Método com coparticipação de moradores é eficaz em políticas de combate a riscos de desastres ambientais

Pesquisa mostra que a mobilização de cidadãos em áreas vulneráveis a enchentes e inundações melhora a obtenção de dados e aumenta a resiliência

Luciana Constantino, Agência FAPESP

Um mapa digital de áreas vulneráveis a inundações nas cidades de São Paulo e Rio Branco (AC) montado por alunos de escolas públicas; um histórico de enchentes registradas em um bairro pobre da capital paulista criado com base em relato dos próprios moradores; novos canais de comunicação implantados com a Defesa Civil para melhorar o sistema de alertas para a comunidade. Esses são alguns dos instrumentos de participação e mobilização de cidadãos que se mostraram eficazes em iniciativas para aumentar a resiliência a riscos de catástrofes urbanas.

Compõem agora uma metodologia publicada em artigo na revista científica Global Environmental Change. Resultado de pesquisa desenvolvida por mais de três anos, envolvendo 17 cientistas brasileiros e de outros países, o trabalho conclui que as soluções transformadoras de dados urbanos devem abranger não só o desenvolvimento e a implantação de novas tecnologias digitais, mas também a coprodução de entendimentos, perspectivas, práticas sociais e arranjos de governança. Isso inclui uma combinação de ferramentas de análise de dados com uma ampla gama de métodos participativos, possibilitando transformações justas e sustentáveis.

As mudanças climáticas associadas ao crescimento de populações vulneráveis em todo o mundo elevaram os impactos socioeconômicos e ambientais relacionados a catástrofes. Estima-se que 1,81 bilhão de pessoas (23% da população global) estejam diretamente expostas a riscos significativos de inundações, das quais 89% moram em países de baixa e média renda.

No Brasil, quatro em cada dez municípios são considerados vulneráveis a desastres relacionados a inundações ou deslizamentos, de acordo com dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), que monitora atualmente 1.038 municípios com acompanhamento diário e emissão de alertas quando há risco de chuva fora dos níveis médios, considerados “normais”.

“Esse artigo sintetiza a trajetória de um projeto, sua conclusão e, em especial, sua continuidade como política pública de educação ambiental em redução de riscos de desastres com o Programa Cemaden Educação. A principal contribuição científica é a metodologia construída, com um novo jeito de produzir os dados, incorporando tecnologias de informação e um processo de coprodução com as comunidades e moradores. Também buscamos um olhar multidisciplinar, com um grupo envolvendo profissionais ligados a administração pública, estudos urbanos, geografia, ciência da computação e educação ambiental, além de humanidades e desenvolvedores de software”, sintetiza João Porto de Albuquerque, pesquisador da Universidade de Glasgow (Escócia) e autor correspondente do artigo.

Os resultados são parte do projeto “Dados à Prova d’Água” (WPD, na sigla em inglês), desenvolvido por meio de parceria entre as universidades de Glasgow e Warwick (Reino Unido), Heidelberg (Alemanha), além de Cemaden e Fundação Getúlio Vargas (FGV). O grupo tem apoio da FAPESP, do Fundo de Pesquisa e Inovação do Reino Unido e do Ministério para Educação e Pesquisa da Alemanha, em coordenação com Research Funding Agency Cooperation in Europe (Norface), Belmont Forum e Conselho Internacional de Ciência.

O artigo recebeu financiamento da FAPESP por meio de mais três projetos (19/06616-0, 19/06595-2 e 18/06093-4).

Com a crise climática, eventos extremos já têm ocorrido com mais frequência e intensidade, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), das Nações Unidas. Levantamento de janeiro deste ano feito pelo Serviço Geológico do Brasil (vinculado ao Ministério de Minas e Energia) mostrava que cerca de 3,93 milhões de brasileiros moravam em 13.500 áreas de risco espalhadas pelo país.

Relatório divulgado em 2018 por Cemaden e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já apontava 8,2 milhões de moradores em regiões sujeitas a deslizamentos de terra e inundações em 872 municípios.

