Uma “transição energética” de costas às comunidades

Ativistas socioambientais expõem a devastação causada pelo parque eólico do Ceará, reflexos de uma suposta solução ambiental pensada sob a lógica do mercado. Portas estão fechadas à participação dos mais afetados. Não há políticas de mitigação à altura

Por por Gabriel Brito, Outra Saúde

Com um dos maiores parques eólicos brasileiros, o estado do Ceará é exemplo didático de como as chamadas transições para uma economia de baixo carbono têm tudo para se revelar uma farsa se mantidas sob a égide do capital. No setor elétrico, estamos no início de um processo de exploração empresarial de fontes renováveis de energia que mais repete do que altera as velhas dinâmicas. Isto é: privatizam-se os dividendos e socializam-se dos prejuízos.

É isso que se pode depreender da longa entrevista que três mulheres ativistas do Instituto Terramar concederam ao Outra Saúde. O movimento socioambiental tenta cobrir toda a costa cearense, que tem cerca de 600 km, e centenas de comunidades tradicionais cujos modos de vida se colocam diante de projetos eólicos. Grosso modo, projetos de energia que têm o Sol ou os ventos como fontes ainda contam com uma aura de imunidade a impactos socioambientais. No entanto, tal noção não para em pé quando se conhece de perto os empreendimentos.

“Apesar do discurso, vemos uma ampliação da oferta de energia, mas dentro da lógica de mercado, sem compartilhamento social. E mais: trata-se de ampliação de energia em terra e no mar para convertê-la em hidrogênio verde e exportar para a Europa. Essa é a transição energética que nós estamos vendo”, denunciou Andréa Camurça, assistente social e coordenadora de direitos territoriais e socioambientais do Instituto Terramar.

Na entrevista, as ambientalistas são enfáticas em afirmar o conluio entre governos e empresas, que controlam o processo decisório, fazem de tudo para mitigar não os impactos, mas sim a participação das comunidades diretamente afetadas. No fim das contas, é o que se pode esperar de transições ecológicas capitaneadas pelos mesmos causadores da emergência climática.

“Não se trata de ser contra novas fontes de energia, mas podemos, sim, contestar o modelo de instalações. Até porque todos esses empreendimentos estão inseridos na lógica do sistema capitalista e uma sociedade estruturalmente racista. Os interesses não mudaram e as formas de fazer também não vêm se renovando, muito menos quem está por trás de todas essas movimentações”, sintetizou Letícia Abreu, advogada do núcleo jurídico do Terramar.

Apesar de o Ceará já ter mais de 100 empreendimentos, seus impactos ainda estão pouco documentados, o que significa que praticamente não existem políticas de mitigação social, econômica, territorial ou sanitária.

“Temos um contexto de flexibilização das legislações, numa perspectiva colonialista em que os governos têm assumido uma postura de garantir segurança jurídica para os empreendimentos. E isso não significa garantir segurança jurídica os povos e comunidades tradicionais”, criticou Andrea Camurça.

Ao conhecer de perto os modos de vida das comunidades afetadas, as ativistas deixam claro que já passou da hora de se analisar os impactos de forma multifacetada e complementar. Não são afetadas só as rotinas, mas também as condições econômicas e a saúde das pessoas diretamente atingidas; ciclos ecossistêmicos e até a alimentação de uma população de um estado inteiro podem ser atingidos pelos parques eólicos se mantida sua atual embocadura de busca por aumento de oferta energética sob lógica mercantil.

“Pegamos o exemplo na comunidade Cumbe (município de Aracati). Na instalação, passavam todos os dias centenas de caminhões, as estradas ficaram piores, mais enlameadas quando chovia, as crianças não podiam ir para a escola de forma segura, as casas rachavam, o território todo privatizado. Isso tudo já gerava impacto na saúde dessas pessoas, físico e psicológico. Após a instalação, acontece a privatização dessas áreas, e se perde acesso às dunas, lagoas”, ilustrou Beatriz Vidal, também advogada do Instituto.

