A Era da Distopia: a população revira o lixo das grandes cidades em busca de alimentos. Entrevista especial com Samuel Kilsztajn

“A Revolução Industrial, que nos levaria à Era da Utopia, o fim da carestia para a humanidade, engendrou, ao contrário, a atual Era da Distopia”, constata o economista

IHU

“Atender a população pobre e miserável”. Essa deveria ser a motivação de sustentação de um projeto de desenvolvimento possível e desejável para o país, diz Samuel Kilsztajn ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na entrevista a seguir concedida por e-mail. Entretanto, adverte, “estamos todos mergulhados no sistema orquestrado pelo despotismo da mercadoria. Quem hoje ousaria se contrapor à mercadoria e ao desenvolvimento econômico?”

Segundo ele, estamos vivendo a “Era da Distopia”, que se manifesta cotidianamente, de um lado, na situação de “inúmeras pessoas dormindo ao meio-dia nas calçadas, a maior parte na perpendicular, mas algumas na diagonal, enroladas nos cobertores cinzas de resíduos de fibras sintéticas que a prefeitura anda distribuindo” e, de outro lado, na “perda da sociabilidade e o consequente espírito de competição”.

Samuel Kilsztajn é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo – USP, mestre e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, com pós-doutorado pela New School for Social Research, Nova York. É professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

Confira a entrevista.
IHU – Por que estamos “atravessando uma Era da distopia”, como o senhor disse recentemente? Quais são as causas disso no contexto brasileiro?

Samuel Kilsztajn – A Revolução Industrial alavancou a produção de alimentos, bens de consumo e instrumentos de trabalho a patamares nunca imaginados. Podia-se antever então uma nova era de fartura, o paraíso terrestre, a utopia realizada, em que a carestia seria completamente eliminada da face da terra.

Mas, inacreditavelmente, a fantástica riqueza e o nível de produção das nações não erradicaram a miséria da maior parte da população mundial, nem os bolsões de pobreza no interior das nações mais desenvolvidas do planeta. As faculdades de economia ensinam que o aumento na produtividade é acompanhado pelo crescimento e pela diversificação das necessidades humanas. Novos produtos e novas necessidades vão sendo criados, muito além dos básicos produtos alimentícios, vestuário e habitação necessários para a vida humana.

IHU – Como o senhor caracteriza essa era no país? Pode dar exemplos de sua manifestação?

Samuel Kilsztajn – No inverno de 2023, na cidade de São Paulo, quando saio às ruas, fico amargurado ao ver os transeuntes passando impassíveis por inúmeras pessoas dormindo ao meio-dia nas calçadas, a maior parte na perpendicular, mas algumas na diagonal, enroladas nos cobertores cinzas de resíduos de fibras sintéticas que a prefeitura anda distribuindo. Plagiando [Eric] Hobsbawm, penso, essa é a Era da Distopia.

A Revolução Industrial, que nos levaria à Era da Utopia, o fim da carestia para a humanidade, engendrou, ao contrário, a atual Era da Distopia, em que uma parafernália de novos produtos supérfluos é produzida, consumida e descartada, por uma sociedade do espetáculo, do consumo, do desperdício e da produção de lixo que convive com uma população que revira o lixo das grandes cidades em busca de alimentos e de materiais recicláveis para revenda.

IHU – Em artigo recente, o senhor afirmou que “a mercadoria sempre justifica o progresso técnico, escondendo-se atrás do dever de atender às necessidades dos pobres”. A lógica da mercadoria dominou a sociedade brasileira em praticamente todos os níveis e estratos sociais, de modo que esse modelo é legitimado, em alguma medida, pela própria sociedade?

Samuel Kilsztajn – Estamos todos mergulhados no sistema orquestrado pelo despotismo da mercadoria. Quem hoje ousaria se contrapor à mercadoria e ao desenvolvimento econômico? Só não são afetados os povos que vivem fora do sistema, a exemplo das populações indígenas. Mesmo assim, vários indígenas abandonam suas comunidades, fisgados pelas “maravilhas” da sociedade do consumo.

IHU – Como a lógica da mercadoria, do consumo, do progresso, afeta e impossibilita a construção de um projeto de país diferente, que atenda, de fato, às necessidades dos pobres?

Samuel Kilsztajn – O consumo supérfluo enfeitiça as pessoas com a promessa da felicidade neste lado do paraíso. Não é nem propriamente o consumo que importa, mas a perda da sociabilidade e o consequente espírito de competição. O que vale mesmo é deixar o seu vizinho de queixo caído ao ver você sair da garagem com o carrão do ano.

Não acho que a questão atinja apenas os pobres. Os ricos também são presas do sistema que faz com que sejam apêndices da mercadoria e de seu consumo, e que se percam em valores mundanos em que a solidariedade humana não encontra lugar. Apesar das aparências, a artificialidade da vida dos ricos não permite que eles vivam plenamente em lugar algum.

IHU – Como romper com essa lógica e projetar outras possibilidades para o país?

Samuel Kilsztajn – A única saída seria desenvolver o desapego. Poderíamos aprender com o [Ailton] Krenak e os povos indígenas; podemos também aprender a desenvolver o desapego com o [Satya Narayan] Goenka e os budistas.

IHU – O que seria um projeto de desenvolvimento possível e desejável para o país?

Samuel Kilsztajn – Atender a população pobre e miserável.

IHU – No artigo, o senhor destaca particularmente a situação das comunidades indígenas, afetadas por uma compreensão de progresso que gera inúmeros danos para as populações. O novo governo Lula rompe com esse modelo ou o reforça? Como e por quê?

Samuel Kilsztajn – Em entrevista, João Paulo Lima Barreto declarou que a diferença fundamental entre os indígenas e os brancos é que os indígenas são o povo da oralidade, o povo da palavra, e os brancos são o povo da escrita. Para os indígenas a palavra é sagrada; para os brancos o papel é que fala. Para os indígenas a palavra é concreta e tem o poder de construir, destruir, transformar, organizar, desorganizar, curar ou matar. Eu diria que os indígenas são autênticos, íntegros, e que a verdade do branco é o seu dom de iludir. O branco, além de conversador e dissimulado, é traiçoeiro. Está sempre buscando algo, está sempre inquieto e não conhece o repouso. Começa querendo aniquilar os animais, as plantas, os rios, a terra, os outros povos, seus vizinhos, seus parentes, para acabar brigando com a própria sombra.

Saímos de um governo em que vigorava a disputa de narrativas, que aproveitou a pandemia para fazer “passar a boiada”. Lula certamente rompe com esse modelo. Esperamos todos que ele, com o auxílio dos movimentos sociais, possa articular com o Congresso e a grande mídia a saída desse modelo.

IHU – O senhor tem esperança em relação ao futuro do país? Onde deposita sua esperança?

Samuel Kilsztajn – Acredito na vida comunitária, na generosidade, na ideia de igualdade, sem lugar para a vaidade e o esnobismo, para a ganância pelo dinheiro, para a hierarquia, poder, privilégios e o servilismo. Isso é uma utopia, é messiânico, é apenas um sonho? Será que seria melhor eu cair na real, ser realisticamente apático, cínico ou simplesmente mesquinho?

Samuel Kilsztajn (Foto: Reprodução YouTube)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

cinco × três =