Os povos têm o direito de se defenderem do colonialismo. Por Egydio Schwade

“Em 1969 e 70 ampliei o meu olhar sobre a história dos Kaingang e Guarani de Santa Catarina e do Paraná. História igual a do Rio Grande do Sul. E no Paraná tive notícias da última família do povo Xetá, extinto, como já o foram centenas de povos do Brasil. No mesmo ano um grupo de estudantes jesuítas: Ivo Schoeder, Urbano Müller e Antonio Brand, durante as suas férias foram ver a situação dos Xokleng no vale do rio Itajaí/SC. Por toda a parte a mesma história colonial presente até hoje”, escreve Egydio Schwade, membro-fundador do Conselho Indigenista Missionário — Cimi, em artigo publicado por Blog Casa da Cultura do Urubuí

IHU

O colonialismo é essencialmente perverso. E o Estado de Israel é fruto do colonialismo inglês e americano. No ato de sua criação, em 1948, foram expulsos de sua terra imemorial 750.000 palestinos. E mediante a prática do colonialismo, Israel vem ampliando o seu território. Já são em torno de 500 mil colonos israelenses que se instalaram, à revelia de leis e tratados, em território palestino. Gaza é um “campo de concentração” de refugiados palestinos, resultado do colonialismo de Israel. Foi o que restou ao povo expulso do território hoje ocupado por Israel. Agora já vem falando em expulsar 2.200.000 para o deserto do Sinai.

Vi e senti, durante 60 anos de minha vida as consequências do colonialismo português e brasileiro que pesou e pesa genocida sobre os povos originários no Brasil e não me arrependo de ter gasto todos estes anos lutando contra este colonialismo e suas consequências.

Ao terminar o curso de Filosofia iniciei uma maratona pelo país, a fim de ver o que acontecia aos povos indígenas. Percorri o Brasil pelos interiores, de ponta a ponta, para ver, sentir e ouvir da boca dos sobreviventes o que lhes aconteceu, outrora e o que acorria agora. O que constatei ainda carece de ser reconhecido oficialmente: um genocídio praticado pelo colonialismo português e brasileiro.

Não foram fatos ocorridos apenas em um ou dois Estados da federação, mas todos eles presenciaram o genocídio de mais de um povo. Dezenas de povos deixaram de existir, trucidados pelo colonialismo. Outros sobreviveram e seus descendentes lutam contra ele. Pisamos um chão ensanguentado do Sul ao Norte. Pessoas e povos, santos mártires. Por toda a parte povos continuam lutando e morrendo na defesa do seu chão.

Em 1963, fui ao Noroeste de Mato Grosso onde o povo Cinta Larga, naquele ano sofreu o “Massacre do Paralelo 11”, invadido pela firma Arruda-Junqueira com a cobertura da Polícia Militar de Mato Grosso. E li sobre as armas usadas, guardadas num caixote: “Exclusivo do Exército Brasileiro”. O que “ocorreu” aos Cinta Larga, aconteceu aos pais dos meninos, com quem convivi nos meus primeiros 3 anos de indigenismo. naquele Noroeste de Mato Grosso: Rikbaktsa, Nanbikuara, Kayabi, Apiaká, Manoki, Paresi, Xavante e Bororo. Um Genocídio praticado por um colonialismo oficial e oficioso.

Entre 1967 e 1970 visitei os “toldos” dos povos Guarani e Kaingang do Rio Grande do Sul. O que estava ocorrendo ali naquele momento, foi o mesmo colonialismo sob a ação dos governos, estadual e federal.

Em dezembro de 1967 viajei pelo rio Arinos/MT. O médio Arinos era então domínio dos índios Tapayuna. Índios isolados, mas ameaçados por todos os lados pelo latifúndio. Falava-se de 1.000. No final daquele ano restaram apenas 43 pessoas que foram deportadas pelo governo para o Parque Nacional do Xingu, obrigados a ceder seu rico território aos latifundiários.

Em 1969 e 70 ampliei o meu olhar sobre a história dos Kaingang e Guarani de Santa Catarina e do Paraná. História igual a do Rio Grande do Sul. E no Paraná tive notícias da última família do povo Xetá, extinto, como já o foram centenas de povos do Brasil. No mesmo ano um grupo de estudantes jesuítas: Ivo Schoeder, Urbano Müller e Antonio Brand, durante as suas férias foram ver a situação dos Xokleng no vale do rio Itajaí/SC. Por toda a parte a mesma história colonial presente até hoje.

1970 e 1971 visitei os remanescentes dos Pacaa Novo e Makurap no rio Guaporé/RO. Povos que foram encurralados e massacrados durante a construção da Ferrovia Madeira-Mamoré e mais recentemente, pela Rodovia Porto Velho-Guajará-Mirim.

