Felipe van Deursen e Pâmela Carbonari Role, BBC News Brasil
Em 1981, no embalo do sucesso de Lança Perfume, do ano anterior, Rita Lee enviou uma nova letra para análise na Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP).
Era um procedimento padrão para os artistas naqueles anos em que o Brasil vivia sob a censura da ditadura militar.
A letra foi proibida, porque “se referia ao ciclo menstrual da mulher, o que suscitará indagações precoces em torno do assunto”, informou a DCDP em seu parecer.
Em 1982, a cantora tentou novamente emplacar a música, que teve alguns versos mudados e ganhou o nome definitivo: Cor-de-Rosa Choque.
A canção tinha potencial e havia sido encomendada pela TV Globo para a abertura do TV Mulher, programa que marcou época por falar de sexualidade a um público feminino de maneira franca e direta para o momento.
As cartas e recursos movidos pelos executivos da gravadora Som Livre e a recomendação do Conselho Superior de Censura (CSC) para abrandar a situação surtiram efeito, e a música foi liberada, porém com cortes.
O trecho “Mulher é um bicho esquisito/Todo mês sangra” foi vetado em execuções no rádio e na TV.
“Claro que a censura implicou”, escreveu a cantora em Uma Autobiografia (Globo Livros, 2016).
Rita Lee lembrou que tentou argumentar em defesa da naturalização de temas como menstruação e tensão pré-menstrual para aquela “mulher-tailleurzinho-cinza-soviético”. Mas era difícil, segundo ela.
Em 1983, em um show diante de milhares de fãs, uma possessa e debochada Rita Lee mandou um recado àquela censora: “Dona Solange, a senhora não conhece modess?”.
Não foi a primeira vez que ela se referiu a essa Solange que supostamente não conhecia absorvente.
No mesmo ano, os fiscais da censura riscaram a faixa Arrombou o Cofre, do álbum Bombom. Na música, Rita cantava: “Na linha dura, basta a Solange da censura.”
Solange Maria Chaves Teixeira Hernandes ficou famosa como a maior censora da cultura e do entretenimento no Brasil nos últimos anos da ditadura.
A assinatura “Solange Hernandes”, odiada no meio artístico, virou a marca dessa mulher que ficou notória pelo rigor em uma época em que a repressão já havia diminuído.
Em 1985, a censora ganhou uma música inteirinha para ela: Solange, uma versão de So Lonely, do The Police, feita pelo cantor Leo Jayme.
A letra traz trechos como “E quando eu tento escrever/Seu nome vem me interromper” e “Para de me censolange.”
Inimiga dos artistas
Implacável no carimbo e durona na caneta, a “dama da tesoura”, como era conhecida, foi uma personagem temida e lendária do Brasil dos anos 1980.
Entre 1981 e 1985, Solange comandou a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), um órgão da Polícia Federal criado em 1972, mas cujas origens remontam ao antigo Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), lançado em 1945, durante outra ditadura, a do Estado Novo.
Mas nem sempre a DCDP foi sinônimo de repressão pesada. Quando João Batista Figueiredo chegou à Presidência, em 1979, o Brasil vivia a “abertura lenta, gradual e segura” na política.
Figueiredo nomeou Petrônio Portella como novo ministro da Justiça.
“Portella, em certa medida, tentou abrandar determinadas normas da censura, modificando parte da legislação e criando o Conselho Superior de Censura (CSC)”, diz o historiador Thiago de Sales Silva, da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O CSC servia para rever, como recurso, as decisões de censura. Mas Portella morreu no começo de 1980. Seu substituto, Ibrahim Abi-Ackel, minou as expectativas de mudanças para a nova década.
Foi um período de certo recrudescimento em uma época de abertura.
“A repressão aos inimigos já não tinha a força dos anos de vigência do AI-5 [1968-78]”, explica Sales Silva, cujo doutorado tratou da censura naquela época.
O AI-5 endureceu o regime ao autorizar uma série de medidas de exceção, como o fechamento do Congresso, a cassação de mandatos parlamentares, intervenções nos Estados, prisões até então consideradas ilegais e suspensão dos direitos políticos de cidadãos sem justificativa.