Outro aspecto destacado pelas ativistas é que tais impactos se repetem mesmo quando se trata da instalação de torres em alto mar. Como defendem, a solução mais óbvia é cumprir legislações já vigentes e respeitar inclusive o direito de simplesmente dizer não. Caso contrário, alertam, comunidades serão sacrificadas em nome de uma sustentabilidade que passará longe de suas vidas. “Se essas eólicas se afirmarem da forma como estão pensadas no mar, vai acabar a pesca artesanal — o que vai gerar uma diversidade de danos à saúde coletiva. Até a lagosta que é exportada vem da pesca artesanal”, afirmou Andrea Camurça.

Em primeiro lugar, qual o panorama geral em relação aos empreendimentos eólicos no estado do Ceará, um dos líderes do Brasil nesse mercado, e qual é o resumo dos impactos sociais nas comunidades onde esses empreendimentos são feitos?

Andrea Camurça: Acompanhamos conflitos socioambientais na zona costeira do Ceará, que abrangem uma diversidade de conflitos, desde especulação imobiliária, carcinicultura e energias renováveis. Acompanhamos a comunidade do Cumbe, em Aracati, impactada desde 2008, e Curral Velho e outras comunidades tradicionais pesqueiras da região de Acaraú, ameaçadas pelo megaempreendimento Ventos de Acaraú. Tais comunidades já sofrem com uma usina eólica próxima. Além disso, agora há ameaça de usinas offshore. Dos pedidos de licenciamento junto ao Ibama, a Usina “Dragão do Mar” constitui um projeto mais avançado.

O Nordeste é a região escolhida para a instalação dos megaempreendimentos eólicos. Esses projetos têm gerado injustiças energéticas, incluindo expropriação de territórios, deslocamento de comunidades tradicionais, contratos abusivos, redução do acesso a áreas produtivas e impactos nos modos de vida, além de ameaças ao patrimônio cultural e natural local.

No Ceará, hoje, são 100 usinas em operação e mais 75 projetadas, que estão ou na fase de licenciamento ou já na instalação. Diante da emergência climática, temos a expansão das renováveis, em terra, mar e agora até para áreas de serra, o que já tem causado uma diversidade de impactos, como conflitos fundiários. Temos histórias de judicialização, ameaça de morte para as lideranças que estão na luta em defesa dos seus territórios… Temos tido aumento do desmatamento, inclusive há um relatório que mostra aumento significativo do desmatamento da Caatinga, uma das nossas vegetações principais, e também nas áreas de serra. Segundo o relatório do Map Biomas de 2023, mais de 4 mil hectares de caatinga foram desmatados por empreendimentos de energia renovável, um número quase 10 vezes maior que em 2020.

Portanto, vocês são testemunhas de drásticas mudanças no cotidiano social, econômico e demográfico de áreas afetadas, a exemplo do que historicamente ocorreu em grandes empreendimentos de energia elétrica na história do Brasil?

Andrea Camurça: Sim, temos danos diferenciados, a exemplo da vida das mulheres. Vimos isso a partir da comunidade do Cumbe, e não são danos apenas na implementação do empreendimento. São mais sorrateiros, permanecem na área. Há dinâmicas de exploração sexual e o fenômeno dos “filhos dos ventos”, isto é, crianças nascidas de relações estabelecidas entre mulheres locais e homens que vieram trabalhar no projeto e depois deixaram a cidade. Tem adoecimento mental, porque gera uma sobrecarga na vida dessas mulheres, impactos não assumidos sobre a saúde pública causados pelos ruídos das turbinas, como já mostrou de forma mais aprofundada o trabalho de André Monteiro na Fiocruz de Pernambuco… No Ceará as universidades avançam em pesquisas que relatam efeitos parecidos, como em Curral Velho.

Vemos muita desinformação em áreas de projetos eólicos, assim como rejeição. Algumas pessoas quando perguntadas a respeito dizem que vão embora caso se instalem usinas eólicas, pois não aguentam o barulho das turbinas. Há transtornos oriundos do ruído, do sombreamento causado pelo movimento das pás, que se projetam em escolas, casas, a exemplo de usinas eólicas instaladas no município de Amontada. Enfim, uma diversidade de impactos e violações de direitos.

