Governo fez concessões em PL do mercado de carbono; principal ponto veio de frente com ex-ministra Tereza Cristina (PP)
Por Texto: Anna Beatriz Anjos | Edição: Ed Wanderley, em Agência Pública
A Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado aprovou, na quarta-feira (4), o projeto de lei que pretende criar o mercado de carbono regulado no Brasil (PL 412/22). Para que isso fosse possível, a relatora da matéria, senadora Leila Barros (PDT-DF), e o governo federal, que trabalhou intensamente na elaboração do texto nos últimos meses, fizeram concessões ao agronegócio.
A principal delas foi a retirada das atividades primárias do setor da regulação proposta pelo mercado, batizado pelo projeto de Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Isso significa que, se o PL virar lei da maneira como está agora, as emissões de gases de efeito estufa geradas por plantações ou criações de gado não serão controladas pelo governo federal, que terá espaço central na gestão do SBCE.
Foi a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conhecida como bancada ruralista, que articulou para que a exclusão dessas atividades entrasse logo no primeiro artigo do texto aprovado pela CMA. A sugestão consta em emendas propostas pelo vice-presidente do grupo no Senado, Zequinha Marinho (Podemos-PA), e pela ex-ministra da Agricultura e Pecuária de Jair Bolsonaro, senadora Tereza Cristina (PP-MS).
Eles argumentam que o controle das emissões do agronegócio não ocorre em outros “marcos regulatórios do mercado de carbono internacionais”, conforme a emenda apresentada por Tereza Cristina. E apontam para a dificuldade de se estabelecer “um sistema de medição preciso e confiável” dessas emissões diante das “nuances e complexidades” do setor, segundo a emenda de Zequinha Marinho. Mensurar de maneira adequada as emissões é fundamental para o funcionamento do mercado.
O agronegócio é a atividade econômica brasileira que mais emite CO2, sendo responsável por cerca de 75% dos gases de efeito estufa lançados na atmosfera pelo país anualmente, de acordo com análise do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG). É o excesso de liberação desses gases o fator causador do aquecimento global, que tem modificado os padrões de clima do planeta.
Excluir explicitamente o agronegócio do campo de regulação vai na contramão do objetivo do projeto: criar um mecanismo que ajude o Brasil a reduzir suas emissões e, assim, atingir suas metas climáticas junto ao Acordo de Paris, explica o engenheiro florestal Tasso Azevedo, coordenador do SEEG e do MapBiomas.
“Não existe mercado de carbono que não envolva o setor que mais emite. Em outros países com mercado de carbono, esse setor [agropecuária] não é regulado porque não é a principal fonte de emissões”.
Tasso Azevedo, coordenador do SEEG e do MapBiomas
A advogada Caroline Prolo, diretora executiva da LACLIMA, associação de advogados de mudanças climáticas da América Latina, afirma que, de fato, a falta de uma metodologia consolidada de contabilização das emissões do agronegócio, nos moldes em que propõe o PL, é um desafio. No entanto, ela questiona a exclusão da atividade agropecuária em uma “perspectiva de longo prazo”.
“Se hoje não temos metodologias para incluir esse setor em um sistema de comércio de emissões, isso não significa que, no médio ou longo prazo, não seja possível – e até desejável – incluir”, avalia.
“Idealmente, a lei deveria prever que todas as fontes de poluição estejam sujeitas ao SBCE, sendo que decretos do Executivo determinariam no tempo quais atividades vão entrar primeiro no escopo, e assim sucessivamente novas atividades possam ser incluídas conforme haja metodologias e estudos macroeconômicos para justificar a sua inclusão. Com a exclusão explícita da agropecuária na lei que cria o SBCE, caso se queira incluí-la no sistema, vai ser necessário passar pelo Congresso de novo”, explica Caroline.
Oportunidade perdida?
De acordo com Alexandre Prado, especialista em mudanças climáticas do WWF Brasil, o projeto traz a possibilidade de que a inclusão do agronegócio no mercado regulado ocorra quando houver disponível uma metodologia adequada para tal. Um espaço adequado para que o setor fizesse essa discussão seria a Câmara de Assuntos Regulatórios, cuja criação o PL determina, a ser composta por entidades representativas dos setores regulados.
O órgão gestor do SBCE – que deverá ser definido por regulamentação posterior, provavelmente via decreto presidencial – consultará a Câmara de Assuntos Regulatórios para elaborar as regras do sistema. “Dada a força do agronegócio, suas propostas teriam grandes chances de serem aceitas pelo órgão gestor”, analisa Prado. “O agro do Brasil perde a oportunidade de dizer que quer ser regulado, que é sustentável e que vai propor as metodologias. Isso colocaria o Brasil na frente [de outros países].”
Porém, Natalie Unterstell, presidente do Talanoa, instituto de política climática, pontua que a proposta legislativa define como passíveis de regulação setores que emitem mais de 25 mil toneladas de CO² equivalente por ano – o que abrange sobretudo ramos industriais como os da siderurgia, química, alumínio e fertilizantes.