Em 1981, para comandar a DCDP, Abi-Ackel nomeou Solange Hernandes, uma funcionária do quadro de técnicos da sucursal paulista.
Ela substituiria José Vieira Madeira, visto como condescendente com a classe artística. Solange, por outro lado, era uma burocrata de mão cheia.
O ministro a escolheu porque “procurava alguém que trabalhasse pela manutenção dos valores ético-morais e controle das mensagens políticas, conhecesse a estrutura censória com profundidade, cumprisse a legislação vigente com rigor, não sofresse pressão da opinião pública, do meio artístico e dos órgãos de imprensa e se caracterizasse pela discrição no serviço público”, descreveu, em sua tese de doutorado na UFRJ, a historiadora Miliandre Garcia, professora da Universidade Estadual do Paraná (Unespar) e autora de diversos livros sobre censura nas artes.
Sales Silva explica que Solange não ficou notória, no meio cultural, por ser uma profissional de “perfil técnico”, como diz o jargão da moda no meio político.
“A fama se deve, em grande medida, aos fortes embates travados entre ela e artistas, diretores e empresas de comunicação, a partir das decisões da DCDP.”
Ela era a voz da censura. Era seu nome que aparecia nos certificados exibidos antes do início de programas na televisão.
Mais que isso: Solange era também uma representante da parcela da sociedade que estava confortável com o conservadorismo de então.
Em 1985, pouco após deixar o cargo, ela foi uma das convidadas do programa de Hebe Camargo, na TV Bandeirantes.
No livro Contra a Moral e os Bons Costumes (Companhia das Letras, 2021), o professor de direito e ativista dos direitos humanos Renan Quinalha conta que o episódio foi um exemplo de grande repercussão da tensão entre abertura e censura que havia então.
Além de Solange, entre os convidados estavam a jornalista Marília Gabriela, ex-apresentadora do TV Mulher, e a pioneira do ativismo lésbico Rosely Roth.
A gestão de Solange, a ‘dona de censura’
Para Lorrane Rodrigues, coordenadora da área de memória, verdade e justiça do Instituto Vladimir Herzog (IVH), dois fatores revelam o impacto do trabalho de Solange na indústria cultural.
Um deles é o perfil que ela criou para a DCDP: intervencionista, com “critérios autoritários e justificados na manutenção de uma certa moral e bons costumes para a população”, diz.
O outro foi a própria quantidade de obras atingidas. A historiadora Beatriz Kushnir, em sua tese de doutorado na Unicamp, estimou que Solange censurou, total ou parcialmente, 2.517 letras de música, 173 filmes, 42 peças de teatro e 87 capítulos de novelas.
Isso dá uma média de 2,8 obras reprovadas a cada dia de trabalho nos pouco mais de três anos em que ela comandou a DCDP.
Em 1981, por exemplo, um relatório de atividades citado no livro Os Anos de Chumbo (Planeta, 2020), do jornalista Luiz Octavio de Lima, mostra as dimensões da DCDP.
Eram 279 funcionários (87 em Brasília, e o resto espalhado pelo país), que só naquele ano analisaram 56.877 letras, vetando 1.168.
“Solange, no entanto, achava pouco. Reclamava da dotação orçamentária e da carência de pessoal”, escreveu o autor.
“Até o fim do período militar, exigia máximo rigor dos subordinados na análise de letras musicais e de todo tipo de produto cultural.”
Chamada de “dona da censura” e comparada à então primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher (o grande símbolo oitentista da linha-dura na política mundial), Solange adotou uma postura que ia, de acordo com Garcia, na contramão do CSC.
“Recomendava atenção redobrada na análise dos censores de letras musicais e peças de teatro, sobretudo em dois itens”, explica a historiadora.
“Um sobre a capacidade da obra de provocar incitamento contra o regime e outro sobre a possibilidade do tema de ferir a dignidade e interesse nacionais” – uma análise, portanto, interpretativa, baseada na maneira dos censores de enxergar o mundo.
Solange dizia sempre estar apenas cumprindo ordens superiores. Fazia isso de maneira padronizada, seguindo seu rígido protocolo.
Para textos e montagens teatrais, por exemplo, apontava aos censores, por meio de ofícios, uma série de diretrizes.
