O retorno de Donald Trump ao poder é um grande baque para a ação climática, mas pode ser também uma oportunidade para recolocá-la nos trilhos.
Por Bruno Toledo Hisamoto*, em ClimaInfo
Depois de quatro anos, uma pandemia, uma tentativa de golpe, uma invasão ao Capitólio, 54 acusações judiciais por vários crimes, uma condenação por fraude e duas tentativas de assassinato, mais de 77,3 milhões de eleitores deram a Donald Trump uma rara segunda chance de ocupar a Presidência dos EUA. Junto com ele, o negacionismo climático também volta a dominar a política norte-americana, mesmo com o país assolado por episódios cada vez mais frequentes e devastadores de clima extremo.
Em vez de transformacionais, os avanços conquistados pela gestão do agora ex-presidente Joe Biden nos últimos quatro anos podem se tornar passageiros se Trump levar a cabo todas as promessas feitas na última campanha: acabar com os incentivos para fontes renováveis de energia e carros elétricos, jogar fora as (poucas) restrições à produção de combustíveis fósseis em terras federais, expandir da exploração fóssil sem limites (drill, baby, drill), desmontar os órgãos técnicos e científicos que lidam com a questão climática, tirar os EUA do Acordo de Paris e da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima (UNFCCC), entre outros descalabros.
Além dos retrocessos domésticos, a volta de Trump também pode alimentar uma nova onda de contestação política ao regime multilateral da ONU para o clima, especialmente em países governados (ou prestes a ser) pela extrema-direita. Já se enxerga movimentos parecidos na Argentina de Javier Milei, a caricatura trumpista que governa nossos hermanos há mais de um ano.
Mas o temor maior é que nações maiores, como Alemanha e França, caiam na tentação negacionista oferecida por seus extremistas protofascistas. Neste hipotético cenário, as bases que permitiram o funcionamento do regime multilateral para o clima nas últimas quatro décadas poderiam ser dinamitadas, com efeitos colaterais em todo o sistema ONU.
O momento para esses retrocessos não poderia ser pior. Após uma década de negociação em torno de suas regras e estrutura, finalmente o Acordo de Paris está entrando em sua fase de implementação. Ferramentas importantes, como os mecanismos de financiamento climático, a compensação por perdas e danos decorrentes das mudanças climáticas, e os mercados internacionais de carbono, estão definidas e prontas para entrar em ação.
Ao mesmo tempo, os países deverão apresentar a nova versão de suas contribuições nacionalmente determinadas (NDC), com novas metas de redução de emissões de gases de efeito estufa para as próximas décadas – idealmente, mais ambiciosas que as anteriores e suficientes para viabilizar o limite de 1,5°C para o aquecimento global neste século.
Tudo isso pode ser posto em risco caso a ofensiva negacionista de Trump seja mais forte do que a empreendida em sua primeira passagem pela Casa Branca (2017-2021). Se bem sucedida, ela poderá ferir de morte o Acordo de Paris e “terminar o serviço” da desconstrução do regime multilateral para o clima, há anos afligido por descrédito e desconfiança pública e política.
Multilateralismo em xeque: a busca por reforma e resiliência
O cenário é desafiador e as consequências do novo governo Trump podem ser devastadoras para o clima. Não há margem para qualquer esperança de que os absurdos prometidos por Trump ficarão no papel. E o alinhamento do “clube dos bilionários” às pretensões destruidoras do novo presidente norte-americano tira do tabuleiro qualquer freio econômico a esses absurdos.
Mas a gravidade do cenário político para os próximos quatro anos não pode ser respondida pelos defensores da ação climática global com medo e paralisia, muito menos com “terra arrasada”. Se o negacionismo se prepara para bater com força, não há outra saída que não seja revidar da mesma forma. E, talvez, a crise possa ser uma oportunidade – no caso, uma chance de finalmente enfrentar as graves distorções e deficiências que acometem o sistema multilateral há anos e fortalecê-lo contra o negacionismo da extrema-direita.
Há oito anos, quando Trump assumiu o poder nos EUA pela primeira vez, os governos mantiveram sua mobilização em torno do Acordo de Paris, então recém-nascido, e seguiram construindo as bases do regime climático mesmo sem a colaboração do maior emissor de gases de efeito estufa do mundo. Os entendimentos entre os países ricos, especialmente na Europa, e as economias emergentes, principalmente a China, foram cruciais para que o Acordo sobrevivesse ao primeiro quadriênio trumpista.
