Pelas ruas (in)visíveis

Conheça os obstáculos para o acesso às políticas de saúde e educação da população em situação de rua e as novas propostas para esse grupo

Giulia Escuri – EPSJV/Fiocruz

Era noite do dia 19 de agosto de 2004 na Praça da Sé, em São Paulo, quando dez pessoas em situação de rua foram atacadas com pedaços de madeira e barras de ferro enquanto dormiam. Duas morreram na hora, quatro no hospital e outras quatro sobreviveram. Em 72 horas, o crime se repetiu. No dia 22, cinco pessoas foram agredidas da mesma forma e no mesmo local. Uma faleceu. Sete indivíduos foram denunciados, um segurança particular e dois policiais militares foram presos, mas soltos por falta de provas. O Massacre da Sé, como o evento ficou conhecido internacionalmente, completa 20 anos em 2024. “A rua não é lugar para viver e tampouco é lugar para morrer” é um dos principais gritos do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), criado após a chacina. O caso também motivou a instituição do 19 de agosto como Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua.

“Eu passei por muitas situações difíceis nas ruas. Eu falo assim: estar nas ruas é muita coragem, as pessoas pensam que é fácil, não é. É sobreviver, é sobreviver”, confidencia Rosilene do Nascimento, mestra em educação pela Universidade de Brasília (UnB) e professora na área de Educação Especial na Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF), que viveu em situação de rua dos 13 aos 14 anos, na capital federal. Assim como Rosilene esteve um dia, o Brasil tem hoje 227 mil pessoas em situação de rua. De 2013 a 2023, essa população aumentou em 935%, de acordo com pesquisa lançada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em março deste ano.

Antes dos anos 1990, a população em situação de rua não era pauta para políticas públicas. “Era um tema tocado por organizações da sociedade civil, especialmente por organizações religiosas. Quando o Estado entrava nesse tema, era em uma perspectiva criminalizante e policialesca”, relembra Laura Salatino, coordenadora pedagógica do grupo de pesquisa e extensão Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP), e do polo paulista do Colaboratório Nacional da População em Situação de Rua da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Foi na gestão da prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, de 1989 a 1993, que a questão foi inserida na agenda. O livro ‘População de Rua: Quem é, como vive, como é vista’ de Maria Antonieta Vieira em coautoria com Eneida Bezerra e Cleisa Rosa, é um marco na produção de dados sobre essa população. Foi a primeira pesquisa brasileira sobre o tema, elaborada de forma coletiva com a prefeitura e outras organizações. No entanto, foi nos anos 2000, a partir do trágico evento na Sé, que o debate ganhou mais força.

Um marco da mudança se deu em 2009, quando o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou o Decreto nº 7.053, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR) e criou um Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, além de outras medidas. “O Movimento Nacional da População em Situação de Rua é muito importante para a construção do decreto, que consolida esses movimentos, tanto de organização da sociedade civil, especialmente de pessoas em situação de rua, quanto de inserção do tema na agenda política aos poucos”, define Salatino.

Depois de 15 anos do lançamento do decreto que instituiu a PNPR, Nilson Lopes, integrante do MNPR, comemora: “É um momento histórico de conquista de direitos para a população de rua!”. Isso porque em julho de 2023, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), emitiu uma medida cautelar em resposta à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 976, que torna obrigatória a execução das diretrizes da PNPR. Para isso, o relator propôs um prazo de 120 dias para que o governo federal elabore um plano de ação e de monitoramento para sua efetiva implementação. A decisão foi motivada pelo agravamento das condições de vida provocado pela pandemia de covid-19. Entre 2019 e 2022, o número de pessoas que vivem nas ruas aumentou em 38% no Brasil, conforme o Ipea.

Diagnósticos e planejamentos

“Quantas pessoas têm em situação de rua? Quem são elas? De onde que elas vêm? Faltam dados completos para que recursos sejam destinados a programas. Esses dados ainda precisam ser produzidos, até então a gente vivia ou sobrevivia na invisibilidade”, analisa Lopes, referindo-se à falta de avanços da PNPR nos últimos anos. Historicamente existem desafios para se contabilizar a população de rua. A pesquisadora Janaína Gomes, doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), compreende que é necessária uma discussão metodológica para produzir informações sobre esse grupo. “Precisamos produzir esses dados e discutir qual vai ser a metodologia. A população em situação de rua é nômade, em um sentido amplo. Ela muda de lugar, de território”, diz. No entanto, além dessa condição, Gomes alerta que “apesar de ser uma questão científica, de método, é uma questão política, porque dependendo de como se constrói a metodologia, a quantidade pode aumentar ou diminuir, e isso interessa a determinados agentes”.

