Solução pela natureza: REDD+ e as Salvaguardas de Cancún

Por Joaquim Shiraishi Neto, Luane Lemos Felicio Agostinho e Ester Mendes Gomes(1)

O Brasil, após breve interregno – decorrente da postura negacionista do governo anterior[2], que, com base em achismos e teorias conspiratórias, negou sistematicamente as mudanças climáticas –, retomou a sua agenda ambiental no governo do presidente Lula.

Não custa recordar que, em 1992, o Brasil assumiu um papel relevante no debate global sobre preservação ambiental ao sediar, no Rio de Janeiro (RJ), a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (conhecida como Eco-92). Entre os documentos, compromissos, ações e acordos que resultaram desse diálogo, estava a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC).

O propósito dessa Convenção era fixar objetivos e metas para os Estados quanto ao controle das emissões de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera, com o intuito de reduzir o impacto negativo no sistema climático a médio e a longo prazo, permitindo, assim, a adaptação natural dos ecossistemas às mudanças e reduzindo os riscos para a segurança alimentar e hídrica, a ocorrência de eventos extremos, o número de refugiados ambientais e outros impactos na sociobiodiversidade.

O sexto (e mais recente) Relatório de Avaliação (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da UNFCCC[3], publicado em março de 2023, informou que, em um cenário tão intensivo de emissões, a temperatura global poderia aumentar entre 3,3 ºC e 5,7 ºC até 2100. A meta estabelecida pela Convenção-Quadro é 1,5 ºC no mesmo período.

Diante desses diagnósticos cada vez menos promissores, a Conferência das Partes (conhecida como COP), que ocorre desde 1995, estabeleceu instrumentos para auxiliar os Estados na tomada de decisões e na elaboração de políticas ambientais capazes de alcançar seus compromissos climáticos (também chamados contribuições nacionalmente determinadas ou NDCs, na sigla em inglês).

Foi a COP-16 de 2010, em Cancún, que instituiu o conceito de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD)[4] e propôs um regime de salvaguardas como elemento necessário ao reconhecimento de sua efetividade. Para isso, foi adotada a lógica de pagamentos por resultados, pois ficou constatado que algumas das principais causas do aumento das temperaturas no planeta, além da queima de combustíveis fósseis, são o desmatamento e a degradação ambiental.

  1. O Brasil incorporou as Salvaguardas de Cancún à elaboração da Estratégia Nacional de REDD+ (Resolução CONAREDD+ n.º 9, de 7 de dezembro de 2017). Essas salvaguardas dispõem sobre um conjunto de direitos voltados para os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais (ver, especialmente, as letras “c” e “d” do documento). Constituem as Salvaguardas de Cancún:
  2. ações complementares ou consistentes com os objetivos dos programas florestais nacionais e outras convenções e acordos internacionais relevantes;
  3. estruturas de governança florestais nacionais transparentes e eficazes, tendo em vista a soberania nacional e a legislação nacional;
  4. respeito pelo conhecimento e pelos direitos dos povos indígenas e membros de comunidades locais, levando-se em consideração as obrigações internacionais relevantes, leis nacionais e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas;
  5. participação plena e efetiva das partes interessadas, em particular povos indígenas e comunidades locais;
  6. ações consistentes com a conservação das florestas naturais e diversidade biológica, garantindo que as ações referidas no parágrafo 70 da Decisão 1/COP-16 não sejam utilizadas para a conversão de florestas naturais, mas para incentivar a proteção e a conservação das florestas naturais e seus serviços ecossistêmicos, assim como para contribuir para outros benefícios sociais e ambientais;
  7. ações para evitar os riscos de reversão de resultados de REDD+;
  8. ações para reduzir o deslocamento de emissões de carbono para outras áreas.

No contexto dessa política do clima, os esforços do governo brasileiro[5] têm-se concentrado na edificação do sistema jurisdicional REDD+, que representa uma tentativa de promover, ao mesmo tempo, a conservação de florestas por meio de um mecanismo de repartição de resultados e o financiamento e o pagamento por serviços ambientais.

Apesar de ser um mecanismo intrigante, a Estratégia Nacional de REDD+ traz consigo desafios. O primeiro deles é que esse instrumento dá margem a uma transferência de responsabilidades. Enquanto os responsáveis pelo “novo regime climático” mantêm a sua atividade e a sua produção sem alterações, incluindo apenas mais um pagamento no processo (isto é, pagam para continuar poluindo), os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais ficam obrigados a cumprir metas de conservação de florestas do Estado[6].