No entanto, o cenário de 2025 é bem diferente do de 2017. Enquanto o sucesso diplomático histórico da COP21 de Paris inspirou os governos a manter a aposta no multilateralismo climático naquela época, essa inspiração é mais tênue hoje. A palavra que sintetiza o sentimento generalizado atual com o regime climático é “frustração”. Os últimos anos foram marcados por uma sequência de COPs decepcionantes em maior ou menor grau, que entregaram resultados pouco ambiciosos, dissociados da gravidade cada vez mais evidente da crise climática.
Por isso, agora, “proteger” o regime multilateral é insuficiente para a ação climática global. A estrutura política atual, construída há mais de 30 anos, não dá mais conta da realidade do clima extremo (e da política extremista) dos anos 2020. Se quisermos manter e fortalecer a ação climática global frente à nova ameaça de Trump, os entendimentos de 2025 precisarão ser mais profundos do que os de 2017. Goste-se ou não, a reforma do multilateralismo climático tem que entrar na pauta dos governos.
De certa maneira a movimentação recente do governo brasileiro pela inclusão da pauta climática em fóruns como o G20 e o BRICS+ é um esforço no sentido da reforma do multilateralismo. A articulação de grupos de países que representam grande parte das emissões de carbono do planeta em prol de consensos básicos para o clima é um caminho interessante para reposicionar esses governos no tabuleiro da UNFCCC e superar os impasses que engessam essas negociações há anos.
Mas esse esforço precisa ir além de ações extra-regimes e incluir a própria UNFCCC. Amarrada ao contexto político global da época de sua emergência, em 1992, a Convenção está ultrapassada e não se encaixa mais no mundo de 2025. O Acordo de Paris tentou driblar esse esgotamento, mas não conseguiu escapar das amarras mais fortes – como as definições de países desenvolvidos e em desenvolvimento, a ausência do conceito de vulnerabilidade climática, e o processo decisório baseado no consenso entre os governos.
A última COP realizada em novembro passado em Baku (Azerbaijão) mostrou a força dessas amarras e as dificuldades que elas impõem à ação climática global. Insistir no modelo atual, sem qualquer reforma, é apostar no fracasso político e no colapso do regime multilateral para o clima.
Uma reforma não será fácil, muito pelo contrário. Reabrir os debates de três décadas atrás pode dar margem para novos impasses, bem como retrocessos em elementos definidos no passado, mas hoje questionados por atores poderosos – como a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos pela crise do clima. Mas a inércia atual não nos levará para onde precisamos ir; é necessário um novo impulso, baseado em novos pactos e entendimentos.
Somente a reforma nos permitirá ter um sistema não apenas resistente à ameaça negacionista de Trump e da extrema-direita, mas também resiliente aos desafios impostos pelas mudanças climáticas, capaz de responder com mais celeridade à gravidade crescente dessa crise.
O enigma da liderança: saem EUA, entra quem?
A reforma do regime multilateral para o clima também seria uma oportunidade para os países saírem definitivamente da sombra dos EUA. O vai-e-vem da Casa Branca com o multilateralismo climático – ora interessada, ora desinteressada – deixou o sistema refém da boa vontade do presidente de turno. Manter a estrutura política atual, sem qualquer mudança, é manter essa relação de dependência (que já foi maior no passado, mas ainda persiste, especialmente no que tange a questões financeiras).
Em 2017, quando Trump tirou os EUA do Acordo de Paris, os países da União Europeia e a China se posicionaram como lideranças alternativas nas negociações multilaterais sobre clima. A despeito das promessas de Bruxelas e Pequim de seguir esse mesmo caminho em 2025, o contexto político e econômico atual é bem diferente daquela época e pode complicar o cálculo estratégico dessas capitais.
A União Europeia é a “bola da vez” da sanha destruidora da extrema-direita. Países como Hungria e Itália são governados por partidos extremistas, enquanto Alemanha, Espanha e França estão assistindo à emergência de políticos populistas de extrema-direita, que ganham cada vez mais popularidade. Para complicar, o Big Tech se mobiliza para enfraquecer as regras europeias contra desinformação nas redes sociais, agora com apoio entusiasmado da Casa Branca de Trump.