Em maio e julho de 1971, percorri o interior de São Paulo, visitando as aldeias dos remanescentes Kaingang em Bauru, Guararapes e dos Guarani no litoral: Itanhaém e Peroibe. Dali segui para o Rio de Janeiro. E cadê os povos que defenderam o Rio contra os franceses? Foram silenciados para sempre pelo colonialismo português. Fui ao Espírito Santo, procurando noticias de remanescentes dos Tupininkim, donos daquelas lindas praias! Os encontrei escravos da Aracruz Celulose. O nome da capital é “Vitoria”, ironia da guerra de Mem de Sá contra os Tupininkim, uma guerra semelhante a do Netanhahu hoje, contra o povo palestino da Faixa de Gaza.

Em 1974 andei na aldeia Funil dos Xerente, no Médio Tocantins; com os Apinagé do Bico do Papagaio e com os Guajajara e Kanela do Maranhão, que já foram grandes e altivos povos, mas o colonialismo português e brasileiro os reduziu há poucos. Dali fui ao Pará pela Transamazônica, onde conheci a história dos Suruín, dos Arara, dos Gavião e dos Parakanã. A rodovia e a UH-Tucurui foram os instrumentos do colonialismo que lhes trouxe o genocídio e quase os extinguiu.

Da Transamazônica me dirigi às aldeias dos Tiriyó e Kaxuiana no Rio Paru do Oeste, limite do Suriname. E ainda, no mesmo ano de 1974, passei um mês entre os Ticuna e os Kokama do Alto Solimões. E em dezembro/78, fui no Alto Rio Negro, onde se refugia mais de uma dezena de povos, esmagados e resistindo contra o etnocídio e o colonialismo.

Em março de 1975, visitei os Suruí de Rondonia, os Paiter do Espigão do Oeste/RO. Uma aldeia de índios recém-contatados, perplexa, perdida na margem de uma rodovia e de uma cidade “pioneira”. Um povo agredido, ameaçado de extinção por uma colonizadora sulista. Em abril fui aos Tapirapé, no rio Araguaia, em luta pela recuperação da sua terra e autonomia, com a presença incentivadora e amiga das Irmãzinhas de Jesus. Em maio estive na aldeia Cururu do Alto Tapajós, dos índios Munduruku. Um povo que foi dividido geograficamente, em meio à luta de resistência contra o colonialismo português. Hoje, metade vive na bacia do Tapajós e metade no Madeira e continuam sendo agredidos, tanto no Tapajós como no Madeira. Ainda há pouco tempo a Polícia do Estado do Amazonas os agrediu matando vários impunemente.

Em 1976 empreendi uma viagem pelo Acre. Visitei aldeias dos Madiha e dos Kaxinauá do Alto Purus. Estes me informaram sobre a existência de aldeias dos seus “patrícios” no rio Envira. Acompanhado por dois jovens da Operação Amazônia Nativa-OPAN, atravessamos então a floresta, do Purus ao Envira, para ver a situação desses povos ali. Topamos com uma aldeia Madiha num curral, procurando sobreviver no meio do gado de uma empresa colonizadora, favorecida por incentivos fiscais do Governo. No mesmo ano, Doroti, minha futura esposa, completou a visão sobre o rio Envira até a fronteira peruana. Defrontou-se com os homens de duas aldeias: uma de Madiha e outra de Ashanika, escravos da fazenda Atlântica Boa Vista, cujo dono era ministro da Ditadura Militar. Doroti viajou ainda por todo o rio Purus, médio rio Madeira e afluentes, deparando com a situação aflitiva de quase uma centena de “restos” de comunidades índigenas dispersos pelos seringais.

O mês de novembro de 1976, passei em Roraima, visitando os Wapitxana, Makuxi, Taurepang, Ingarikó e Yanomami, onde vi, senti e denunciei as invasões e agressões que sofriam pelos fazendeiros e garimpeiros e participei da assembleia de mais de 200 líderes destes povos que iniciaram a luta pela reconquista da terra Raposa Serra do Sol, como território continuo. Terra invadida por latifundiários. O governo propunha “ilhas”. Um sistema que agradava os invasores, pois levava à sistemática expulsão dos donos da terra. Foi o início de uma luta vitoriosa 32 anos depois, com a homologação da Raposa Serra do Sol como área continua. Mas as agressões colonialistas aos índios continuam até hoje.