Pensa-se muito que já houve mudança de paradigma na implantação dos projetos, mas não é assim. O que houve foi adaptação em locais onde já se destruíram vários ecossistemas costeiros, como dunas e lagoas, e veio uma legislação dizer que não se coloca mais turbinas em região de dunas – mas depois permite que se coloque nos pés de dunas. É o que temos tentado mudar em construções de movimentos coletivos como o Nordeste Potência, com comunidades e pesquisadores se encontrando e estabelecendo um debate a respeito e construindo salvaguardas socioambientais.

De toda forma, a ação do poder público ainda é limitada, as medidas de mitigação acabam como “recomendação” e as empresas mantêm suas práticas, como é o caso do empreendimento Ventos do Acaraú, de 101 aerogeradores cuja escolha locacional é sobre a população de renda de até dois salários mínimos, na sua maioria preta e parda, o que explica conceitos como racismo ambiental.

Pelos relatos que vêm se acumulando fica difícil não concluir que se criou uma mitificação das energias renováveis, no sentido de que elas não teriam impactos ambientais ou sociais. No entanto, parecem repetir a dinâmica tradicional de empreendimentos de energia elétrica, com grandes usinas que mudam o próprio perfil da população, consequentemente pressiona a malha de serviços públicos, que entram num certo colapso e geram fenômenos como, por exemplo, o aumento da prostituição, miséria e violência.

Letícia Abreu: Sim, mitificação é uma boa definição. Cabe dizer que não se trata de ser contra novas fontes de energia, mas podemos, sim, contestar o modelo de instalações. Até porque todos esses empreendimentos estão inseridos na lógica do sistema capitalista e uma sociedade estruturalmente racista. Os interesses não mudaram e as formas de fazer também não vêm se renovando, muito menos quem está por trás de todas essas movimentações.

Temos dois caminhos: o do possível desenvolvimento, do cuidado com a emergência climática, de todas as questões que são necessárias para esse novo projeto, inclusive modos de vida, de pensar um novo tipo de produção e consumo de energia, entre diversos grupos sociais; ou deixar os mesmos de sempre sofrerem todas as consequências. E aqui cabe observar que o discurso da transição ecológica está sendo hegemonizado exatamente pelos responsáveis pela sua urgência, ou seja, os grandes emissores de gases de efeito estufa.

Enfim, vemos se repetir a dinâmica da história de uma geração de benefícios que vai quase 100% para a Europa, os países ditos de primeiro mundo, onde também os debates ambientais e de emergência climática se iniciaram. Fazemos esse recorte porque trabalhamos com povos e comunidades tradicionais, esses povos e comunidades tradicionais já tinham várias receitas para que não precisasse chegar no ponto de uma emergência climática e de transições energéticas.

Agora, com este caos e mesmo vários crimes, é importante ressaltar que, ainda assim, as pessoas que vão ser mais afetadas são as menos beneficiadas por qualquer melhoria desta suposta transição. E são também as pessoas que vão pagar literalmente a conta, porque as contas de luz já aumentaram. Há também comunidades com casas a poucos metros de distância de torres eólicas que não têm nem energia. São contradições muito gritantes e nos obrigam a fazer reflexões.

Como tem agido os governos do estado e dos municípios afetados pelos empreendimentos eólicos? Repete-se a dinâmica de morosidade e omissão diante de projetos altamente lucrativos?

Andrea Camurça: Muito pelo contrário, são governos bem ativos nessas questões. Temos um contexto de flexibilização das legislações, numa perspectiva colonialista em que os governos têm assumido uma postura de garantir segurança jurídica para os empreendimentos. E garantir segurança jurídica para os empreendimentos não significa garantir segurança jurídica os povos e comunidades tradicionais.

A zona costeira cearense tem 573 quilômetros, o poder público trata como se não tivesse ninguém, mas houve um mapeamento, inclusive recente, de 324 comunidades que se autodeclaram comunidades tradicionais, que vivem da pesca, da agricultura, do turismo comunitário e da cata do marisco. E os governos têm atuado de fato em prol dessas empresas. Essas comunidades têm travado muitas lutas e conseguiram ser incluídas no mapeamento do Zoneamento Ecológico-Econômico do Ceará (ZEEC). No entanto, a Lei do ZEEC até hoje não foi votada.

