Notas sobre Gaza e a necropolítica. Por Sérgio Amadeu da Silveira

O que o Estado de Israel pratica na Palestina é uma necropolítica ou a produção do extermínio de um povo

No A Terra é Redonda

Achille Mbembe escreveu um pequeno ensaio denominado “Necropolítica”, publicado em 2003. Nele, o filósofo camaronês declarou-se preocupado com “aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”. Mbembe expande a noção foucaultiana de biopolítica para incluir formas de violência que são explicitamente orientadas para a morte. Para Mbembe, a necropolítica é praticada em vários contextos, desde as relações coloniais até práticas contemporâneas em zonas de guerra e áreas de conflito.

Mbembe escreve sem eufemismos aquilo que as zelosas e educadas elites ocidentais tentam negar e negligenciar sobe o que ocorre com os palestinos em sua terra: “A ocupação colonial tardia difere em muitos aspectos da primeira ocupação moderna, particularmente em sua combinação entre o disciplinar, a biopolítica e a necropolítica. A forma mais bem-sucedida de necropoder é a ocupação colonial contemporânea da Palestina.”

Sim, o que o Estado de Israel pratica na Palestina é uma necropolítica ou a produção do extermínio de um povo. Mbembe esclarece o que considera as práticas do necropoder:

“Para retornar à leitura espacial de Fanon da ocupação colonial, a ocupação da Faixa de Gaza apresenta três características principais ligadas ao funcionamento da formação específica do terror, que chamei de “necropoder”. A primeira é a dinâmica da fragmentação territorial, o acesso proibido a certas zonas e a expansão dos assentamentos. O objetivo desse processo é duplo: impossibilitar qualquer movimento e implementar a segregação à moda do Estado do apartheid. Assim, os territórios ocupados são divididos em uma rede complexa de fronteiras internas e várias células isoladas. De acordo com Eyal Weizman, ao se afastar de uma divisão plana do território e ao adotar o princípio da criação de limites tridimensionais no interior dele, a dispersão e a segmentação redefinem claramente a relação entre soberania e espaço.”

Achille Mbembe baseando-se e citando o texto de Amira Hass chamado Drinking the Sea at Gaza: Days and Nights in a Land under Siege, publicado em 1996, desceveu a tragédia de Gaza:

“Viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de “viver na dor” das estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites do anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras; crianças cegadas por balas de borracha; pais humilhados e espancados na frente de suas famílias; soldados urinando nas cercas, atirando nos tanques de água dos telhados só por diversão, repetindo slogans ofensivos, batendo nas portas frágeis de lata para assustar as crianças, confiscando papéis ou despejando lixo no meio de um bairro residencial; guardas de fronteira chutando uma banca de legumes ou fechando fronteiras sem motivo algum; ossos quebrados; tiroteios e fatalidades – um certo tipo de loucura.”

Amira Hass, filha de dois sobreviventes do Holocausto, fez um relato minucioso do que estava ocorrendo nos anos de 1990 na Palestina e, em especial, na Faixa de Gaza. A descrição feita no século passado é elucidativa e dispensa meus comentários. Por isso reproduzo trechos do Epílogo do seu livro Drinking the Sea at Gaza: Days and Nights in a Land under Siege:

“[…] em 1996, o PIB per capita de Gaza tinha caído 37 por cento desde 1992; o PIB total diminuiu 18,5 por cento. Em seis meses, o desemprego aumentou 8,2%, atingindo 39,2%. Os habitantes de Gaza que tiveram a sorte de manter empregos na Faixa registaram uma queda de 9,6 por cento nos salários reais em 1995. Aqueles que trabalharam em Israel perderam 16 por cento dos seus salários. Sem dúvida, a política de encerramento de Israel é responsável pelos números terríveis. Dificilmente se pode imaginar que os decisores de Israel não se aperceberam das consequências inevitáveis da imposição do que é, na verdade, um cerco que dura anos. Como vimos, Israel explica os encerramentos apenas como uma resposta inevitável ao terrorismo e como a única forma de evitar mais ataques. Mas uma análise cuidadosa da política e das suas consequências – juntamente com outras medidas israelitas tomadas no contexto dos Acordos de Oslo, como o bloqueio da rota de passagem segura entre Gaza e a Cisjordânia – sugere uma compreensão diferente dos encerramentos.”