São essas regiões as mais afetadas por chuvas, inundações e deslizamentos, como os que atingiram o Estado do Rio Grande do Sul no início de setembro, com dezenas de mortos e destruição em vários municípios, além do desastre registrado em cidades do litoral norte de São Paulo no início do ano, quando mais de 60 pessoas morreram e diversos prejuízos econômicos foram registrados.

Geração de dados

“Nosso trabalho tem uma aplicação muito clara em temas ligados à emergência climática e à tomada de decisão baseada em evidências. Temos um problema concreto no Brasil e em vários outros países que é a falta de dados, uma desigualdade que precisa ser considerada na construção de políticas públicas. O projeto mostrou que há formas de mudar a maneira como o governo lida com a questão de dados, incluindo as pessoas e os territórios”, afirma à Agência FAPESP a professora da FGV Maria Alexandra Cunha, coautora do artigo.

A pesquisa já resultou em um aplicativo gratuito (disponível para Android) que permite a coleta de dados em locais estratégicos por meio de ciência cidadã para obter informações como o volume de chuva, a ocorrência de alagamentos e o nível da água de rios. Esses dados são transmitidos em tempo real para uma plataforma digital (com mapas interativos), que pode ser acessada por comunidades locais.

A plataforma foi integrada ao website do programa Cemaden Educação, que trabalha com escolas e comunidades, e vem sendo usada como parte de uma campanha nacional de prevenção de desastres.

Visando amplificar os aprendizados do projeto para outras regiões, foi criado um Guia de Aprendizagem, que pode ser adotado para engajar estudantes e voluntários na produção de dados e de conhecimento sobre desastres provocados pelo excesso de água ou falta de drenagem urbana (leia mais em: agencia.fapesp.br/39503).

“O Programa Cemaden Educação criou metodologias participativas e transformadoras e conseguiu consolidar uma rede de escolas, jovens, moradores e comunidades locais. Projetos como o ‘Dados à Prova d’Água’ entram nesse processo. Isso nos ajuda a sair de estudo de caso e ganhar escala. Nossa expectativa é que a metodologia seja cada vez mais aplicada”, diz o pesquisador do Cemaden Victor Marchezini, coautor do estudo.

Passos

Ao longo do trabalho, os pesquisadores usaram inovações em dados dialógicos, pautados pela linha do educador Paulo Freire e baseados na criação de redes de construção de conhecimento.

Com isso, desenvolveram iniciativas ligadas a 1) análise situacional (baseada em experiências vividas pela comunidade e temas geradores de debate); 2) dados geradores (levantando novos entendimentos por meio de dados); 3) compreensão crítica da realidade (mudando perspectivas de ação); 4) situações-limite (identificando condições de vida insustentáveis) e 5) inéditos viáveis (coproduzindo resultados que abrem caminhos para soluções).

Produziram intervenções metodológicas que contribuíram para tornar as experiências de moradores visíveis por meio de dados, fazendo com que as comunidades se envolvessem e compartilhassem essas histórias e experiências. Em um dos casos, um morador de Jaboatão dos Guararapes (PE) chegou a escrever um poema, em formato de cordel, descrevendo as práticas de dados das quais participaram.

Os resultados, além de gerar informações e dados produzidos pela comunidade, permitiram maior circulação e uso deles, abrindo novos caminhos de soluções e transformações. “Um primeiro passo para buscar solução para os problemas é torná-los visíveis, produzindo dados, evidências e conhecimento em cada comunidade. Nossa ideia é que o projeto continue levando a abordagem inclusive para outros países, como a Colômbia, onde já temos trabalhado”, completa Albuquerque.

O artigo Dialogic data innovations for sustainability transformations and flood resilience: The case for waterproofing data pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0959378023000961#s0035.

Imagem: Pessoas trabalham para retirar lama de rua no litoral norte de São Paulo – Rovena Rosa/Agência Brasil

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