Portanto, a força do lobby na assembleia legislativa é de não votar. Desde a década de 2000, temos as evidências dos diversos impactos gerados e até hoje não se tomou muitas medidas. No caso do Ventos do Acaraú, inclusive o sistema de justiça, a promotoria, tem perguntado para o município: “vocês já criaram um fórum de discussão com a Câmara de vereadores e prefeitura para discutir como enfrentarão os impactos que vêm junto com esse empreendimento?”

No caso do mar, a gente percebe que tem gerado adoecimento e preocupação nos pescadores e pescadoras, pois ali está a vida e o trabalho deles/as, é o que garante a segurança alimentar e econômica. Quando se diz que eles poderão ser impactados com as eólicas no mar, estão em uma situação de desespero diante disso.

Portanto, os impactos são diretamente relacionados à saúde das pessoas afetadas. Há uma preparação do sistema de saúde para lidar com isso?

Andrea Camurça: Não há. Os adoecimentos são os mais amplos, mas muitas vezes as pessoas nem conseguem perceber. E aí o sistema público não tem acompanhado, não investiga e cria indicadores para fazer correlação. Essa é uma dimensão onde ocorre muita subnotificação. Isso é um problema enorme pois se deixa de mapear uma série de coisas.

Beatriz Vidal: Mais uma vez, pegamos o exemplo na comunidade Cumbe. Na instalação, passavam todos os dias centenas de caminhões, as estradas ficaram mais ruins, mais enlameadas quando chovia, as crianças não podiam ir para a escola de forma segura, as casas rachavam, o território todo privatizado, isso tudo já gerava impacto na saúde dessas pessoas, físico e psicológico. Imagina uma comunidade tranquila, que tem seu modo de viver, e de repente tudo isso aparece. Após a instalação tem a privatização dessas áreas, e se perde acesso às dunas, lagoas…

Além disso, há desdobramentos na segurança alimentar dessas pessoas, que perdem o acesso a lagoas que usavam para pesca, modificando seu modo de vida e bem estar. Vemos lideranças que acabam adoecidas, porque estão naquela luta e não conseguem resultados, pois o governo é insuficiente em dar respostas rápidas. São lutas que demoram para chegar a alguma coisa, e quando chega não é suficiente ou já é tarde demais. Tudo isso vai impactando na saúde das pessoas. De toda forma, ainda falta um mapeamento melhor do governo e do sistema de saúde sobre impactos e consequências mais específicas nas pessoas e sua correlação com os empreendimentos. É algo que, de fato, aqui é muito subdimensionado.

Vocês falaram em benefícios que vão para a Europa. Como é a relação de tais empresas com as comunidades? Não se faz nada no sentido de reparação e compensação?

Beatriz Vidal: Existe um projeto de instalação que se chama Ventos de Acaraú. Ainda é um projeto, mas já tem impacto. No começo, atingiria 33 comunidades; depois de nossa intervenção e da organização coletiva, temos notadamente 18 comunidades impactadas. A forma como falam com a comunidade é vertical, inclusive com intenções de descaracterizar a comunidade tradicional.

Um exemplo é quando vão fazer o EIA-RIMA e precisam identificar as comunidades tradicionais. Dizem que não tem comunidade indígena próxima, não tem comunidade quilombola, tem só umas pessoas que “se diriam” pescadores e não são tratadas como tradicionais. Há um desrespeito grande com essas pessoas, com pouca participação das comunidades em si. Quando há alguma audiência pública, só serve para constar, legitimar e aprovar o projeto, sem uma consulta válida à população atingida. E depois fazem pequenas coisas, como uma estrada, oferecem um curso. Mas nada suficiente para mitigar os danos.

Portanto, há um lucro enorme para as empresas, mas uma falta de diálogo e comunicação com as comunidades que deixa um ônus enorme para essas pessoas.

