As normativas orientam sobre o respeito às formas autônomas de cuidado e proteção de crianças praticadas por povos indígenas e comunidades tradicionais e a aplicação dos protocolos de consulta por atores públicos
No MPI
Com apoio e articulação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), o Conselho dos Direitos da Criança e Adolescentes (Conanda) publicou, no dia 22 de outubro, duas resoluções voltadas à proteção e garantia dos direitos das crianças e adolescentes indígenas, quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais. As normativas entraram em vigor após sua publicação no Diário Oficial da União (DOU) e representam avanço na garantia da autonomia e autodeterminação destes grupos, na aplicação de políticas públicas e no atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência.
O Conanda é um órgão colegiado, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), integrado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Sua principal função é articular governo e sociedade civil para definição das diretrizes da Política Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. O Conselho também é responsável por fiscalizar as políticas públicas e estimular a promoção e garantia dos direitos específicos e diferenciados de crianças e adolescentes indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais.
As duas normativas representam avanço na garantia da autonomia e autodeterminação destes grupos, na aplicação de políticas públicas e no atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência. Entre os parâmetros indicados estão o respeito aos Protocolos Comunitários de Consulta e a ampla participação de representantes dos povos e comunidades nas diferentes etapas do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), do seu planejamento e implementação até os atendimentos. O Sistema integra e articula instâncias governamentais e da sociedade civil para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos diferentes níveis de governo.
O Coordenador de Políticas e Conselheiro que representa o MPI no Conanda, Bruno Kanela, explica que as resoluções orientam entidades envolvidas na execução de políticas públicas ou no atendimento a essas crianças, visando o respeito aos seus direitos diferenciados e a adequação das ações institucionais às realidades locais e às particularidades culturais dos povos. “Todos os atores que cuidam desses direitos, tais como conselhos tutelares e os sistema de justiça e proteção social, têm o dever de agir com respeito à diversidade das infâncias indígenas”, disse Kanela.
No país, o Marco Legal da Primeira Infância e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) são os principais instrumentos de defesa e garantia dos direitos deste grupo da população. No entanto, Bruno reforça que há uma lacuna nestes instrumentos no que se refere aos direitos específicos dos povos indígenas. “Dentro deste escopo, as infâncias indígenas ficam sub representadas e subvalorizadas. Frente a este apagão, reconhecer as realidades e particularidades dessas infâncias é um caminho para alcançarmos sua múltipla dimensão, na diversidade cultural dos povos de norte a sul”, afirmou.
A Resolução nº253/2024 estabelece os parâmetros para aplicação da consulta livre, prévia e informada pelo SGDCA. Os direitos à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado são garantidos pela Convenção 169 da Organização do Trabalho (OIT), em vigência no Brasil pelo Decreto nº10.088/2009. Sua aplicação garante que os povos indígenas, as comunidades quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais tenham plena ciência e influência em relação às iniciativas que impactam suas vidas e territórios. Como é o caso de decisões administrativas, legislativas ou de empreendimentos e outros projetos que afetam seus direitos ou interesses.
A Resolução nº254/2024, por sua vez, orienta o respeito e a acolhida das formas autônomas praticadas por estes povos e comunidades de cuidado, atenção e proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, em coordenação com as medidas institucionais do SGDCA. Isso, para a implementação de protocolos culturalmente adequados às perspectivas próprias de cada povo.
Povos indígenas e suas infâncias
O Censo 2022 do IBGE demonstrou que a população indígena do país é predominantemente jovem, com mais da metade de indivíduos na faixa etária até os 25 anos. Dos cerca de 1,7 milhão de indivíduos no total, em torno de 25% é de crianças com menos de 14 anos. Nas Terras Indígenas, a estrutura etária é ainda mais jovem, com cerca de 41% da população nesta faixa etária. Esses dados apontam a urgência da adequação e implementação das políticas públicas com atenção a este público.
Para investigar o acesso às políticas públicas e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes indígenas, foi estabelecido Acordo de Cooperação Técnica entre o MPI, o Centro de Estudos Avançados Multidisciplinar (CEAM) da Universidade de Brasília (UnB) e o Observatório dos Povos Indígenas e suas Infâncias (OPOInfâncias). As duas organizações realizam uma pesquisa em diversas regiões do país, com o apoio da Deputada Federal Erika Kokay.
A pesquisa, que está em fase de finalização, teve cerca 65% de sua equipe formada por pesquisadores indígenas, a fim de que as análises tivessem abordagem sensível e mais alinhada à realidade dos desafios enfrentados. A equipe investiga, há dois anos, o acesso a políticas públicas, como as de saúde, educação, assistência social, segurança alimentar e outras, entre 2020 e 2023, por crianças indígenas no país. Foi realizado o levantamento de indicadores sociais, legislações e políticas públicas temáticas, desde 2000, aprovadas pelo Conanda.
Também foram analisados dados de bases secundárias públicas e de organizações da sociedade civil, com o recorte de cinco estados: Amazonas, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio Grande do Norte e Roraima e do Distrito Federal. Entre as bases de dados analisadas, estiveram o DATASUS, CadÚnico, o IBGE, o Censo Escolar e dados da Secretaria de Saúde Indígena (SESAI). Após a etapa de tratamento e análise quantitativa, a equipe aplicou técnicas de pesquisa qualitativa, além da investigação das políticas e programas disponíveis para este público. A pesquisa foi financiada pelo mandato parlamentar da Deputada Federal Erika Kokay.
Resultados incipientes das análises foram apresentados no início do mês em assembleia ordinária do Conanda. Os pesquisadores destacaram a importância da atuação do MPI para a articulação de políticas públicas adequadas a essas comunidades e sugerem uma ação coordenada entre ministérios e outros órgãos do governo, com envolvimento dos três poderes para a proteção das infâncias e adolescências indígenas.
O estudo propõe a criação de um programa piloto para enfrentamento das vulnerabilidades deste público, com três eixos principais: a prevenção às violências e educação intercultural indígena e decolonial, a organização de uma rede de proteção e o combate à subnotificação.
Durante a apresentação dos resultados da pesquisa, a coordenadora do OPOInfâncias, Maria Lúcia Pinto Leal, destacou que a subnotificação é um dos principais desafios apontados pelo estudo. “A subnotificação é uma violação de direitos, porque apaga a existência e oportunidade das pessoas serem compreendidas e respeitadas dentro dos seus direitos básicos”, comentou. Muitos sistemas de coleta de dados públicos não têm suas metodologias adequadas às particularidades dos povos indígenas. Um dos exemplos é a ausência de identificação das etnias e territórios nas informações, o que pode gerar contradições nos resultados, além da própria ausência desse recorte nas estatísticas.
“A unidade dialética dos dados quanti-qualitativos é o que mostra as contradições e as possibilidades da gente construir, com conhecimento indígena, uma episteme que possibilite que eles sejam sujeitos de direitos”, defende Maria Lúcia. Além do aperfeiçoamento da coleta dos dados nos cadastros públicos, o estudo propõe a elaboração de uma plataforma integrada com cruzamento das informações das unidades federativas, territórios e etnias. O que poderia subsidiar a formulação de políticas mais assertivas e a inclusão étnica nos Planos Nacionais com foco na infância e adolescência.
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Foto: comunidade Guyraroka