A medida cautelar emitida pelo STF determina que estados, Distrito Federal e municípios promovam ações concretas de melhoria para essa população. Entre as principais estão: a elaboração de um diagnóstico da População em Situação de Rua (PSR), com identificação do perfil, da procedência e de suas principais necessidades; a criação de instrumentos de diagnóstico permanentes da PSR; e o desenvolvimento de mecanismos para mapeá-la no censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Dentro do planejamento dessas ações já foram publicados um diagnóstico do panorama atual pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e o Plano de Ação e Monitoramento para Efetivação da Política Nacional para a População em Situação de Rua, também de autoria do MDHC, conhecido como Plano Nacional Ruas Visíveis. Nilson Lopes considera que apesar das diretrizes, “o Plano precisa ser absorvido e adequado a cada realidade pelos estados e municípios, tanto nos números quanto nas necessidades e nas emergências”.

As recentes pesquisas do MDHC, em agosto de 2023, e do Ipea, em março de 2024, utilizam dados do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) como método de contagem. Esse instrumento identifica e caracteriza indivíduos e famílias de baixa renda, permitindo acesso a alguns programas sociais, como, por exemplo, o Bolsa Família. Pessoas em situação de rua podem se cadastrar através do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop); Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). O levantamento do Ipea indica que 83% da PSR recebe benefícios do Programa Bolsa Família, um caminho que Salatino considera mais desejável do que a intensificação de políticas específicas, que “muitas vezes, impedem que as pessoas acessem políticas que são universais”. Para a pesquisadora, a saída estaria nessa flexibilização e adaptação das políticas, para que o acesso seja garantido por todos.

Um dos obstáculos para essa população acessar algumas políticas públicas é a falta de documentos, como o comprovante de residência. Apesar disso, em alguns casos, pode-se utilizar o endereço da unidade que acessou, como o de um Centro Pop ou CRAS, para realizar o CadÚnico, por exemplo.

A pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e militante do Jornal Boca de Rua, veículo produzido e vendido por pessoas com trajetória de rua, Caroline Sarmento, conta que as remoções protagonizam a retirada de documentos e pertences dessa população. “Eles [guarda municipal e polícia militar] tiram os pertences das pessoas e colocam no lixo, nesse processo, retiram as coisas, remédios, documentos, roupa, comida, o que a pessoa tiver”, denuncia. Também em julho de 2023, o STF formou maioria para confirmar a decisão do ministro Alexandre de Moraes, que proibiu, em liminar, que os municípios façam o recolhimento forçado de pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua para zeladorias urbanas e abrigos.

O registro no CadÚnico pode ser feito através do preenchimento do formulário principal, e, em seguida, uma enquete específica, o Formulário PopRua, que conta com mais de 30 questões, de natureza autodeclaratória. Foi com base nesse conjunto de dados que o Ipea e o MDHC fizeram suas análises. Mas a pesquisa do Ipea identifica que pode existir um viés nos dados, uma vez que “nem todas as pessoas em situação de rua se cadastram como tal” e que “situações de rua episódicas e de curta duração, por sua vez, podem não ser devidamente registradas antes de seu encerramento”.

Apesar disso, esses órgãos apontam essa metodologia como inovadora, com um viés menor do que o observado em outros estudos e superior às pesquisas de campo, pois “a abordagem para a inscrição no CadÚnico trabalha com um grande incentivo: o acesso a programas sociais”, de acordo com o texto do Ipea. No entanto, a utilização do método vem sendo debatida por pesquisadores. “O CadÚnico é muito desatualizado, especialmente depois do governo [Jair] Bolsonaro. Tem uma série de outras distorções. Por exemplo, em São Paulo, em uma época, tivemos uma política de locação social para pessoas em situação de rua. Para entrar nessa política, precisava ter uma renda mínima de R$ 800. Por isso, uma série de pessoas mudou a autodeclaração da renda no Cadastro Único, para poder ser elegível para a política”, aponta Laura Salatino.

