Nesta entrevista, o atual secretário da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai/MS), Weibe Tapeba, fala do papel da Sesai no enfrentamento da emergência e traça um diagnóstico das principais demandas que devem ser atendidas pela Secretaria em curto e médio prazo.
Juliana Passos – EPSJV/Fiocruz
Há um ano, em 20 de janeiro de 2023, o governo federal decretava a Emergência Sanitária na Terra Indígena Yanomami. Nesse período, foi possível aumentar a infraestrutura de atendimento de saúde à população local, ao mesmo tempo em que a quantidade de garimpeiros voltou a crescer. Ciente de que a situação não seria resolvida em pouco tempo, nesta entrevista, o atual secretário da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai/MS), Weibe Tapeba, fala do papel da Sesai no enfrentamento da emergência e traça um diagnóstico das principais demandas que devem ser atendidas pela Secretaria em curto e médio prazo.
Quais são as principais ameaças à saúde indígena atualmente?
Weibe Tapeba: Temos um cenário em que há um passivo muito grande de ações a serem realizadas. Temos vazios assistenciais em diversos territórios indígenas do Brasil, tanto nas regiões de difícil acesso quanto nos territórios em que a Sesai já vem atuando. Neste momento, estamos fazendo um diagnóstico para começar a implementar um plano de superação dessas desigualdades nos territórios para estruturar unidades de saúde, de saneamento e de ampliação da nossa capacidade de assistência.
Qual foi o papel da Sesai na emergência Yanomami? O que foi feito e o que falta fazer?
Encaminhamos uma equipe para fazer uma missão exploratória de diagnóstico e identificamos o cenário de caos, de uma crise sanitária e humanitária. A partir daí, começamos a articular ações com o Ministério da Saúde, Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] e o Ministério dos Povos Indígenas [MPI]. E a ministra da Saúde, Nísia [Trindade], tomou a decisão de declarar a Emergência Sanitária de Interesse Nacional em janeiro de 2023. Então, foi a Sesai que identificou esse cenário de emergência sanitária e humanitária em cumprimento da nossa missão, porque se trata de uma emergência baseada em um cenário de desassistência.
Essa emergência é resultado de um cenário de verdadeiro abandono diante da invasão de mais de 20 mil garimpeiros, o que levou à contaminação das águas por mercúrio, a um cenário de desnutrição, casos de malária e doenças respiratórias agudas e que resultaram em um número de mortes bem acentuado nos últimos dois anos. Então, a nossa atuação, evidentemente, precisa ter uma sinergia direta com a intrusão do território, a retirada de todos os invasores garimpeiros daquela região. Estamos tratando da maior terra indígena do Brasil, com quase 10 milhões de hectares, mais de 380 comunidades, mais de 31.000 indígenas. É um território com acesso de entrada e saída pelo modal aéreo.
Há um ano, oito polos-base de atendimento à saúde estavam fechados e conseguimos reabrir sete. Temos demandado ao Ministério da Defesa a necessidade de ter segurança para reabrirmos o oitavo e garantir uma rotina de assistência nessas áreas. Nesse período, conseguimos contratar 960 profissionais de saúde diretamente pela Sesai, além de parcerias com a Fiocruz e com o Fundo das Nações Unidas para a Infância [Unicef], que também colocou voluntários expedicionários. Nesse período, também construímos seis unidades de saúde indígenas no território e duas estão em processo de finalização. Em 2024, pretendemos construir 22 novas unidades de saúde, além da reforma e ampliação de unidades existentes. Vamos buscar ocupar todas as vagas de profissionais de saúde, que tem sido um gargalo muito grande ainda.
Quando começamos a emergência sanitária, identificamos que a maioria das unidades de saúde não dispunha de acesso à água potável, internet e energia elétrica. Com esse diagnóstico, conseguimos fazer um debate público e institucional interministerial para levar infraestrutura às unidades de saúde. Sem a estrutura básica, nenhum médico, enfermeiro ou qualquer profissional de saúde se sente encorajado, atraído ou estimulado a prestar o seu serviço dentro de um território em que será preciso ficar de 15 a 45 dias seguidos. Então, essa infraestrutura básica influencia na capacidade de ampliação do número de profissionais contratados. Entendemos ainda que há a necessidade de ser mais resolutivo dentro do próprio território e nossa intenção é instituir o primeiro centro de referência em saúde indígena para levar também, além do serviço de atenção primária, a atenção especializada para a região. Também iremos construir o primeiro hospital indígena do Brasil, em Boa Vista (RR), e estamos com a licitação para as Casais [Casas de Apoio à Saúde Indígena] em curso para a ampliação, reconstrução dos alojamentos e de toda a parte administrativa para conseguir, de fato, dar mais dignidade para o povo Yanomami naquela região.