Por isso, foi acordado entre os países o estabelecimento de um regime de salvaguardas, que, como sugere o próprio nome, visam proteger ou salvaguardar um conjunto de direitos fundamentais desses grupos contra o avanço do mercado climático. Trata-se, pelo visto, do reconhecimento e da proteção desses grupos e de suas práticas ecológicas[7], enraizadas nos seus modos de vida.

Após quatro anos de abandono e de violência por parte do Poder Público, quando esses grupos foram declarados hostis à sociedade, o governo atual tem a oportunidade única, diante de tantas experiências exitosas vivenciadas pelos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais na região Amazônica, de construir, com a participação de todos, uma política do clima própria do Brasil, “fora” dos marcos propostos. Por sua vez, caso opte por essa solução da política climática REDD +, o Estado deve cumprir o regime de salvaguardas a ela associado, garantindo aos grupos o direito à participação, à consulta e ao uso dos territórios tradicionalmente ocupados. Mais do que normativas, é necessário adotar uma política do cuidado.

[1] Joaquim Shiraishi Neto. Advogado. Doutor em Direito. Pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCSOC) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Associado do Instituto de Pesquisa em Direitos Humanos da Amazônia (IPDHA). Luane Lemos Felicio Agostinho. Advogada. Mestre em Direito Ambiental. Associada do IPDHA. Ester Mendes Gomes. Estudante do curso de Direito. Associada do IPDHA.

[2] A decisão do governo de se aliar a Donald Trump – que anunciou, no dia 1.º de junho de 2017, que os Estados Unidos da América sairiam do acordo de Paris sobre o clima – está em conformidade com uma agenda ultraliberal protagonizada pelos EUA no mundo. A respeito dos interesses econômicos em jogo, entre tantos estudos, recomendamos: LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

[3] Disponível em https://www.ipcc.ch/report/ar6/syr/. Acesso em: 24 set. 2023.

[4] A implementação da estratégia de REDD+ no Brasil avançou entre 2009 e 2015, período em que muitas iniciativas, normas e programas foram elaborados. Foi nesse interstício que a Estratégia Nacional de REDD+ foi desenvolvida no âmbito do Ministério de Meio Ambiente, e alguns fundos e planos de prevenção do desmatamento foram criados.

[5] Na região Amazônica, os esforços de uma política são compartilhados com os governos estaduais. Maranhão (Lei nº 11.578/ 2021); Pará (Lei nº 9.048/2020); Amapá (Lei nº Decreto nº 5.096/2013); Amazonas (Lei nº4.266/ 2015); Roraima (Decreto n. 29.710-E/ 2020); Tocantins (Lei nº 4.111/2023); Mato Grosso (Lei nº 9.879/ 2013); Rondônia (Lei nº 4.437/ 2018); e Acre (Lei nº 2.308/2010).

[6] Os mecanismos de proteção da natureza, que associam a sua proteção à sua utilidade econômica, por meio da precificação, já se mostraram, em outras oportunidades, problemáticos. Após a Constituição Federal de 1988, os diversos governos editaram um conjunto de políticas ambientais a pretexto de proteção da natureza do Brasil, todas elas em diálogo com uma agenda ambiental internacional. Uma crítica a essas políticas, que negam o pluralismo social e os “modelos locais de natureza”, pode ser consultado em: SHIRAISHI NETO, Joaquim. Globalização do direito: novos conteúdos à natureza. Revista Internacional de Direito Ambiental, Caxias do Sul (RS), v. 6, n. 17, p. 117-140, maio/ago. 2017.

[7] A ecologia das práticas que pressupõem um jeito próprio de coabitar no território com os seres não humanos (florestas, animais, fungos, bactérias, vírus etc.) associa-se a uma profunda consciência ecológica e a um saber-fazer desses grupos culturalmente diferenciados.

Queimada de pasto no Pará. Foto: Rodrigo Baleia, Greenpeace

 

Comments (1)

  1. Parabéns professor o senhor é um grande exemplo pra mim muito obrigada por ser um defensor da natureza junto com agente as comunidades tradicionais quilombola

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