Já a China ainda sente os efeitos da pandemia de COVID-19, iniciada no país há cinco anos. O baque econômico da crise foi significativo em vários setores, o que forçou medidas assertivas por parte do governo de Xi Jinping para evitar um forte desaquecimento. As metas para a redução da queima de carvão, por exemplo, foram abandonadas em prol da geração elétrica mais barata para evitar que as indústrias parassem sua produção.
O contexto geopolítico é outro fator complicador. A invasão da Ucrânia pela Rússia colocou a Europa em uma “sinuca-de-bico” energética, já que o fornecimento de gás fóssil russo acabou sendo interrompido por conta das sanções internacionais a Moscou. As tensões com o regime autoritário de Vladimir Putin seguem fortes e um possível reposicionamento dos EUA sob Trump na questão ucraniana pode deixar os europeus isolados no apoio a Kiev.
A volta de Trump também afeta a estratégia geopolítica da China, alvo predileto do novo presidente norte-americano. O republicano prometeu intensificar a guerra comercial com o gigante asiático, que já se prepara para novos episódios de tensão com Washington. Ao mesmo tempo, os chineses aproveitam a instabilidade internacional para reforçar seus interesses em torno de Taiwan, que teme virar uma “nova Ucrânia” com uma possível invasão do regime comunista de Pequim.
Por outro lado há um fator novo em 2025 que não existia em 2017 – o reposicionamento de algumas economias emergentes e em desenvolvimento no tabuleiro climático. O Brasil é um exemplo importante: há oito anos, o país era um ator tímido nessas negociações, decorrente do desinteresse do governo de Michel Temer. Esse desinteresse ganhou ares patológicos entre 2019 e 2023, na gestão do ex-presidente (e negacionista climático) Jair Bolsonaro.
Hoje, sob o comando do presidente Lula, o Brasil retomou – ao menos no discurso – sua pretensão de liderança internacional nas negociações climáticas. Sede da próxima COP30, que acontecerá em Belém (PA) em novembro, o país se esforça para consolidar uma imagem proativa nessa arena, com foco em ações efetivas para a proteção das florestas e o impulsionamento da transição energética.
Na mesma linha, a Colômbia de Gustavo Petro também despontou com um discurso de liderança climática nos últimos anos. O discurso anti-combustíveis fósseis de Bogotá ganhou a simpatia de vários grupos ambientalistas e de ativistas climáticos. A proteção da floresta amazônica e dos povos indígenas foi um dos pontos altos da COP15 da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica, realizada no ano passado em Cali.
A ação climática para além de Trump
A volta de Trump deixou claro que a onda populista dos anos 2010, que teve como um de seus marcos a primeira passagem dele pela Casa Branca, retomou a força perdida durante a pandemia. O que antes podia ser visto como uma aberração, hoje é a regra na política partidária em vários países democráticos. Com as gigantes de tecnologia se alinhando aos interesses autoritários do novo presidente norte-americano, a ameaça de novos retrocessos (inclusive na seara climática) é muito maior do que na década passada.
No plano doméstico, o embate com a extrema-direita exigirá uma reinvenção das forças democráticas de direita, centro e esquerda. Esses grupos precisarão pensar em estratégias, meios, mensagens e políticas que consigam “quebrar o encanto” do eleitorado com os extremistas e a frustração da população com a política tradicional. O “mais do mesmo” não será suficiente para superar a crise.
Essa reinvenção também precisa acontecer no plano internacional. Insistir na manutenção do multilateralismo tradicional, em um cenário no qual ele não traz resultados tangíveis, é a receita para a destruição desse sistema pelo extremismo de direita.
Se quisermos de fato manter e fortalecer a ação climática global, precisaremos repensar a forma como ela é discutida, definida e implementada. Somente isso dará a ela a resiliência necessária para responder à crise do clima e resistir ao desmonte negacionista.
Não será uma tarefa simples. Mas, definitivamente, não temos mais como adiá-la.
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*Bruno Toledo Hisamoto é especialista em política climática internacional do Instituto ClimaInfo.
Imagem: André Carrilho