Pesquisa inédita identificou, em mais de mil amostras coletadas em 10% dos municípios da Caatinga, a presença de até sete genes transgênicos em uma mesma semente crioula
Por Adriana Amâncio, do Mongabay / MST
No ano em que se completam 18 anos da aprovação dos transgênicos no Brasil, uma pesquisa inédita alerta para o avanço da contaminação do milho crioulo do Semiárido nordestino com genes transgênicos.
O levantamento aponta que, de um total de 1.097 amostras analisadas, provenientes de 138 municípios nordestinos, mais de um terço continha genes transgênicos. Em alguns casos, revela o estudo, foram encontrados até sete tipos de genes transgênicos diferentes em uma mesma semente.
Trocando em miúdos, o avanço na contaminação das espécies crioulas com transgênicos reduz a agrobiodiversidade. Isso torna o país mais vulnerável às mudanças climáticas, às pragas e às demais adversidades que possam atingir as colheitas.
Se as espécies forem perdendo suas características individuais, a tendência é que haja redução ou extinção das variedades adaptadas naturalmente, com resiliência a determinados tipos de pragas ou condições climáticas.
O resultado reflete um impacto relevante, considerando que um dos potenciais brasileiros é a diversidade deste tipo de grão. O Brasil possui 23 raças de milho e centenas de outras variedades do alimento — “raça” é um conjunto de variedades de milho que possui parentesco entre si. No entanto, segundo dados da Embrapa, 90% de toda a cultura de milho no Brasil é transgênica.
Além disso, a região onde a pesquisa foi desenvolvida, o Semiárido, possui espécies de milho endêmicas, ou seja, exclusivas da região. Isso faz diferença porque aqui as chuvas se concentram em apenas quatro ou cinco meses do ano — um padrão que tem sido alterado pelas mudanças climáticas. Portanto, contar com espécies adaptadas à região aumenta as chances de garantir a colheita.
De cara, os dados sinalizam um cenário de insegurança alimentar decorrente da perda da biodiversidade combinada com o avanço das mudanças climáticas.
De acordo com o coordenador Executivo do Centro de Tecnologia Alternativa da Zona da Mata (CTA) e um dos autores do estudo, Gabriel Fernandes, a contaminação cruzada entre genes, que acontece no campo, é uma das questões mais graves.
“Esses lotes em que foram encontrados até sete genes transgênicos não quer dizer que foram testados na mesma planta. À medida que as sementes são liberadas para vendas ou distribuição, mas não há monitoramento e fiscalização, dá margem para que novos cruzamentos possam acontecer de forma aleatória. Existe um descontrole muito grande”, explica.
Ainda segundo o pesquisador, os dados evidenciam uma injustiça em relação às pequenas famílias agricultoras, que fazem seleção, armazenamento e troca de sementes crioulas. “As famílias agricultoras assumem 100% do ônus para evitar essa contaminação. Elas têm que lidar com os riscos e prejuízos dessa contaminação descontrolada. Há grande incentivo ao agronegócio, que se utiliza das sementes transgênicas, mas não há uma política que impeça a contaminação”, reforça Gabriel.
De acordo com Gabriel, o ineditismo da pesquisa está na amplitude e na metodologia, quando comparada às demais na literatura acadêmica. “A pesquisa envolveu uma amostra grande de 1.097 variedades, em 10% dos municípios de todo o Semiárido. Além disso, ela não foi realizada em laboratório, mas em campo, no contexto real onde vivem as famílias, que participaram diretamente do levantamento”, explica. Além do CTA, as Articulações Semiárido Brasileiro (ASA) e Nacional de Agroecologia (ANA) e Embrapa assinam a pesquisa.
Procurada pela reportagem da Mongabay, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) afirmou, por e-mail, que desconhece pesquisa de contaminação do milho crioulo do Semiárido com genes transgênicos e que, por isso, não iria se manifestar.
O órgão afirmou que “o monitoramento adotado atualmente segue base científica e que é adotado quando um gene diferente é inserido na planta”. Por fim, o mesmo e-mail informa que “os relatórios de monitoramento ambiental apresentados até o momento não evidenciam danos ambientais causados pelo milho.”
Como acontece a contaminação
Até 2020, a agricultora Suzana Silva, moradora do Sítio Furnas, município de Montadas, também na Paraíba, recebia o resultado negativo dos testes de transgenia. Os resultados eram uma conquista, levando em conta que a agricultora vive cercada por um latifúndio, com áreas de cultivo muito próximas das suas e onde não há fiscalização. Em 2022, ela descobriu que o seu milho estava contaminado. Para a agricultora, a contaminação se deu por meio de grãos de pólen do milho de um latifúndio localizado muito próximo do seu cultivo.
“Tem um empresário aqui, um latifundiário que planta muito [milho]. Não sei se o milho dele está contaminado, mas é possível, ele planta muito. Assim fica difícil. O agricultor planta semente crioula, mas os outros não plantam e aí fica contaminado. A gente pensa também nas consequências depois para a saúde”, reclama.
