Desvio de função resulta em morte de trabalhador na mineradora Kinross, em Paracatu (MG)

Daniel Oliveira estudava eletromecânica e se formaria no fim deste ano; e cobrava alteração na carteira de trabalho

Anderson Pereira, Brasil de Fato

Na manhã do dia 13 de maio, Daniel Renato Gomes de Oliveira, de 27 anos, fazia manutenção num dos caminhões da Flapa Engenharia e Mineração, na mineradora Kinross, em Paracatu, região Noroeste de Minas Gerais, quando a caçamba do veículo caiu sobre ele. “O Daniel foi contratado como ajudante de mecânico, mas fazia trabalho de mecânico”, afirma o advogado da família, Henrique Carvalho, de 43 anos.

No dia da sua morte, Daniel Oliveira trabalhava sozinho na área de manutenção. “Houve desvio de função e negligência da empresa”, afirma. A empresa ainda teria alterado o cargo de Daniel Oliveira na carteira digital, após a sua morte, para mecânico.

“A carteira digital dele apareceu alterada, com data retroativa desde dezembro de 2022. Mas, em abril deste ano, um mês antes de morrer, o Daniel cobrava de um dos seus supervisores, via WhatsApp, essa alteração para o cargo de mecânico”, revela o advogado.

Terceirização

Daniel Oliveira era trabalhador terceirizado da mineradora canadense Kinross. A empresa é a maior produtora de ouro do Brasil, responsável por cerca de 25% do volume nacional. A multinacional está instalada em Paracatu desde 2005. A cidade conta atualmente com a maior mina de ouro do país e a maior do mundo a céu aberto.

Em 2019, a mineradora comemorou uma receita total das suas operações globais de $ 3,4 bilhões de dólares, cerca de R$ 17 bilhões. Para este ano, a multinacional espera produzir 2,1 milhões de onças de ouro, um aumento de 140 mil onças em comparação com a produção de 2022.

Há um ano, Daniel Oliveira trabalhava na Flapa Engenharia e Mineração. A Flapa tem sede em Belo Horizonte e presta vários serviços para o setor de mineração como escavação, transporte e descarga de rejeitos. Entre os seus clientes, estão outras empresas como Vale, Samarco e Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Em 2020, a empresa anunciou a compra de 60 caminhões basculantes modelos extrapesados da Mercedes-Benz no valor de R$ 34 milhões.

Daniel Oliveira fazia manutenção num caminhão Mercedes-Benz (AXOR 4144 K 6X4) no dia em que morreu. Com a queda da caçamba, ele teve esmagamento dos pulmões e grave hemorragia. O veículo tem capacidade para transportar até 40 toneladas.

Oliveira trabalhava de segunda a sexta-feira. Durante a noite, ele era aluno de eletromecânica numa escola da cidade e ia se formar no fim deste ano. Mas, segundo a sua família, ele era chamado com frequência para trabalhar nos fins de semana. Daniel morreu no sábado.

Quase dois meses após a sua morte, a família espera por respostas. “Por que o Daniel não estava acompanhado por um mecânico? Por que ele estava sozinho? Por que o local onde ele morreu foi alterado pela empresa? Onde estão imagens do setor de manutenção?”, questionam Jackeline Santos, de 24 anos, viúva de Daniel Oliveira e Renata Gonzaga, de 38 anos, irmã do trabalhador.

Antes de ser admitido pela Flapa Engenharia e Mineração, Daniel Oliveira trabalhava como borracheiro na cidade de Catalão (GO). Em Paracatu, onde morava, ele chegou a trabalhar como auxiliar administrativo. Jackeline Santos conta que eles estavam casados há oito anos e estavam economizando para realizar um sonho: comprar a casa própria.

Nascido em Vazante, cidade a 118 km de Paracatu, Daniel Oliveira começou a trabalhar desde cedo. “Meu irmão começou a trabalhar muito novo. Quando a nossa mãe faleceu, ele tinha oito anos. Ele era muito batalhador e sempre lutou para conseguir as coisas. Morreu lutando para ter uma vida melhor”, lamenta Renata Gonzaga.

Responsabilidade das empresas

O Brasil de Fato teve acesso ao laudo pericial realizado pela Polícia Civil no dia da morte do trabalhador. O documento revela que a morte de Daniel Oliveira pode ter sido potencializada “por uma condição insegura provocada por uma possível falta de procedimento operacional padrão ou treinamento e acompanhamento para a atividade específica ou ainda falta de manutenção regular dos equipamentos”, diz o laudo.

O laudo pericial ainda revela que, quando os peritos chegaram, o lugar onde ocorreu a morte de Daniel Oliveira foi isolado por funcionários da empresa. “Tal situação pode prejudicar a idoneidade do local examinado”, diz o documento.