Políticas de Saúde: Consultório na Rua

Em 2011, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 940, que garantiu o acesso da população em situação de rua aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) mesmo sem o comprovante de residência. No entanto, ainda existia dificuldade em acessar as Unidades Básicas de Saúde (UBS) causada pelo estigma relacionado a essas pessoas. “O policial que aborda mais pessoas negras do que brancas não o faz pensando em leis, mas em dimensões informais, que operam na ação dele. E isso também acontece com os burocratas. Existe o contexto de implementação [de uma política], mas existem percepções individuais que vão orientar as decisões que os profissionais tomam sobre quem vai acessar ou não”, explica Salatino, destacando que a indisponibilidade de alguns profissionais e a sobrecarga de trabalho nas UBS vão atravessar as decisões sobre o atendimento dessa população.

É nesse contexto que o Consultório na Rua é criado. Instituído pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) em 2011, essa estratégia articula o acesso da população em situação de rua à Rede de Atenção à Saúde (RAS), por meio da oferta de ações da atenção básica nos territórios, de forma itinerante e compartilhada com as equipes da Atenção Primaria à Saúde (APS), e quando necessário, com os serviços e equipes de todos os níveis de atenção à saúde, e em constante parceria com o Sistema Único de Assistência Social (Suas), outras instituições públicas e a sociedade civil.  “O Consultório na Rua é importante, porque seus profissionais são mais sensíveis à questão. Ou eles já atuaram com esse público, ou serão preparados para trabalhar nessa política, com uma sensibilização específica”, aponta Salatino.

O Consultório é pensado para ser um serviço de atenção básica itinerante e funciona com a busca ativa dessas pessoas e o atendimento delas in loco.  A portaria n°122, de 25 de janeiro de 2011, define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Entre elas, o documento institui a preferência pela contratação de agentes sociais com experiência prévia em atenção às pessoas em situação e/ou trajetória de vida das ruas.

As equipes de Consultório na Rua (eCR), que integram também a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), incluem a busca ativa e o cuidado compartilhado às necessidades relacionadas com a saúde mental, o consumo de álcool e outras drogas, em consonância com os fundamentos e as diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (Pnab). O programa é a principal forma de acesso da população em situação de rua aos cuidados com a saúde.

Em meio às celebrações dos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o governo federal lançou o Plano Nacional Ruas Visíveis, que tem o investimento inicial de R$ 982 milhões e busca efetivar a PNPR. Na área da saúde, os repasses iniciais são de R$ 304,1 milhões. As principais medidas propostas são: o investimento na formação de 5 mil profissionais para atuarem no cuidado às pessoas em situação de rua na APS, em diferentes municípios brasileiros; a ampliação das Unidades de Acolhimento para pessoas com necessidades decorrentes do uso de Crack, Álcool e Outras Drogas; o Programa Mais Médicos para as equipes do Consultório na Rua e a ampliação de 660 equipes do Consultório na Rua com agentes sociais com trajetória de rua.

Apesar da portaria e do novo Plano, o perfil dos agentes tem mudado. “Até pouco tempo atrás, todos os agentes de abordagem tinham um histórico de situação de rua, em São Paulo, pelo menos, isso era uma prática corrente. Recentemente, entre três ou quatro anos, isso foi mudando. Hoje em dia, nem todas as equipes têm um agente de abordagem social com trajetória de rua”, relata Salatino. Portanto, a pesquisadora considera importante que exista uma previsão normativa. “A maior parte dos Consultórios não são implementados por provisão direta, são convênios com Organizações Sociais de Saúde que vão selecionar os profissionais, desde a enfermeira ao médico, mas também os agentes de abordagem. Se não tiver uma previsão normativa, a tendência é que não procurem contratar pessoas com trajetória de rua”.

O Consultório e a saúde mental

“Aos 18 anos, eu já era alcoólatra. Até que, aos 22 anos, fui para as ruas. Usei crack durante dez anos”, recorda Nilson Lopes, militante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua. “Para sair desse atoleiro, eu precisei me entregar. Querer que acontecesse e procurar os serviços. Fundamentalmente, o mais importante foi a escuta qualificada que os profissionais fizeram, isso norteou as ações a partir das minhas necessidades”, completa, ressaltando como o acesso às políticas públicas de Saúde e Educação foram importantes na sua trajetória.

O Consultório está inserido em uma política de redução de danos, explica a médica de família da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Thaís Machado, que trabalhou no Consultório na Rua de 2015 a 2017 em Campinas. “Essa política nasce para o combate de HIV e AIDS, pois, a partir desse vírus, encaramos o uso de drogas pelo viés da saúde. Antes, o uso de drogas tinha políticas muito centralizadas na segurança pública, às vezes uma abordagem religiosa, mas pouca na política da saúde, em termos de política pública”, recorda a profissional.