Andrea Camurça: As comunidades não participam de decisão nenhuma. Isso é uma questão importante dizer. É preciso que o Estado aplique a Convenção 169 OIT, o protocolo de consulta prévia, livre e informada. No caso de Ventos do Acaraú, é uma empresa norueguesa que neste processo todo nega a existência de comunidade tradicional e a deslegitima. Dizem que “não tem indígena, não tem quilombola”, e desconsidera que essa comunidade, historicamente, se reconhece enquanto comunidade tradicional de pescadores. Houve mudanças no projeto, mas nem as comunidades e nem a população de Acaraú ainda teve conhecimento sobre como vai ficar. E são cerca de 10 mil pessoas afetadas em Acaraú, o município atingido.

A apresentação do primeiro layout do projeto foi para poucas comunidades. O projeto atual, que está no terceiro ou quarto layout, não é apresentado a nenhuma das comunidades. Elas sabem que um empreendimento enorme está chegando, mas não como será sua efetivação. Agora, está suspenso pelo Ministério Público, justamente porque falta diálogo. Mas não é um caso isolado. Todos os outros projetos instalados no Ceará foram assim.

Portanto, apesar do discurso de transição energética, vemos uma ampliação da oferta de energia, mas dentro da lógica de mercado, sem compartilhamento social. E mais: é ampliação de energia em terra e no mar para convertê-la em hidrogênio verde e exportar para a Europa. Essa é a transição energética que nós estamos vendo. Inclusive o Senado aprovou o PL das offshore (PL 576/2021) que inclui medidas que aumentam as emissões de gases de efeito estufa, com a ampliação do uso de combustíveis fósseis, como carvão e gás natural.

A expansão de parques eólicos offshore no Brasil traz preocupações devido ao histórico de desigualdades associado aos empreendimentos onshore. Os impactos incluem alterações de habitats marinhos e ameaçam biodiversidade e cadeias alimentares, como as de lagostas e camarões, essenciais para a economia e subsistência no Nordeste. A pesca artesanal sofre com exclusões em áreas próximas às turbinas, o que gera conflitos e perdas econômicas. Além disso, há poluição sonora, possíveis mudanças hidrodinâmicas, risco de contaminação por vazamentos e prejuízos ao turismo e ao ecossistema costeiro. Casos internacionais revelam danos econômicos e ecológicos semelhantes, intensificando temores de violações de direitos e agravamento das desigualdades no Brasil.

As energias renováveis estão sendo utilizadas principalmente para maximizar os lucros das empresas e atender à transição energética da Europa. Assim, deixam de lado as necessidades locais, que ficam só com os impactos sociais e ambientais.

Quais são os impactos mais visíveis para vocês?

Andrea Camurça: Relata-se muito barulho à noite, é perturbador e gera problemas para dormir, adoecimento mental por todos os transtornos, principalmente as mulheres, porque elas estão ali na ponta desde a instalação, mas não só, porque, por exemplo, continuam sendo ameaçadas. Inclusive, tem casos de pessoas que entraram em programas de proteção, porque houve tentativa de atropelamento de defensora em seu território. E tem as doenças que em Pernambuco já se documentou melhor, mas no Ceará ainda não se investigou com a devida profundidade.

Letícia Abreu: Não são relatos só daqui que a gente acompanha. Em outros estados do Brasil e também fora já há relatos e um pouquinho mais de investigação, a exemplo do Chile. Algumas pessoas, por exemplo, têm crises de esquizofrenia por conta do efeito claro-escuro gerado pelo movimento das turbinas, com luz-sombra-luz-sombra o tempo todo se revezando na vista das pessoas. Tem a própria desterritorialização, uma violência profunda, principalmente com as comunidades tradicionais, o que se desdobra em muitos problemas. Falamos de comunidades que estão há séculos naqueles locais e algumas ficam impedidas de visitar seus cemitérios, por exemplo, como ocorre no Cumbe, onde a empresa privatizou aquele espaço e hoje tem um portão trancado com segurança.

No plano mais imediato, qual seria a agenda de mitigação de impactos mais apropriada?