“O que ele [limite] conseguiria atingir são os frigoríficos, que emitem acima de 25 mil toneladas de CO² por ano e são agroindústria. Para avançar com a descarbonização do agronegócio como um todo, são necessárias metas e outros tipos de instrumentos”, argumenta. Entre esses mecanismos, a especialista cita, por exemplo, medidas de assistência técnica, linhas de crédito que tenham como condicionante o compromisso com a transição para um modelo de baixas emissões, além de ações de fiscalização e repressão aos crimes ambientais.
Compensações financeiras
Outra demanda que a FPA conseguiu emplacar na versão do projeto de lei chancelada pelo Senado, também a partir de emenda do senador Zequinha Marinho, é a possibilidade de que os produtores rurais vendam créditos de carbono gerados pela recomposição ou manutenção de Áreas de Preservação Permanente ou de uso restrito e Reservas Legais. Estes são instrumentos criados pelo Código Florestal, aprovado em 2012, para preservação ambiental de porções de propriedades rurais. Ou seja: recompor ou manter essas áreas já é uma obrigação prevista em lei.
Pelo texto, tais créditos seriam comercializados no mercado voluntário de carbono – que não tem metas nem regras estabelecidas, do qual empresas participam por vontade própria, normalmente para obter ganhos reputacionais –, que já existe hoje no país e estará relacionado com o SBCE.
“Ainda que a lei [Código Florestal] preveja essa possibilidade, isso precisará ser regulamentado para se dispor em que casos se considerará que tal recomposição é adicional”, avalia Caroline Prolo, que lembra que o descumprimento do Código Florestal “configura crime ambiental”.
Acerto de direção
Especialistas ouvidos pela Agência Pública concordam que o projeto aprovado pelos senadores é um avanço em relação aos demais que tratam do mesmo tema: há pelo menos mais duas matérias em discussão na Câmara e outras duas no Senado, acompanhadas de propostas apensadas. “É a proposta mais madura que temos, com uma estrutura firme”, declara Unterstell.
Para Alexandre Prado, o mérito do projeto também reside na urgência do tema. “O Brasil tem que começar a jogar o jogo, porque os outros países estão lá na frente. A Europa, por exemplo, já faz isso há décadas. Esse é um bom sinal político”, diz.
Há anos, o assunto é debatido no Congresso Nacional sem que tenha sido possível chegar a um consenso, ainda que a criação de um mercado de carbono regulado já estivesse prevista na Política Nacional sobre Mudança do Clima, instituída em 2009. Desde o início do ano, dez ministérios do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), capitaneados pela Fazenda, trabalharam na elaboração de uma nova proposição, encampada por Barros, que a apresentou na forma de substitutivo ao PL 412/2022 no fim de agosto, conforme a Pública explicou.
O acordo desta semana entre a relatora, que é também presidente da CMA, o governo federal e a FPA foi firmado na terça-feira (3), dia anterior à votação, em reunião no gabinete do ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, que acompanhou presencialmente a aprovação do PL na comissão por 17 votos a favor e nenhum contrário.
As concessões teriam sido feitas para impedir que os senadores da bancada ruralista não propusessem um requerimento para levar a matéria à votação no plenário, o que alongaria a tramitação na Casa. “Entendi que nesse momento não precisávamos criar um cavalo de batalha numa situação que poderia ser bem pacificada através do diálogo”, afirmou Barros logo após a aprovação do texto.
Agora, ele será discutido na Câmara dos Deputados. O presidente Arthur Lira (PP-AL) ainda precisa definir por quais comissões deve passar. Depois, o projeto ainda volta ao Senado, que dará a palavra final.
Como deve funcionar o mercado regulado de carbono
Segundo a proposta aprovada pelo Senado, o SBCE funcionará com base no sistema de cap and trade, inspirado no mercado europeu, pioneiro na área. Neste modelo, o governo estabelece um teto (cap) de gases de efeito estufa que determinados setores econômicos podem emitir.
Esse limite é dividido nas chamadas “Cotas Brasileiras de Emissões” (CBEs). O sistema determinará a quantidade de CBEs com a qual cada empresa contará por um determinado período de tempo – por exemplo, um ano. As empresas, então, podem comercializar (trade) essas CBEs entre si com a intenção de se manter abaixo do teto.
Pelo sistema, as empresas desses setores que emitirem demais e ultrapassarem suas cotas precisarão compensar esse excesso. Uma possibilidade é comprar títulos de outras que tenham emitido menos que seus limites, e, portanto, possuam excedentes de CBEs.
Outra é comprar os Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões” (RVEs), títulos do SBCE emitidos por outros atores que fazem alguma atividade reconhecida como redução de emissões. Esses projetos têm de atender a critérios e metodologias credenciadas pelo governo.
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Sessão da Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado aprovou projeto de lei sobre o mercado de carbono regulado, em 4 de outubro; texto agora segue à Câmara (Geraldo Magela/Agência Senado)