Por outro lado, acredito que, naquele território, o modelo de atenção à saúde só será restabelecido quando a capacidade produtiva da comunidade for reativada. Tivemos muitos Yanonamis aliciados pelo garimpo, que foi introduzido no território junto com álcool, outras drogas, armamentos. Então, o presidente [Luiz Inácio Lula da Silva] anunciou, recentemente, algumas medidas para sair desse cenário de ações emergenciais para ações mais estruturantes e permanentes, entre elas, a implantação de três bases e interagências para garantir a segurança pública na região e também será instalada, de forma provisória, uma casa de governo para coordenar essas ações.
Você poderia detalhar quais são as principais atribuições da Sesai?
Sim, essa é uma questão inclusive em debate interno entre a Sesai e o Ministério da Saúde. Ao longo de 2024, vamos elaborar um aperfeiçoamento da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI). Em maio de 2023, ocorreu a 76ª Assembleia Mundial de Saúde na qual o Brasil liderou um processo de aprovação, pela primeira vez, de uma resolução sobre saúde indígena e iremos aproveitar o mote dessa discussão para pensar essa nova política. Entendemos que o nosso subsistema, que historicamente vem sendo subfinanciado, precisa ser considerado super sistema com super financiamento.
Nesse processo de propor mudanças, estamos alterando de forma conceitual e estrutural essa área da Atenção Básica. A nossa intenção, inclusive, é implantar em grande escala, já a partir de 2024, laboratórios de exames clínicos básicos dentro dos próprios territórios, para evitar que os indígenas precisem se deslocar do território para fazer um exame básico. A perspectiva, em um futuro muito próximo, é de mudança radical da saúde indígena brasileira com um formato de resolutividade no território, em que haja condições de um atendimento especializado sem deslocamento. A ideia é só retirar o indígena de dentro do território para acessar a rede de serviço da média e da alta complexidade, para procedimentos que não são possíveis de serem realizados dentro dos territórios.
O subsistema de saúde indígena tem pouco mais de 20 anos. Em 2010, a Sesai foi criada. O que muda com a criação da Sesai em termos de estrutura de atenção e atribuições?
A trajetória do subsistema começa com o Serviço de Proteção ao Índio, em 1910. Quando a Funai foi criada, em 1967, o órgão assumiu atribuições de assistência na área da educação e da saúde. Em 1999, essa atribuição passa para a Funasa, a Fundação Nacional de Saúde. Em 2009, nesse novo arranjo institucional, se buscou fortalecer a política de saúde indígena e o subsistema de atenção à saúde indígena, através da criação de uma secretaria específica para conduzir a política naquele momento. No entanto, ao longo dos anos, as organizações indígenas brasileiras avaliaram que a Funasa não tinha mais condições de conduzir a política, porque grande parte das suas atribuições estavam voltadas para o saneamento dos municípios brasileiros com até 50 mil habitantes e a saúde indígena acabava ficando meio que renegada. A partir dessa avaliação, e por meio de uma capacidade política de articulação, nasceu a Sesai. Então, a secretaria nasceu para cumprir essa missão institucional de coordenar e executar a política de saúde indígena em todos os territórios, o que também inclui o saneamento.
Por uma demanda dos povos indígenas, os 34 Distritos Sanitário Especiais Indígenas, os DSEIS, não seguem fronteiras de municípios ou estados. Qual foi o critério para demarcação desses distritos?
Os DSEIS estão pensados dentro de uma articulação que combina características geográficas, relações interétnicas e sociolinguísticas. Em nossa leitura atual, esse modelo já não dá conta dessa mesma realidade, porque nós temos alguns distritos especiais com grande extensão, o que leva a uma série de limitações, inclusive de articulação com entes federados entre aqueles que superam limites geográficos. A nossa intenção é a de apresentar para a ministra [dos Povos Indígenas], Sonia Guajajara, e para o presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva] uma proposta de reestruturação da Sesai, envolvendo inclusive o novo arranjo de um dos nossos distritos.