Segundo Suzana, desde que ela recebeu resultado positivo para transgenia, nunca mais colheu milho como antes. “O milho não tem mais aquela produtividade. No ano que deu resultado transgênico, [a colheita] só deu para ração animal. Antes eram grandes, agora as espigas são irregulares. Eu não sei se é por causa das chuvas irregulares ou dos transgênicos”, explica.
Quando os transgênicos foram regulamentados no Brasil, em 2005, já havia evidências do risco de contaminação cruzada. De acordo com o geneticista, pesquisador e professor do Departamento de Fitotecnia do Programa de Pós-graduação em Recursos Genéticos Vegetais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rubens Nodari, já havia comprovações de que o pólen da espécie transgênica poderia contaminar lavouras a alguns quilômetros de distância.
“Os estudos comprovam que 0,2% de pólen de transgênico pode viajar por quilômetros. De fato, isso é pouco. No entanto, se levarmos em conta que o milho pode produzir cerca de 20 milhões de grãos de pólen, aí sim, temos uma quantidade suficiente para contaminar outras plantas até 3 km de distância”, explica o cientista.
O trabalho para evitar a contaminação
Todos os anos, o agricultor Paulo Alexandre da Silva, morador da comunidade Lagoa do Jogo, no Assentamento Oziel Pereira, município de Remígio, na Paraíba, submete seu milho ao teste e se orgulha de, até hoje, estar livre de contaminação. Segundo ele, o caminho para alcançar esse resultado não é simples.
Para concentrar as espécies crioulas livres de contaminação, ele criou um Banco Comunitário de Sementes, que reúne espécies resgatadas, catalogadas e armazenadas. A ideia é que os agricultores locais usem apenas as sementes do banco, garantindo que o cultivo seja feito apenas com espécies locais e crioulas.
O assentamento possui 50 famílias, mas apenas 32 fazem parte do banco de sementes. A necessidade imediata de plantar, além da falta de recursos, muitas vezes leva as famílias a usarem sementes distribuídas pelo poder público ou adquirir sementes em armazéns, sem saber a procedência. Paulo garante que essas são as principais portas de entrada dos transgênicos na comunidade.
“Eu faço reunião com os agricultores para sensibilizar sobre a contaminação com transgênicos. Faço troca, venda e até doo as sementes do nosso banco para evitar que eles usem sementes contaminadas. Eu faço cerca viva [para reter os grãos de pólen transgênicos] plantando gliricídia, mandacaru, sabiá. Eu vim pra cá em 2002 já com a minha semente e nunca deu contaminação”, explica.
De acordo com o agricultor, quanto maior a variedade, mais chances de garantir a colheita, mesmo em ano de chuvas mais escassas ou tardias. “Tem semente que é mais custosa [demora a brotar], tem semente que é mais ligeira [brota mais rápido]. Essas sementes são adaptadas a nossa região, então, mesmo em ano de seca, a gente tem boa colheita”, explica.
Cuidado coletivo com as sementes crioulas
Os bancos de sementes dos quais os agricultores Paulo e Suzana fazem parte integram um trabalho coletivo, que reúne 65 bancos comunitários e um banco regional, em 13 municípios da região do Polo da Borborema, no interior paraibano. O que mantém esse trabalho é a prática de troca de sementes desenvolvida pelos agricultores há séculos.
Esses bancos dão suporte às famílias para disporem de sementes adequadas às mudanças climáticas, que já atingem o Semiárido, assim como garantir que elas não precisem buscar sementes de fontes desconhecidas, elevando o risco de plantar uma espécie contaminada com transgênico.
Essa é parte de uma série de atividades adotadas com o objetivo de evitar a contaminação com os transgênicos na região. Dentre as demais ações, há também uma Comissão Territorial de Bancos de Sementes, que se reúne com frequência para discutir temas de interesses dos guardiões de sementes, nome dado a quem protege as sementes crioulas.
Outra ação é a campanha Não Planto Transgênicos Para Não Apagar Minha História, que divulga informações didáticas, sensibilizando pequenos produtores sobre o que é a transgenia e de que forma ela compromete as sementes crioulas. A campanha passou a testar as sementes crioulas e emitir um certificado, comprovando a ausência de contaminação.
Os agricultores do Polo da Borborema também criaram sua própria marca de derivados de milho, produzidos apenas com sementes crioulas e comercializados através da Cooperativa Borborema. Eles trabalham em parceria com a AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, associação de direito civil que auxilia os agricultores na preservação das sementes crioulas.
De acordo com Emanuel Dias, engenheiro agrônomo e assessor técnico da AS-PTA, essa foi a alternativa adotada para evitar o consumo dos transgênicos em produtos processados. “Eles criaram o Flocão da Paixão, Xerém da Paixão, Fubá da Paixão e farelo para alimentação animal. Tudo isso porque não adianta combater os transgênicos na roça e consumir o cuscuz com milho pré-cozido transgênico.”
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Milho crioulo em banco de sementes da Paraíba, prestes a ser beneficiado. Foto: AS-PTA/divulgação