Beatriz Vidal: Atualmente, em um plano mais imediato, não há uma agenda para ser inventada. O primeiro de tudo é seguir as regras, legislações, acordos internacionais, que já existem, e se aplicam em locais como a Europa, por exemplo. Pensando no caso das eólicas offshore, que têm um potencial enorme de trazer impactos, os aerogeradores estão projetados dentro da zona de pesca artesanal, desenvolvida pelas comunidades tradicionais, que inclusive sustentam boa parte da própria alimentação do estado do Ceará.

Em muitos países da Europa já têm leis, por exemplo, a exigir uma distância para o alto mar, que não impacta diretamente essa zona preamar, onde há mais vida, tanto das comunidades como marinha mesmo, em termos de diversidade de peixes e outras espécies. Há a obrigação de se fazer um planejamento espacial marinho prévio, a fim de identificar as áreas de exclusão, onde há atividades econômicas, ecossistemas e modos de vida, o que temos dificuldade de implementação aqui no Brasil. Já tem algumas resoluções para conciliar a coexistência, inclusive das próprias torres.

Letícia Abreu: Outra questão são as escolhas locacionais. Para não dizer 100%, mas 99% das instalações e dos projetos que estão por vir estão sendo pensados para dentro de territórios de comunidades tradicionais. Por quê? Porque o grande problema do Brasil ainda é a péssima distribuição de terra, e a dificuldade do acesso ao direito à permanência de povos e comunidades tradicionais. Assim, vamos dizer que as terras mais leiloáveis e fáceis de serem literalmente invadidas, de serem expropriadas e exploradas de todas as formas são as da população mais periférica.

Porque a legislação, mesmo que já exista e proteja de diversas formas, desaparece quando se trata de aplicá-la para pessoas da periferia, como no caso do VLT em Fortaleza na época da Copa; quem foi removido foram todas as pessoas de periferia, para outras periferias mais longe ainda, a fim de se fazer essa higienização social e ter o transporte rápido e efetivo para os estrangeiros que vieram passar uma semana, um mês sequer.

Portanto, nada disso é deslocado ou descontextualizado. O primeiro passo seria seguir a legislação já em vigor, porque tem uma legislação já muito fortalecida com relação à proteção dos povos e comunidades tradicionais, à questão do uso social da terra, função social da terra, à própria especulação imobiliária para barrar ou diminuir, entender toda uma questão da própria distribuição da cidade, do interior, das partes da zona costeira.

Mas a grande questão é que ainda vivemos numa sociedade capitalista, racista, patriarcal, e são esses homens brancos, cis, héteros, ricos que estão tomando as decisões estão pensando no seu próprio nicho. Vejo que para além de todas as leis e debates, visibilização e participação das comunidades (que têm seu próprio modo de vida), tudo continuará a se repetir neste sistema.

É necessário ainda respeitar as salvaguardas ambientais e sociais, e os acordos de medidas de compensação, o que não está sendo respeitado de forma alguma no Brasil. Em resumo, respeitar a legislação, visibilizar as comunidades, ter uma melhor comunicação e garantir tudo que a Convenção 169 da OIT coloca para as comunidades tradicionais.

Mesmo as políticas compensatórias são questionáveis?

Letícia Abreu: É necessário ficar de olho nas supostas mitigações. Há casos que já observamos onde se oferecem compensações do tipo um curso de organização comunitária a fim de incentivar a formação de associações, mas com o intuito de dividir as comunidades. Também deve-se tomar mais cuidados de prevenção antes de reparação, criar medidas rigorosas de distância das casas e comunidades para os aerogeradores. Hoje, a ABNT orienta mais ou menos 500 metros de distância, mas já sabemos que outros países colocam dois quilômetros. Esses impactos já são conhecidos e não se toma providência.

Outro ponto é que deve haver uma possibilidade real de se dizer não. Na Suécia há governos locais que simplesmente disseram não. Isso vale para o mar também; até existe direito ao não em áreas em que as forças armadas consideram como área de segurança nacional, portanto, deve ser resguardadas para proteção e não para instalação de eólicas offshore. Aqui no Brasil temos os vários usos que precisam ser conhecidos e considerados, como das áreas de pesca artesanal. Daí a necessidade da realização do Planejamento Espacial Marinho e de normativas que garantam a proteção dos oceanos.

