Tragédia no RS: Sem licitação, Porto Alegre contrata consultoria que gentrificou Nova Orleans no pós-Katrina

Alvarez & Marsal vai atuar gratuitamente por 60 dias, mas o plano de abordagem que desenvolveu é de cem dias – mais do que o período “grátis”.

ClimaInfo

Diante da dimensão da catástrofe climática que atinge o Rio Grande do Sul – apontada por especialistas como a maior do Brasil em extensão territorial (447 das 497 cidades gaúchas foram atingidas) e número de pessoas afetadas (mais de 2 milhões) –, é inevitável sua comparação com outro evento extremo: o furacão Katrina, que em 2005 destruiu Nova Orleans, nos Estados Unidos. A comparação vale também pelos estragos econômicos, mostra a BBC.

Outro paralelo também aproxima as duas catástrofes. A consultoria Alvarez & Marsal “pousou” em Porto Alegre por decisão do prefeito, Sebastião Melo (MDB), pré-candidato à reeleição, para elaborar um plano de reconstrução da infraestrutura. A consultoria ficou com a fama desabonadora de ter promovido a gentrificação de Nova Orleans após o Katrina.

A A&M consultoria firmou um acordo com a capital gaúcha que prestará serviços pro bono, ou seja, voluntários por 30 dias, informou à Folha. Mas o tempo pode ser diferente, e o barato pode sair caro. A Matinal mostra que, em coletiva na 4ª feira (15/5), o prefeito disse que os serviços seriam gratuitos por 60 dias. Mas sinalizou que a atuação da consultoria vai durar mais tempo do que o pro bono.

A Matinal teve acesso a um resumo do plano de abordagem que a Alvarez & Marsal já desenvolveu para Porto Alegre, e ele considera cem dias de execução – mais tempo do que o período grátis indicado pelo prefeito.

No Brasil, a A&M é conhecida por empregar o ex-juiz Sergio Moro, depois de lucrar R$ 65 milhões como administradora judicial de empresas-alvo da Lava Jato. Em Nova Orleans, deixou como legado a demissão de mais de 7 mil professores de escolas públicas, a privatização da educação e saúde, o acirramento da violência policial e miliciana e, por fim, o branqueamento da população da cidade, lembra Marina Amaral na Agência Pública.

A pretexto de retirar os desalojados, que foram impedidos de voltar, foi feita uma limpeza étnica na cidade. E a população negra, que correspondia a dois terços da população total da cidade, caiu para menos da metade cinco anos depois da inundação. Boa parte dela está concentrada na periferia depois de perder suas casas em bairros gentrificados na reconstrução. Até hoje a população da cidade não se recuperou – há 100 mil habitantes a menos do que havia em 2005.

Enquanto as partes turísticas e os bairros mais afluentes foram reconstruídos, áreas mais pobres e de maioria negra, como Lower Ninth Ward, à beira do Mississipi e uma das mais devastadas, até hoje não se recuperaram completamente, destaca a BBC. “Para quem está de fora, a cidade parece recuperada”, afirma Jeffrey Schlegelmilch, diretor do Centro Nacional de Preparação para Desastres da Universidade Columbia, em Nova York. “Mas há muitas pessoas que nunca se recuperaram.”

Se a ideia é “fazer diferente” na recuperação de Porto Alegre, promovendo uma adaptação com Justiça Climática, a capital gaúcha começou muito mal. O professor de administração pública da Escola de Administração da UFRGS, Diogo Demarco, estranhou o rápido acerto do município com a A&M. “Há uma inteligência aqui do estado, particularmente em Porto Alegre, que poderia ser mobilizada para esse esforço de apoio e reconstrução desta tragédia”, sustentou.

O trabalho de recuperação do RS terá de considerar a nova realidade de eventos climáticos extremos mais recorrentes. Engenheiros, urbanistas e o próprio governo avaliam que não basta reerguer casas, ruas e pontes como eram antes das enchentes, explica o Valor.

Em tempo 1: O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), disse ao UOL que a tragédia causada pelas chuvas foi como uma “bomba que explodiu de uma hora para outra”. Mas não é bem assim. Um dos aspectos apontados por especialistas é o possível impacto da redução da vegetação nativa no estado. Dados produzidos pelo MapBiomas mostram que, entre 1985 e 2022, o estado perdeu aproximadamente 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, houve um aumento vertiginoso de lavouras de soja, silvicultura e da área urbanizada, relata a BBC, em matéria reproduzida por g1 e Folha. Outro alerta foram as chuvas extremas que atingiram o RS em setembro e novembro do ano passado, lembra a professora de Direito Constitucional, Adriana Cecilio. “O governador Eduardo Leite tinha ciência dos prognósticos. A calamidade que o estado enfrentou em 2023 deveria ter servido de alerta e ensejado uma série de medidas de proteção à população, bem como a criação de um plano estratégico eficiente para o enfrentamento de catástrofes climáticas. Nada foi feito”, afirmou em artigo no UOL.

Em tempo 2: Cidades da Argentina e do Uruguai próximas à fronteira com o RS também sofrem com chuvas extremas e inundações, destaca o UOL. No Uruguai, Paysandú, Durazno, Salto, Artigas, Rocha, Soriano, Cerro Largo, Treinta y Tres e Tacuarembó são as mais afetadas pela vazão do rio Uruguai, que nasce na Serra Geral, na divisa entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A cota do rio chegou a 8,86 metros, acima do nível de segurança (cerca de 6,50 metros). Já na Argentina, em áreas ribeirinhas como Entre Ríos e Corrientes, as autoridades calculam pelo menos 540 desalojados.

Combined Military Service Digital Photographic File

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