“[…] o governo [de Israel] começou a executar um antigo plano para ligar os colonatos da Cisjordânia a Israel através de uma rede de vias rápidas. Na nova linguagem de Oslo [o acordo de paz], estas tornaram-se “estradas de desvio” – cortes de asfalto largos e de alta velocidade que irão, argumenta Israel, garantir a segurança e a liberdade de movimento dos colonos judeus. Este enorme projecto de construção envolveu o confisco e a destruição de milhares de hectares de terras palestinianas cultivadas e alterou para sempre o tecido natural que liga as cidades e aldeias da Cisjordânia. O consentimento palestiniano foi facilmente obtido – aparentemente, as estradas secundárias foram concebidas para aumentar o sucesso da fase interina, protegendo os colonos judeus e permitindo assim que todas as partes alcançassem o estatuto final das negociações sem demasiada aspereza.”

“Construída ao custo de milhares de milhões de shekels, exclusivamente para as necessidades da pequena minoria judaica, a rede de estradas secundárias desempenhará um papel importante nas negociações de Israel sobre a retenção de território. Quem investe uma fortuna em estradas não pretende desmantelar as comunidades que as utilizam. Além disso, esta rede, que garante aos colonos judeus na Cisjordânia e na Faixa de Gaza uma linha de vida segura e rápida para Israel, foi criada exatamente ao mesmo tempo em que foram impostas restrições ainda maiores à liberdade de circulação palestiniana.”

“É verdade que, desde 1994, mais terras passaram a estar sob a jurisdição da Autoridade, mas os blocos de colonatos judaicos e a colcha de retalhos de novas estradas são, na verdade, o prego no caixão de um Estado palestiniano contíguo, qualquer que seja a forma que este possa assumir. A nova geografia significa que a sociedade palestina será fragmentada, fragmentada em enclaves isolados; a dimensão e a proximidade destes enclaves ainda não foram determinadas e serão determinadas pela força da posição negocial dos palestinianos, mas o movimento entre os enclaves envolverá sempre a passagem de bloqueios de estradas e postos de controlo tripulados por soldados israelitas. Na Cisjordânia, a vida social, cultural e econômica já foi prejudicada pela fragmentação da região e, especialmente, pela separação do norte e do sul em duas áreas distintas. Mas para o verdadeiro modelo do futuro, basta olhar para o enclave de 147 milhas quadradas da Faixa de Gaza.”

Dedico essas passagens dos textos de Achile Mbembe e Amira Hass a todas as pessoas que mesmo sendo democráticas e antirracistas veem com simpatia as ações do Estado de Israel. Sim, o que Israel pratica contra os palestinos “é a forma mais bem sucedida de necropoder”.

*Sergio Amadeu da Silveira é professor da Universidade Federal do ABC. Autor, entre outros livros, de Colonialismo de Dados: Como Opera a Trincheira Algorítmica na Guerra Neoliberal (Autonomia Literária). [https://amzn.to/3ZZjDfb]

Referências

 

HASS, Amira. Drinking the sea at Gaza: days and nights in a land under siege. Nova York: Henry Holt, 1996. [https://amzn.to/48Y0YV6]

MBEMBE, Achille. Necropolítica . 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

Foto: Soldados alemães levam judeus capturados durante a revolta no gueto de Varsóvia para o ponto de agrupamento dos prisioneiros a serem deportados para os campos de extermínio. Polônia, maio de 1943. Fonte: Museu do Holocausto

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