Soraya Tupinambá, engenheira de pesca, nos alerta de que: “a conservação dos oceanos é a única possibilidade de existir. Quando você fala, por exemplo, que duas vezes que você respira, uma delas se deve ao mar… esse é um presente dos Oceanos, o oxigênio produzido pelas algas e 90% do calor excedente hoje no mundo pela emissão de CO2 é absorvido pelo Oceano”.

Se em áreas de povoamento humano ainda engatinham medidas de mitigação, em áreas marítimas o vazio jurídico seria total?

Beatriz Vidal: Falamos bem mais dos impactos das usinas terrestres, mas no mar também existem impactos diretos nas atividades dessas comunidades que hoje acompanhamos. Existem vários outros potenciais impactos para o mar, sem um planejamento quanto a medidas de mitigação ou prevenção dos danos. No Brasil, já são mais de 100 projetos. Só no Ceará já tem 26 projetos com pedidos de licenciamento ambiental no IBAMA, cercando toda a costa litorânea, alguns bem mais avançados, como esse em Acaraú.

Andréa Camurça: E no próprio ecossistema. O que os ruídos dos aerogeradores vão trazer para espécies do ecossistema marinho? Precisamos de aprofundamento dos estudos e alguns já apontam isso. Vai haver todo impedimento da pesca artesanal, como se vislumbra em projetos para até 5km de mar territorial. A pesca artesanal vai até 40km ou mais a depender das características locais e do tipo de pesca. São embarcações à vela, e faz parte da cultura e da pesca artesanal que demanda embarcações pequenas. Isso pode gerar insegurança alimentar. E isso tem tudo a ver com a saúde, não é? Assim, não se sabe quais serão, inclusive, as alterações no ecossistema marinho dessas espécies de pescado, o que será das mulheres que vivem da cata do marisco…

As torres não vão cair do céu, elas vão circular por navio. E não é só isso, tem os cabeamentos, tem as centrais, que vão estar tanto em mar como em terra, tem as linhas de transmissão. Ninguém fala de linha de transmissão, que também gera diversos impactos para as populações. É uma cadeia de impactos que, muitas vezes, olhamos isoladamente. Se essas eólicas se afirmarem da forma como estão pensadas no mar, vai acabar essa pesca, o que vai gerar uma diversidade de danos à saúde coletiva. Até a lagosta que é exportada vem da pesca artesanal.

Letícia Abreu: E não é só. Batemos muito na relação dos impactos das comunidades tradicionais, que de fato são os mais absurdos, fortes e profundos. Mas não podemos deixar de pensar que vai impactar todo mundo. O que vai ser da própria circulação do alimento no estado dos mariscos? O próprio Sururu já não existe mais em partes do rio Jaguaribe por conta dos efeitos das mudanças climáticas, além das consequências do derramamento do petróleo, o que até hoje não gerou nenhuma medida de reparação.

O avanço da privatização das praias, o fortalecimento das instalações de usinas offshore, seu cabeamento e linhas de transmissão e até um risco ao turismo são fatores associados. Tudo está ligado. A gente fala de uma coisa aqui, outra ali, mas não tem como desassociar todas as coisas ao mesmo tempo.

Vamos falar cada vez mais na junção de impactos, dos impactos cumulativos e sinérgicos, porque tem uma legislação ou outra que estabelece tamanhos mínimos, por exemplo, na carcinicultura, ainda hoje um grande negócio, mas um degradador muito profundo dos manguezais e da zona costeira há duas décadas. E continua a ser. A lei diz que em área de até cinco hectares pode-se ter tanques de criação de camarão, pois são classificados como pequenos. Mas e vários tanques de cinco hectares somados? Essa soma de impactos ainda está pouco estudada, porque quem cria essa caixinha somos nós, mas a natureza não está ali naqueles cinco hectares, está toda ao redor. Temos de lembrar sempre da concomitância dos impactos porque muitas coisas são repartidas. E os impactos serão para todos no final das contas.

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