Ainda de acordo com a perícia, “na parte do veículo apontado como ponto onde ocorreu o esmagamento, não foram encontrados vestígios evidentes de sangue ou de material biológico”. “Até as manchas de sangue foram removidas do local”, protesta Renata Gonzaga.

Longas jornadas com fome

Cinco dias antes da morte de Daniel Oliveira, no dia 8 de maio, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de Paracatu e Vazante (Sindiextra) denunciou as dificuldades que os trabalhadores da Kinross enfrentam para se alimentarem durante jornadas de 12h de trabalho.

“A longa jornada nos sujeita à fadiga e ao iminente risco de acidentes, sobretudo em uma atividade penosa, insalubre e periculosa como a mineração”, afirma o presidente do Sindicato, José Rogério Ulhoa.

Segundo ele, o tempo de deslocamento dos trabalhadores dentro da mina da Kinross até o refeitório consome boa parte do prazo de uma hora para as refeições. Com isso, a alimentação é feita às pressas e com retorno imediato ao trabalho.

“De volta ao trabalho, os trabalhadores ficam apenas com o almoço. O lanche é trazido de casa, mas não há local para eles lancharem. A alimentação é feita em cima das máquinas, no meio das lavras, correndo risco de contaminação”, denunciou o Sindiextra no seu boletim de maio.

Nas negociações do último acordo coletivo de turno, o Sindicato defendeu junto à empresa uma pauta mais humanizada, para que os trabalhadores não continuem sacrificados em longas jornadas “literalmente com fome”.

“Propusemos a disponibilização de mais 15 minutos para os trabalhadores fazerem seus lanches, condição não aceita pela empresa”, diz Ulhoa.

Segundo o Sindicato, outra medida prejudicial tomada pela Kinross foi a extinção do espaço de lazer na Planta 1. O espaço, que servia para descanso, assistir TV e outros entretenimentos, foi transformado em local de treinamento.

Sobre a morte de Daniel Oliveira, o presidente do Sindicato informa que a entidade acompanha as investigações. Segundo ele, essa foi a segunda morte de trabalhador ocorrida na mina de Paracatu.

Descumprimento das normas de segurança

Descumprimento de normas de segurança pelas empresas de mineração é o principal fator de “acidentes de trabalho” e mortes no setor. A conclusão está no relatório Norma Regulamentadora nº22 – Segurança e Saúde Ocupacional na Mineração, publicado em 2021.

Marta de Freitas, coordenadora do Fórum Sindical Popular de Saúde e Segurança do Trabalhador e da Trabalhadora, constata que muitas mineradoras contratam trabalhadores terceirizados com a promessa de que, no futuro, eles possam ser admitidos em outros cargos.

“Enquanto isso, essa é uma forma que elas têm de aumentar os seus lucros economizando na mão de obra. Os trabalhadores terceirizados são os mais afetados e mais expostos aos acidentes fatais. Os salários são mais baixos, há ausência de benefícios e as jornadas são maiores”. Ao falar sobre a morte de Daniel Oliveira, ela é taxativa: “A responsabilidade é da empresa”.

Minas: estado com mais irregularidades na mineração

Segundo o relatório, Minas Gerais é o estado em que mais foram constatadas irregularidades na mineração em 2019. Das 1.339 irregularidades verificadas em todo o país, 673 (50%) foram no estado. A ausência de elaboração e implementação de Programas de Gerenciamento de Riscos é a principal falha encontrada pelos auditores fiscais do trabalho.

Ainda de acordo com o relatório, o setor extrativo mineral é um dos setores em que mais ocorrem “acidentes de trabalho” no mundo. No Brasil, apenas entre 2017 e 2019, foram 273 mortes. A maioria das vítimas são trabalhadores diretos das empresas ou terceirizados.

Em 2015, após o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, por exemplo, 13 dos 14 trabalhadores que morreram eram terceirizados. O auditor-fiscal do trabalho da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Minas Gerais, Mário Parreiras, lembra que esses números no Brasil podem ser ainda maiores.

“As Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT) não captam os acidentes de trabalho ocorridos no setor mineral ocorridos com trabalhadores de empresas terceirizadas que prestam serviços para o setor mineral”, explica.

Segundo ele, a Lei da Terceirização aprovada em 2017 pelo então presidente Michel Temer (MDB) contribuiu para aumentar a precarização do trabalho no setor.

Silêncio

O Brasil de Fato procurou ouvir a mineradora Kinross e também a Flapa Engenharia e Mineração. A Kinross informou que qualquer questionamento sobre a morte de Daniel Oliveira deve ser feito a empresa Flapa. A reportagem procurou a Flapa que, até o fechamento desta edição, não respondeu. Já a Polícia Civil de Paracatu, informou que segue com as investigações.

Edição: Elis Almeida

Foto: Gustavo Barroso

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