Araponga. Por Julio Pompeu

No Teoria Política

Nascido nos anos 80, cresceu assistindo a filmes de faroeste, detetives e espiões. Sonhou em ser cada um deles. Primeiro, virou militar, porque foi o que conseguiu e, na prática, o permitia fantasiar com um pouco de cada um de seus desejos infantis. No exército, aprendeu novos valores. De superioridade moral dos fardados sobre os descarados. Do seu papel de guardião incompreendido de uma ordem que só ele e seus irmãos fardados eram capazes de entender. Aprendeu também o valor do dinheiro e que o que se ganha na agência de inteligência é mais do que se ganha fardado. Deixou de ser capitão Freitas e tornou-se o agente Freitas.

No começo, as coisas não foram bem como ele imaginou. Ganhava mais, mas seu trabalho o satisfazia menos. No Exército havia alguma aventura, ainda que nas simulações de combate entre o Exército A e o B ou nos treinamentos de soldados que não raras vezes estavam ali a contragosto aprendendo o que é amar a pátria. Na agência só analisava papéis e cruzava dados. Muitas vezes com a sensação de ser um trabalho vazio. Vazio daquele menino que se empolgava com James Bond.

As coisas mudaram para Freitas quando o governo mudou. Seu trabalho mudou. Tudo mudou. Seu passado militar o colocou em ascensão entre seus colegas, alavancado por seus ex-colegas, mas eternos irmãos de farda. Ganhou cargo e salário a mais. Virou chefe. A coisa também ficou empolgante. Agora, havia um inimigo. Aquelas forças ocultas de um inimigo terrível. O inimigo de quase sempre. O inimigo interno. Aqueles compatriotas que não são patriotas como Freitas e seus irmãos. Que querem a pátria sobre outro governo. Cheio de valores e gente que, para Freitas, são o caminho para uma pátria fraca e sem ordem. Uma pátria decadente e comunista.

Seu novo trabalho era espionar estes inimigos. Os piores. Políticos, empresários, artistas e até mesmo militares – há sempre o fantasma de um Lamarca assombrando as mentes daqueles que procuram os sutis indícios do terrível inimigo interno. Como não podiam determinar, pediram que fizesse na ilegalidade. Como era uma guerra, topou. Alguns colegas não gostaram disso. São agentes que não fariam isso porque têm outra visão de certo e errado. Para Freitas eles são ingênuos que só olham a lei e nunca olham a situação como um todo. Nunca olham para o todo onde Freitas e seus irmãos encontram comunistas e os caçam enquanto engordam, merecidamente, seus contracheques.

No dia 8, achou que seu trabalho seria, finalmente, coroado com mudanças ainda mais radicais do que as que ele testemunhou nos últimos quatro anos. Seria o dia de uma importante vitória sobre os comunistas dos tribunais, universidades, imprensa, escolas, até do governo. Poderiam, finalmente, usar todos os recursos disponíveis. Poderiam… “Melhor nem pensar!”, pensou Freitas esperançoso.

Mas veio o dia seguinte. E o próximo. E todos os outros em que, ao contrário do que Freitas desejou e pelo que se esforçou de corpo e crime, as coisas feitas até então foram se desfazendo. Tudo foi voltando ao que era antes, quando Freitas lia papéis e escrevia relatórios sem sentir que combatia comunistas infiltrados nos lugares de sempre.

Sentiu uma profunda tristeza quando foi intimado para depor na Polícia Federal. “Quem essa gente pensa que é?”. Teria que falar do que aprendeu que não se pode falar. Das coisas que aprendeu a fazer e a negar que as fez depois. Tristeza por ter que deixar o mundo das sombras de onde seus heróis de infância entravam e saíam em glória, mas do qual Freitas será obrigado a sair sob os holofotes da vergonha.

Ilustração: Mihai Cauli

 

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