Em abril/77 percorri o Mato Grosso do Sul. Primeiro, o território tradicional dos Terena e depois dos Kaiowa-Guarani, mais ao sul. Ambos vivem exprimidos no meio do latifúndio, permanentemente ameaçados pelas milícias dos fazendeiros invasores que agem como donos absolutos do território desses povos, submetendo-os a uma agonia lenta, como faz Israel desde 1948 contra o povo palestino. Uma vergonha nacional: um genocídio que clama aos céus.

Os meses de agosto e setembro do mesmo ano, passei sobre as águas do rio Juruá buscando remanescentes de povos indígenas. Quando da passagem da expedição de Pedro Teixeira pelo rio Solimões, em 1640, os sinuosos rios da margem direita do Solimões: Purus, Juruá, Jutaí, Jandiatuba e Javari, estavam densamente povoados e abrigavam dezenas de povos. Hoje são raras as aldeias. Consegui localizar apenas algumas aldeias Madiha e Kanamari e os Deni do Rio Xiruã.

Em 1978 percorri, Minas Gerais e Bahia, onde visitei descendentes dos povos Maxakali, Krenak e Pataxó… E em Rodelas, senti a angústia dos Tuxá, ameaçados pelo lago da Hidrelétrica de Itaparica. A Ilha da Viúva, o último torrão de terra que lhes restava, no meio do rio São Francisco, ameaçado. Um chão comunitário, um oásis comunista no meio do Nordeste privatizado, prestes a ser submerso pelo lago da hidrelétrica. Ali os Tuxá “tinham tudo em comum e dividiam os seus bens com alegria”. Foi ali onde Antônio Conselheiro se inspirou para a Utopia de Canudos. No mesmo ano ainda procurei, em companhia de um casal da OPAN, Fábio e Nira, outros povos sobreviventes no Nordeste: os Fulni-ô de Águas Belas, os Xocó do Sergipe, os Xukuru de Alagoas e os Potiguara da Paraíba. Em Pesqueira subi a Serra do Ororubá para ver a situação dos Xukuru, exprimidos no meio das montanhas lutando por uma nesga de terra para sobreviver. E nos confins de Floresta tive notícia dos Atikum. Gente da Bia, Maria Silva, hoje coordenadora do MST em Roraima.

Neste mesmo ano de 1978 empreendi ainda com o companheiro Egon Dionísio Heck, coordenador do CIMI-Sul, uma viagem pelo Paraguai, Argentina e Bolívia. Nosso objetivo foi sentir a pujança dos povos indígenas do Chaco e do Altiplano e animá-los a afirmarem a sua identidade, como povos: Guarani, Quetxua, Aimara… E partindo de nossa experiência no CIMI, convencer os companheiros da Igreja, a também afirmarem esta identidade, como Guarani, Quetxua, Aimara… Não são apenas “campesinos”, são povos nos quais arde a força transformadora do sistema colonialista vigente.

Em 1980, a convite de lideranças Sateré-Maué, participei com a família de uma assembleia de diversos povos indígenas da Amazônia, na aldeia Simão, terra do povo Sateré-Maué, naquele momento invadida pela empresa francesa Elf-Equitaine fazendo prospecções petrolíferas.

Mais recentemente estive ainda em outras regiões do país, conhecendo a atuação ou omissão do governo junto a outros povos, como os Tembé ou Tenetehara do Pará e os Katukina em Cruzeiro do Sul/Acre. E em Roraima fui apoiar um grupo de guerreiros Yanomami na destruição de dois garimpos invasores, no rio Couto Magalhães, próximo à Venezuela.

Nestas andanças para localizar sobreviventes do criminoso colonialismo, fui seguido por algumas centenas de jovens de vários países e crenças que deram um passo adiante, encarnando-se na situação destes povos, reunindo-os em assembleias, buscando reerguê-los, reincendiando neles o ânimo de luta pelo direito à terra, à sua cultura e à sua autonomia.

E em 1980, com minha esposa Doroti Alice e filhos pequenos, viemos para cá com o objetivo de conviver com o povo Kiña, ou Waimiri-Atroari, neste norte do Estado do Amazonas. Um povo que acabara de ter o seu território invadido e em grande parte colonizado pelo governo brasileiro que o passou a ricos do Sul e empresas de energia e mineração. E para erradicar os Waimiri-Atroari do seu chão imemorial, valeu-se das Forças Armadas. Quando aqui chegamos, pesava sobre os 332 sobareviventes, um regime machista, comandado por soldados do Exército e homens da FUNAI, cuja maior preocupação foi ocultarem o crime de mais 2.500 Kiña desaparecidos. Iniciamos a sua alfabetização que lhes deu a oportunidade de revelarem como foram mortos os seus pais.