Em um desses documentos, Solange ordenava “cortar, no exame do texto, quaisquer ofensas ou agressões pessoais, expressas clara ou veladamente, dirigidas aos ocupantes de cargos públicos”.
Ou “observar, rigorosamente, a adequação da obra a sua classificação etária, p. ex., nas peças classificadas para 14 anos devem ser cortados os palavrões”.
Ela também exigia relatórios mensais dos censores. Isso afunilava o entendimento do que devia ou não ser censurado, explica Rodrigues.
Além do trabalho à frente da DCDP, Solange comandava o Serviço de Informação ao Gabinete (Sigab), um órgão secreto, que não havia sido formalmente instituído.
O foco do Sigab era a imprensa: todos os dias, um funcionário telefonava às redações de jornais e avisava o que podia ou não ser publicado.
Solange deixou a DCDP no fim do governo Figueiredo, o último da ditadura, em março de 1985.
O Jornal da Tarde, ao noticiar que “Dona Solange entrega a tesoura e sai pelos fundos”, descreveu a gestão da censora como “excessivamente rígida”, o que obrigava muitas vezes a intermediação do Ministério da Justiça para liberar espetáculos.
Ela se justificava dizendo que agia em nome da segurança nacional ou da saúde mental do povo.
Era como uma missão: Solange queria impedir que essas obras “se transformassem em instrumento de agressão ao público e às autoridades” e acreditava estar cumprindo “o dever de poupar o outro da tentação de ver”, escreveu Kushnir.
Se o meio artístico celebrou, representantes de algumas organizações da sociedade, como Escola de Pais do Brasil e Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, lamentaram a saída da censora. Diziam que ela só cumpria seu trabalho.
O trabalho dos censores
Rodrigues, do IVH, explica que todos os censores eram servidores públicos com status e remuneração de policiais federais. Em geral, chegavam ao cargo por indicação.
Eram profissionais com curso superior, normalmente jornalistas, advogados ou cientistas sociais. Recebiam formação e especialização da Academia de Polícia Federal (ANP) em cursos ministrados, muitas vezes, por professores universitários do campo das artes.
“Havia leis, decretos e portarias internas orientando o trabalho dos censores”, diz Sales Silva.
“Os censores passavam por cursos e palestras, com objetivo de aperfeiçoar a avaliação de filmes, músicas, peças teatrais e programas televisivos.”
O processo era lento. “A depender do tema e do autor, textos jornalísticos, livros, roteiros e peças teatrais passavam até mesmo por três censores”, diz Rodrigues.
Os artistas, por sua vez, tinham que se adaptar ou mudar a estratégia de enfrentamento. Era algo que podia ser “excitante”, como descreveu Rita Lee em sua autobiografia.
Aqueles mais visados pela censura podiam usar pseudônimos, na esperança de passar batido. Chico Buarque driblou o crivo assinando algumas músicas como Julinho da Adelaide.
Era possível também recorrer ao CSC para argumentar contra as proibições. Rita Lee conseguiu assim reverter o veto a Cor-de-Rosa Choque. Chacrinha foi outro que apelou ao órgão.
Em 1980, durante a exibição de seu Buzina do Chacrinha, na Bandeirantes, ele se irritou com a quantidade de estranhos que apareceram no estúdio. Assim que o programa acabou, expulsou todos.
Foi preso por desacato à autoridade. Entre os “estranhos”, estava Solange.
Mais tarde, o apresentador se justificou dizendo que a confusão começou porque a mulher não havia se identificado como censora.
Segundo uma reportagem do Jornal do Brasil sobre o incidente, Solange tentava evitar qualquer contato com o público e a imprensa. Ela estava no estúdio com o intuito, apenas, de averiguar as roupas das chacretes.
Meses depois, Chacrinha escreveu uma carta ao CSC reclamando das “arbitrariedades” da censura, insinuando que havia uma implicância com ele desde que “um censor paulista ligou para os estúdios reclamando das roupas das chacretes e de algumas tomadas de detalhes anatômicos”.
O apelo fez com que a censura “sossegasse” com ele, como contou ao Jornal do Brasil. Mas Solange permanecia a postos.