O alcoolismo e o uso de drogas são a terceira causa que leva as pessoas à situação de rua: apenas 28% relataram esse motivo na pesquisa do MDHC. Apesar disso, é comum que se suponha uma associação entre essa população e o vício. “Precisamos entender que uma parte da população vai para a rua por uso de drogas, mas não é a maior parte, muitas vezes alguns iniciam o uso de substância estando na rua”, esclarece Machado.

Como desdobramento da luta antimanicomial brasileira foram criados os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD). “Eu frequentei por sete anos um CAPS AD para tratamento de alcoolismo e drogadição, fazendo psicoterapia, consultando com psiquiatra, tomando medicação, antidepressivo”, relembra Lopes. Além disso, ele também fazia consultas com um médico clínico e participava de grupos terapêuticos e de oficinas de artesanato.

O Consultório na Rua nasce como uma política específica para a população de rua. “Essas pessoas tinham muitas demandas clínicas, tinham tuberculose, tinham problemas odontológicos, infecções de pele, unha encravada, enfim, demandas que não eram restritas à saúde mental. Eles são seres humanos completos, com demandas diversas”, explica Machado. Os atendimentos mais comuns oferecidos pelo Consultório na Rua, segundo Machado, são: tratamento para infecções de pele, odontológicos, saúde mental, contracepção, pré-natal e cuidado com a tuberculose. Além disso, a médica avalia que apesar de o Consultório fazer atendimentos em saúde mental e inserir essas pessoas na RAPS, “a grande inovação tecnológica de processo de trabalho e de gestão é o tratamento clínico, justamente, ver para muito além da dependência química”, avalia a médica.

Principais agravos de saúde

Conforme o Boletim Epidemiológico sobre a Tuberculose (TB) de 2024, lançado pelo Ministério da Saúde (MS), o Brasil integra a lista dos 30 países com maior número de quadros da doença e casos de coinfecção TB-HIV. A tuberculose é a segunda maior causa de mortalidade por doença infecciosa no mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). A infecção é associada às desigualdades sociais e às precárias condições de vida. Através desse boletim, o MS considera que a situação de rua é um risco para a tuberculose dadas as más condições de vida, a desnutrição, a dificuldade de acesso aos serviços públicos, o abuso de álcool e outras drogas e o comprometimento imunológico.

Conforme o MS, em 2023, 3,4% das pessoas nessa situação adoeceram por tuberculose. Com base em dados do censo da cidade São Paulo de 2021, o Ministério da Saúde aponta que pessoas em situação de rua apresentam um risco de adoecer por tuberculose 54 vezes maior do que a população em geral. O boletim epidemiológico também apurou que existe, nesse grupo, uma baixa proporção de cura, de 27,6% em 2022, e uma grande interrupção do tratamento, 36,2% no mesmo ano.

Dadas as condições de vulnerabilidade em que vivem, existe um adoecimento potencial. Thaís Machado conta que “os dados sobre a tuberculose são inequívocos, a população de rua é a que mais tem tuberculose, que é uma doença associada a desenvolvimento econômico e humano, à pobreza e à desnutrição”. Além disso, ela também aponta que realizar o tratamento da doença é difícil, pelo seu tempo de duração. A médica ressalta que, enquanto trabalhava no Consultório na Rua, também realizava a busca ativa de pacientes que abandonavam o tratamento através das redes de assistência social.

Além disso, com base em suas consultas realizadas para esse público, Machado relata que as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) também têm alta prevalência. “Eu diria que um pouco mais alta do que da população geral. A gente tem uma ideia de que o morador de rua não trabalha, mas ele trabalha e pode ser que parte desse trabalho tenha como fonte de renda o trabalho sexual”, diz. A única grande pesquisa sobre essa população em nível nacional foi publicada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em 2009 e apurou que, naquela época, 5,1% viviam com o HIV ou a Aids.

A pesquisa coordenada por Maria Helena Antuniassi, realizada pelo Núcleo de Apoio à Pesquisa Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU), da Universidade de São Paulo (USP), constata que as mulheres em situação de rua conseguem mais facilmente se incorporar em casas de família ou recorrer à prostituição. “Mulheres com menos de 50 anos, quando se encontram nessa situação, são facilmente incorporadas à prostituição, não recorrendo, portanto, aos abrigos”, afirma o texto desse estudo, produzido sob demanda para a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (SMADS).