A partir de minhas vivencias com os povos indígenas, esporádicas e prolongadas, a sós e com a família, em especial, na aldeia Yawara dos Waimiri-Atroari, ou Kiña, avalio que o paradigma ainda hoje praticado na vida desses povos nos poderá trazer uma vida mais feliz. Ali prevalece o interesse social, o carinho e o bem-viver das pessoas. Sempre me senti seguro e feliz, com e sem a família. Vivem um paradigma de organização que desejo aos meus descendentes e às futuras gerações.

Do governo de D. Manuel, rei de Portugal, em 1500, ao governo Bolsonaro, prevaleceu sobre os índios brasileiros uma atitude de soberba, de desrespeito, de mentira, de traição, de preconceito, de donos absolutos sobre a sua vida, seu território e seus recursos naturais.

O “Tratado de Tordesilhas, assinado entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela, em 7 de junho de 1494, dividiu as terras “descobertas e por descobrir”, entre ambos, como se não tivesse tido gente. O simples olhar ganancioso do português sobre uma nesga do litoral brasileiro, mesmo defrontado com uma terra densamente habitada, o considerou dono de tudo o que existia por detrás. A 1ª. frase da carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manoel declara: “do achamento desta vossa terra nova”.

A lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, transferiu toda a terra brasileira ao Estado, para que este proceda a sua privatização por compra, como única forma de acesso à mesma. Com uma canetada os índios viraram posseiros nas terras do Estado. Onde está o Direito que legitima isto?

E quando se trata de devolver algo do direito roubado, vem as PECs, PLs, o Marco Temporal, a “conquista” de leis e mais leis que ‘justificam’ o roubo da colonização.

Este território onde moro, há 50 anos foi território do povo Waimiri-Atroari foi colonizado, como se fosse um “vazio demográfico”. Construiu-se a BR-174, instalou-se a Hidrelétrica de Balbina e a mineração Taboca e centenas de lotes de terra foram doados a empresários sulistas. Hoje os governos se acham no direito de passar um “Linhão” pela sua terra. E isto prossegue na terra Yanomami; na terra dos Kaiowá-Guarani e Terena no Mato Grosso do Sul; dos Guajá, Guajajara, Kanela, no Maranhão; dos Gavião, Parakanã, Tembé, Suruí, Arara e Apalaí no Pará; dos Xukuru, Fulni-ô e Atikum no Pernambuco; na terra dos Potiguara da Paraíba e Rio Grande do Norte; dos Surui, Urueu-Au-Au, Nanbikuara, em Rondônia; dos Katukina, Madiha e Kaxinauá, no Acre; dos Kaingang, Guarani e Xokleng no sul do Brasil; na terra dos Tupininquim do Espírito Santo, dos Pataxó e Truká na Bahia; dos Xukuru-Kariri e Xokó do Pernambuco, Sergipe e Alagoas; dos Apinagé e Xerente no Tocantins; dos Tapayuna, Enauen-Nauê e Myky no Mato Grosso; e na terra dos Galibi e Karipuna no Amapá.

Os ingleses fundamentaram o seu ato colonial de expulsão dos palestinos e criação do Estado de Israel na dispersão dos judeus de Jerusalém, no ano 70 p.C. pelos Romanos. Não levou em conta o direito originário dos palestinos a esta terra, povo palestino que resistiu às legiões romanas e que tem o direito de defender de todas as formas, a sua terra. De sair, do “campo de concentração” da Faixa de Gaza, onde se encontra encurralado há 75 anos por Israel.

Ao povo inglês e estadunidense, resta pedir a paz, sim, mas principalmente qualificar e pedir perdão pelo colonialismo genocida que instalou sobre o povo palestino e indenizá-lo no que ainda for possível.

O Ocidente cristão também precisa rever a sua História, desde o tempo da sua 1ª tentativa colonialista frustrada sobre o povo palestino: as Cruzadas. E dos atos coloniais que em seguida praticou e continua praticando contra os povos da África, Ásia e das Américas.

Ainda necessitamos de chefes de estado, incluindo o do estado do Vaticano que olhem de frente a sua História, os acontecimentos que vitimaram milhões de indígenas e provocaram o genocídio total ou parcial de centenas de povos. É preciso que tenham a coragem de qualificar estes acontecimentos pelo que foram e pelo que são, na atual perspectiva, sem atenuantes: genocídios, colonialismo cruel. É preciso ouvir e atender os gritos dos seus remanescentes e à luz da sua responsabilidade histórica e moral, pedir perdão e reparar da forma que ainda for possível os sobreviventes pelos danos causados. Reconhecer o “direito de se defenderem”. Só assim poderá iniciar a construção de uma paz duradoura, uma sociedade reconciliada e fraterna.

Edgar Kanaykõ, do povo Xakriabá (MG), premiado fotografo e mestre em antropologia formado pela UFMG

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