Existem alguns distritos que já seguem a lógica do Estado, por exemplo, na Bahia e no Ceará. Então, alguns distritos já seguem essa lógica dos entes federados estaduais. Pode ser que isso aconteça, por exemplo, no distrito do interior Sul, que é o distrito que atende todos os povos indígenas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Nós defendemos a divisão desse distrito exatamente pela dificuldade de articulação entre os estados. Mas, evidentemente, isso vai ser objeto de consulta junto às comunidades indígenas. Devemos lembrar que o artigo sexto da nossa Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, diz que toda medida administrativa e legislativa suscetível a afetar a vida dos povos indígenas deve ser submetida à consulta das populações envolvidas.
Ao mesmo tempo que se busca uma maior articulação entre estados e municípios, a ideia é permanecer com a vinculação federal, é isso?
A vinculação dos DSEIS é diretamente com o governo federal e é a partir dessa esfera que temos buscado criar uma rede de atenção de retaguarda para os entes federados estarem preparados para atender a população indígena quando for preciso acessar os serviços integrais do Sistema Único de Saúde (SUS). Por exemplo, os hospitais, policlínicas e maternidades podem se habilitar nos estados e nos municípios para receberem o Incentivo para a Atenção Especializada aos Povos Indígenas [IAE-PI). A partir desse incentivo eles têm condições, inclusive, de receber um recurso orçamentário mensal baseado no número de atendimentos da população indígena.
Atualmente, a ausência de credenciamentos esbarra na própria barreira da informação. Muitos gestores desconhecem a existência do IAE-PI. Temos pedido o apoio do Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde] e do Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde] para nos ajudar a mobilizar os seus gestores e fazer com que eles consigam identificar se esses equipamentos nos municípios ou nos estados já estão credenciados ou não. A nossa intenção é que eles possam identificar se possuem ou não equipamentos credenciados e, se não possuírem, entrem em contato com a Sesai para receber orientações de como realizar a adesão.
Desde a sua criação, a Sesai contrata os profissionais de saúde de maneira terceirizada. Quais as consequências da adoção desse modelo?
Existe uma avaliação do movimento indígena brasileiro de que, infelizmente, nos moldes atuais, o concurso público com cargos efetivos não dá conta de atender à saúde dos povos indígenas. O motivo é que, após cumprirem o período probatório de três anos, os servidores pedem transferência, remoção e não ficam na saúde indígena. Então, esse instrumento não é eficiente na área finalística. Recentemente, o Programa Mais Médicos, previu a criação da AGSUS [Agência Brasileira de Apoio à Gestão do SUS], que é uma agência de fortalecimento do SUS, já com a autorização para a contratação da força de trabalho da saúde indígena. Nós, os povos indígenas e suas organizações representativas, devemos fazer um debate sobre a Agência para, ao final, tomar uma decisão se, de fato, a força de trabalho será migrada desse modelo de convênios com entidades para a própria AGSUS. Então, queremos, de fato, alterar esse modelo de contratação precária da força de trabalho aqui na saúde.
Em 2019, a Controladoria Geral da União (CGU) divulgou um relatório com algumas recomendações para a Sesai. Entre elas, está a necessidade de criação de diretrizes para atuação dos DSEIS e monitoramento dessas orientações. O senhor concorda com essas recomendações? O que está sendo feito para essa organização?
Eu concordo. Inclusive, estamos adotando algumas medidas. Nossa intenção é tentar qualificar o monitoramento da avaliação e da gestão dos contratos da Sesai, pois identificamos muitas falhas em relação ao monitoramento desses contratos e isso acabava causando muito transtornos. Há um índice muito grande de contratos emergenciais e de reconhecimento de dívida dentro do serviço prestado pelos DSEIS. E, com esse controle, queremos não só ter mais transparência com relação ao destino dos recursos, como garantir a continuidade e não abrir precedente para a desassistência. Se não conseguirmos fazer um bom monitoramento desses contratos, corremos o risco de um contrato vencer e gerar desassistência para os povos indígenas. Isso, infelizmente, era um retrato comum e é algo que queremos mudar na nossa gestão.
Neste terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as lideranças indígenas assumiram pela primeira vez a Sesai, a Funai e foi criado o Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Qual é a importância de assumir esse protagonismo?
Eu entendo como sendo um momento adequado, porque buscamos formação, capacitação e estamos preparados para assumir essas funções. E mais do que preparados, temos sensibilidade e compromisso com os nossos territórios. Conhecemos onde estão as principais deficiências, os principais gargalos e, a partir daí, temos uma condição melhor de buscar a superação dos problemas identificados na área da saúde, na demarcação e gestão dos territórios. Temos realizado algumas ações conjuntas com o MPI e com a própria Funai e queremos aperfeiçoar cada vez mais essas relações interministeriais.
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Imagem: Foto: Walterson Rosa/MS