Os dados do MDHC lançados em 2023 apontam que, apesar das mulheres representarem apenas 13% do total de pessoas vivendo nas ruas, elas são vítimas de 40% dos casos de violência notificados. As mulheres transexuais representam o maior grupo. Em relação ao tipo de violência: 88% das notificações envolvem a violência física; a psicológica é a segunda mais frequente, 14%; e a terceira, é a violência sexual com 3%. Sarmento conta que, em uma roda de conversa para definir a pauta de uma das edições do jornal Boca de Rua, todas as sete mulheres presentes denunciaram que tinham sido estupradas em algum momento da vida. “A violência sexual pode vir da polícia, das pessoas que param de carro, dos companheiros ou de outros colegas em situação de rua”, relata a pesquisadora. “Nesse contexto, o uso de preservativo não apresenta a mesma dinâmica do que em relações consentidas”, completa.

Mulheres nas ruas

O Consultório na Rua também realiza o acompanhamento de mulheres grávidas. As equipes executam as consultas de pré-natal e fazem a busca ativa das gestantes no território em que atuam. “Sempre estávamos em parceria, principalmente, em casos de alto risco, com a atenção primária à saúde. Em Campinas, enfatizávamos a busca ativa para garantir o tratamento de sífilis, como modo de evitar a sífilis congênita”, relembra Machado, sobre sua atuação no Consultório. Como as ISTs podem afetar recém-nascidos, o pré-natal é uma importante forma de tratar a infecção e evitar sua transmissão.

A pesquisa recente do Ipea revela que existe um viés nos dados do levantamento sobre essa população porque “mulheres com filhos menores de idade, por exemplo, tendem a evitar oficializar a sua situação de rua por temer perder a guarda da prole”. O documento também ressalta que esse medo é ancorado na realidade através de diversos relatos disseminados entre esse público.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído através da Lei nº 8.069 em 1990, determina que a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar. Além disso, mesmo quando a criança precisa ir para um acolhimento institucional, o ECA preconiza que seja feita a colocação na sua família de origem, ou seja, o afastamento da família deve ser uma medida excepcional. No entanto, não é o que sempre acontece.

A pesquisadora da UFRGS Janaína Gomes relata que “a própria falência do sistema, a falta de profissionais, de vagas em abrigos, de assistentes sociais e psicólogos dificultam o trabalho de vinculação entre a mãe e a criança, o que pode gerar a destituição do poder familiar”. Além disso, Gomes ressalta que os profissionais podem fazer uma articulação entre os serviços, “podem acionar o serviço social, podem buscar moradia para essa mulher, buscar tratamento para ela, no caso de drogadição”, explica.

Entretanto, existem profissionais preocupados com esse contexto de separação entre as mães e as crianças, especialmente, no período pós-parto. Sarmento relata que é “acendido um alerta” entre essa rede de cuidadores quando uma mulher engravida em situação de rua. “Existe a busca ativa do Consultório na Rua, além disso, existe a relação que elas têm com esses profissionais. O agente marca e leva à consulta no posto, quando necessário, ou leva até o Consultório. Eles já conhecem essa mulher, quando ela engravida, já é conhecida”, retrata a pesquisadora.  Por outro lado, Sarmento conclui que as equipes de saúde, principalmente as que não convivem com essas mulheres, têm um foco maior para a criança “que é colocada em oposição à mulher”.

A pesquisadora e militante conta a história de uma colega do Boca de Rua, que acompanhou de perto e integrou sua pesquisa de mestrado. Adriana, nome fictício, é uma mulher negra, quase sem dentes na boca, nascida na periferia de Porto Alegre, que fez uso de crack e álcool durante o período que esteve em situação de rua. Quando descobriu a gravidez, conseguiu um local para morar e fez todos os exames do pré-natal “muito melhor do que muita mulher que nunca teve trajetória de rua”, como confidenciou uma profissional para Sarmento. No entanto, ao dar à luz, trabalhadores do hospital acionaram a Vara da Infância, que julgou se ela poderia, ou não, ter a guarda do próprio filho. Ao perguntar à assistente social o motivo do acionamento da justiça, Sarmento conta que, apesar da existência de um exame que comprovava a suspensão do uso de drogas por Adriana, a explicação foi a seguinte: “eu não acredito que ela parou de usar crack esse tempo todo”. “O ECA diz que a perda do poder familiar e o desligamento da criança à sua família só deve ser feito em último caso. Existe um olhar moralizante do Estado sobre essas mulheres. Na maioria das vezes, o que observamos é a criminalização da pobreza”, destaca Sarmento.

