas últimas décadas. Apesar de esforços como o Acordo de Paris, ainda existem desafios em tornar essas ações mais eficazes. Neste ano, temos observado as maiores médias de temperatura superficial dos oceanos desde a década de 80. Isso coloca em risco todos os ecossistemas, incluindo os recifes, como o sistema recifal da Foz do Amazonas.
Por exemplo, a Grande Barreira de Corais já perdeu uma grande parte de sua cobertura de corais nas últimas décadas. Embora tenha se recuperado no ano passado e alcançado uma cobertura recorde, está sob séria ameaça este ano devido à altíssima probabilidade de um El Niño ocorrer.
O aumento da temperatura tem um impacto direto na biodiversidade, afetando a distribuição e a capacidade dos organismos de sobreviverem nos habitats em que estão adaptados. Isso tem repercussões diretas em nossas vidas, pois dependemos desses organismos para a alimentação e muitos desses ambientes são essenciais para a economia. Portanto, através dos oceanos, podemos testemunhar o impacto que estamos causando ao planeta Terra.
IHU – Você é mergulhador, até pela natureza de suas pesquisas. Como descreve a experiência do mergulho e a aproximação com formas de vida que poucas pessoas conhecem?
Thomás Banha – O mergulho é uma das atividades mais prazerosas em nosso trabalho. Como cientistas, somos naturalmente curiosos, e o mergulho nos permite estar imersos no ambiente que estudamos. Ele nos possibilita interagir com os organismos, conhecer e observá-los de perto. E o mais interessante é que essa experiência nos gera mais perguntas do que respostas, pois nos conectamos de forma mais íntima com o ambiente.
O mergulho nos permite acompanhar diretamente as mudanças que ocorrem nesse ambiente. Podemos observar as variações na comunidade, o surgimento e o desaparecimento de organismos, e as diferentes transformações ao longo das estações do ano. O mergulho é uma forma excelente de explorar, conhecer e, consequentemente, desenvolver um profundo respeito pelo mar. Embora ainda não tenha tido a oportunidade de mergulhar nos recifes da Foz, é certamente uma das metas para os próximos meses.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Thomás Banha – Não sou contra a exploração de petróleo em si. Reconheço que essa atividade desempenhou e continua desempenhando um papel importante no desenvolvimento do Brasil. No entanto, sou contrário à exploração que não leva em consideração critérios técnicos adequados.
É fundamental respeitarmos nossas instituições e acatar as decisões técnicas do IBAMA, que são baseadas em dados e nas falhas apresentadas nos pedidos de licença. Precisamos buscar uma harmonia com o ambiente, explorando nossos recursos de forma sustentável, de modo a preservar as atividades já desenvolvidas nesse ecossistema e evitar prejuízos.
Caso haja uma eventual exploração na Foz do Amazonas, espero que seja conduzida da forma mais correta possível, com o aval do IBAMA, e que tenhamos a certeza de que toda a região, que possui uma riqueza e uma importância extremas, assim como todas as pessoas que dependem desse ambiente, não sejam prejudicadas de forma alguma. É essencial garantir que os interesses econômicos estejam alinhados com a conservação e preservação desse ecossistema único.
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Foto: Rodolfo Almeida | Sumaúma