“O programa entra no ar e da cabine especial, em que a censora assiste ao programa e que tem ligação direta com o diretor da TV, (o responsável pela seleção de imagens), a advertência: ‘Olha as tomadas das chacretes!'”, dizia a reportagem.
Em 1982, um novo e famoso embate de Solange. Ela vetou o filme Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias. O longa, que retratava abertamente a repressão da ditadura, foi visto pela dama da tesoura como um panfleto contra o regime.
Solange perdeu a disputa, e o filme acabou liberado, sem cortes. Mas não sem baixas.
A Embrafilme, que financiou a produção, teve seu presidente demitido: Celso Amorim, futuro ministro nos governos Itamar Franco, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
Se a DCDP, no começo dos anos 1980, tinha a cara de Solange, o CSC refletia mais o clima da época, em um embate constante de vozes contra e a favor da democratização.
Os censores contavam, inclusive, com o apoio de parte da população.
“Recebiam cartas e pedidos solicitando cortes e proibição de cenas, filmes e músicas”, explica Rodrigues.
“Inclusive grupos conservadores organizados, como as Senhoras de Santana, em São Paulo, enviavam abaixo-assinados indicando nomes para serem censurados.”
Solange, e os outros censores, após a ditadura
Em 1986, já durante o governo de José Sarney, o primeiro da Nova República, surgiu a Associação Nacional dos Censores Federais (Anacen).
Seu objetivo era que, com o fim da ditadura militar, os profissionais da censura não perdessem seus privilégios de policiais federais. Conseguiram, em certa medida.
Mais uma vez, a parcela da população satisfeita com os censores se manifestou a seu favor. No fim dos anos 1980, o Ministério da Justiça iniciou o desmonte da máquina estatal da censura.
“Diversas cidades realizaram abaixo-assinados contra uma suposta ‘libertinagem’ que assolaria o país”, diz Rodrigues.
O cargo de censor foi extinto oficialmente em 1989. Ao longo dos anos 1990, havia certa pressão política para que esses profissionais fossem submetidos a novos concursos públicos para seguirem em outras carreiras.
Mas, em 1998, uma lei promulgada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso enquadrou esses cerca de 200 profissionais nos cargos de perito criminal federal ou delegado da Polícia Federal. Sem necessidade de concurso. Bastava, no caso dos delegados, ser formado em Direito.
Foi o caso de Solange. Advogada de formação, ela se aposentou como delegada.
Em 2010, o jornal Correio Braziliense descobriu que a ex-censora, aos 72 anos, levava uma vida pacata em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, onde deixou de lado o “Hernandes” e passou a usar somente seus outros sobrenomes.
“Eu não sou feroz, eu não mordo”, disse ao retornar os contatos do repórter do Correio, a quem pediu para não ser importunada.
Solange Maria Chaves Teixeira queria distância de jornalistas e também dos muitos pesquisadores acadêmicos que estudam o regime militar.
Sua morte, em 2013, foi pouco noticiada. Mas a mulher discreta que marcou a história nacional por censurar milhares de obras não foi esquecida. Pelo menos não no imaginário coletivo.
Ela vive em um dos gestos mais emblemáticos de um dos personagens mais lendários da teledramaturgia brasileira.
Também em 2013, em entrevista ao portal UOL, Aguinaldo Silva, cocriador de Roque Santeiro, exibida pela Globo entre 1985 e 1986, revelou a inspiração para o hábito de Sinhozinho Malta (Lima Duarte) de chacoalhar as pulseiras do braço.
“A doutora Solange – eles todos adoravam ser chamados de ‘doutores’ – nos recebeu em uma mesa grande. Ela obviamente se sentava à cabeceira, e usava muitas pulseiras. Toda vez que perguntávamos o porquê de um corte, ela começava a responder e balançava as pulseiras, de uma maneira a distrair nossa atenção…”
Para uma mulher discreta, que agia nas sombras da indústria cultural e que vivia de proibir, cortar, apagar e reprimir, ter sido eternizada em um tique espalhafatoso, exibido no horário nobre da TV aberta, em uma das novelas mais populares de todos os tempos, é um tanto irônico.
Como cantou Leo Jayme em Solange: “E eu já não posso nem pensar/Que um dia ainda vou me vingar”.