Para proporcionar o exercício da maternidade às mulheres que quiserem manter a guarda dos filhos, é importante a atuação de equipes multiprofissionais e a possibilidade de essa população aderir às políticas públicas. A médica Thaís Machado ressalta que “se essa mulher quiser ter a guarda do bebê, é muito importante que ela tenha uma casa, que tenha um abrigo”. E completa: “Ninguém defende que bebês fiquem em situação de rua, mas toleramos que algumas pessoas fiquem”.

Crianças e adolescentes

Entre as invisibilidades que são produzidas nas ruas, as crianças e adolescentes compõem um quadro específico. De acordo com a pesquisa do Ipea de 2024, eles somam apenas 2,5% dessa população: 1,74% de 0 a 9 anos e 1,61% de dez a 19 anos, conforme o levantamento do MDHC de 2023. O Ipea considera que esses números podem não representar a realidade, dado que podem não ser informados ao poder público, principalmente, às equipes de assistência social, por medo de serem encaminhados para unidades de acolhimento institucional.

O ECA reconhece que crianças e adolescentes são “sujeitos de direitos”, devendo ser prioridade absoluta do Estado. Entre os avanços em relação ao conceito de infância, a lei revoga o Código de Menores que vigorava desde 1979 e tinha uma perspectiva de confinamento às crianças em “situação irregular”, ou seja, àquelas que eram consideradas abandonadas, infratoras ou em situação de rua. No entanto, o temor pela institucionalização ainda é presente entre elas. Nesse contexto, como esses jovens em situação ou com trajetória de rua conseguem acessar direitos fundamentais, como a educação?

A professora Rosilene do Nascimento, que esteve em situação de rua até os 14 anos, relembra que voltou à escola aos 15, quando foi adotada. No entanto, frequentar as aulas era uma tarefa difícil. “Eu não aprendia, o professor não olhava nos meus olhos, para minha história, para mim. Hoje, só sou mestra porque tiveram pessoas, educadores e movimentos comigo”, conta. E completa: “É preciso um olhar humanizado. É todo um processo para criar um laço e acolher, de fato, uma pessoa em situação de rua”. Ela lembra que “não tinha onde tomar banho, não tinha onde comer, andava com umas sacolas nas mãos, com meus pertences. Até entender que precisava voltar à escola foi um processo muito longo”.

No Distrito Federal (DF), a Escola Meninos e Meninas do Parque tem como objetivo garantir a escolarização de crianças, adolescentes e adultos em situação de rua ou em instituições de acolhimento. A unidade funciona desde 1995 e foi pensada para acolher jovens que viviam embaixo da marquise da Rodoviária do Plano Piloto. Atualmente, a Escola atende crianças e adolescentes no turno da manhã e, na tarde, acolhe jovens e adultos na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Além de promover a educação formal, a instituição auxilia em outros procedimentos, como encaminhamento médico e odontológico e ajuda na retirada de documentações. “Lá, eles têm o kit de banho, com o nome de cada um deles. Eles chegam e a gente conversa. As pessoas têm lugar até para guardar o carrinho, aquele de supermercado. A Escola trabalha de forma diferenciada”, detalha Nascimento. Os estudantes contam ainda com almoço, lanche e um espaço para lavar suas roupas.

Também em 1995, a milhares de quilômetros de Brasília, foi fundada a Escola Municipal de Ensino Fundamental de Porto Alegre (EPA). O principal objetivo é a escolarização de jovens e adultos em situação de rua e vulnerabilidade. O site da Secretaria Municipal de Educação calcula que existam hoje mais de 100 alunos matriculados na modalidade EJA da escola.

A pesquisadora da UFRGS, Caroline Sarmento, comenta que na EPA os alunos também podem tomar banho e contam com três refeições diárias. “A EPA conta com um projeto pedagógico freiriano, baseado na compreensão dos alunos. Também funciona como um espaço de redução de danos, para quem faz uso de álcool e outras drogas, porque para ir à escola tem que estar bem. Por isso é uma escola que funciona como ponto da rede de assistência”, considera.

Educação e trabalho

Apesar dessas iniciativas municipais, a maioria da população em situação de rua, 55%, com mais de 15 anos de idade não têm ensino fundamental completo e 8% não sabem ler nem escrever, segundo a pesquisa do Ipea. O levantamento também aponta que 21% completaram o Ensino Médio e 2% frequentaram ou frequentam algum curso superior. A pesquisa do MDHC mostra que 92,75% dessas pessoas não vão à escola, mas já foram em outro momento da vida.

“Essa população conta com egressos do sistema prisional, que não têm uma política adequada, as transsexuais e travestis que foram expulsas de casa, mulheres com trajetórias de violência intrafamiliar”, conta Janaína Gomes. A maior parte da população em situação de rua, 67,6%, já trabalhou em regime de CLT. A pesquisa também conseguiu mapear quantos tinham conseguido trabalhar na semana anterior à coleta de dados. Cerca de 16% haviam exercido alguma atividade, entre elas destacam-se: catador, 15,7%, pedinte, 9,1%, serviços gerais 8,7% e construção civil, 5,3%. “Existem as pessoas que vêm de outros estados buscando uma possibilidade melhor de vida e não conseguem, ou tudo o que conseguem fazer de dinheiro, mandam para a cidade natal e ficam em situação de rua para economizar”, complementa Gomes.

No início deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva instituiu a Lei nº14.821 que cria uma Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua (PNTC PopRua). A lei propõe uma promoção da escolaridade, o oferecimento de qualificação profissional e a criação de mecanismos que permitam o acesso ao trabalho e à renda. O texto institui também uma rede de Centros de Apoio ao Trabalhador em Situação de Rua (CatRua), que vai articular ações de empregabilidade, qualificação profissional e economia solidária, uma das suas atribuições é a busca por garantir acesso dessas pessoas ao Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e ao Sistema Nacional de Emprego (Sine).

Além disso, estabelece que devem ser disponibilizas vagas nas instituições públicas de educação infantil e nas escolas públicas de tempo integral dos ensinos fundamental e médio, de forma imediata e simultânea, para crianças e adolescentes. A lei dispõe sobre a criação de mecanismos para o acesso da população em situação de rua à educação escolar, respeitando suas especificidades. Também propõe uma atenção à realidade da vida dessas pessoas, assegurando o direito à matrícula e permanência nas escolas e instituições de ensino com a flexibilização da exigência de documentos pessoais e sem a exigência de comprovantes de residência. No entanto, a lei não trata dos recursos financeiros necessários para essas medidas.

Já o eixo de educação, cultura e cidadania do Plano Nacional Ruas Visíveis inclui o repasse do governo federal de R$ 41,1 milhões para políticas nessas áreas. As principais ações apontadas pelo Plano são: o projeto piloto para até cinco mil pessoas no Pacto pela Alfabetização, via educação popular, estruturando o EJA com oferta adequada à demanda dos sujeitos; atendimento de 750 mulheres no projeto piloto do Programa Mulheres Mil; o acordo de Cooperação Técnica com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) para capacitação de pessoas em situação de rua.

Erlando Rêses, educador popular e professor associado da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE/UnB), considera que para que a lei e o Plano funcionem, devem contar com a interlocução direta desses atores. Além disso, “a educação não deve se restringir à alfabetização e nem à Educação de Jovens e Adultos. Deve passar pelo primeiro, segundo e terceiro segmentos, para que essa população atinja outros níveis de escolarização, como, por exemplo, o ensino fundamental, o ensino médio e a educação superior”, relaciona.

O texto da lei propõe uma incorporação da população em situação de rua à rede pública de educação, evitando sua segregação. No entanto, não estabelece de que modo a aproximação pode ser feita. “Precisamos de um processo de escolarização que primeiro entenda essa população, que não seja um educador desprovido de um compromisso de entender essas pessoas, para ter o engajamento”, repercute Rêses. Também é importante que a escola as alcance: Rêses considera que é preciso “ir até as pessoas, convencê-las de que precisam se educar, se alfabetizar”.

Apesar das propostas, a crise da EJA em vários locais do país, com fechamento e unificação de turmas, além da falta de incentivos, pode ser um obstáculo à execução da proposta. “Se a política de EJA já não está funcionando bem para uma população que não é de situação de rua, quiçá vai funcionar para essa população”, alerta Rêses, que completa: “Temos que olhar a implementação dela como um todo”.

Foto ilustrativa: Canva

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