A batalha da liberdade de expressão. Por Luis Felipe Miguel

Com uma mão, a direita empunha a bandeira da liberdade de expressão; com a outra, silencia quem discorda dela.

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Donald Trump voltou à presidência abraçado aos comandantes das big techs, cujo mantra é, mais do que nunca, a liberdade de expressão irrestrita. Qualquer tentativa de controle contra a disseminação de mensagens inverídicas e maliciosas é apresentada como a violação do direito humano mais fundamental.

Não é algo desinteressado, obviamente. A liberdade de expressão é defendida como se fosse algo que está igualmente ao alcance de todos. Mas não está: o alcance de cada discurso é radicalmente diferente de acordo com os recursos de que se dispõe.

Se eu minto, posso prejudicar meia dúzia de pessoas à minha volta. Mas se essa mentira conta com o endosso de influenciadores, com o impulsionamento das plataformas, com dinheiro de publicidade, com um exército de bots, aí ela pode atingir milhares ou milhões de pessoas, mudar o resultado de eleições, comprometer todo o tecido social.

Criaram-se espaços que substituem os meios de comunicação tradicionais, mas que estão despidos dos mecanismos mínimos de responsabilização aos quais esses meios deviam se reportar.

O discurso em defesa da irrestrita liberdade para mentir é adotado por aqueles que lucram com ela: os chefes da extrema-direita, aqueles que vivem de enganar os incautos (de coaches a empresa de apostas) e os patrões das grandes plataformas sociodigitais.

Ao mesmo tempo, Trump iniciou o seu governo anunciando várias medidas que comprometem o exercício da liberdade de expressão. Da censura à arquitetura que não seja “clássica” em prédios públicos à proibição de que cientistas discutam seus trabalhos com colegas ou com o público.

Nas plataformas é a mesma coisa. No Twitter, pode tudo, menos aquilo que incomoda Elon Musk. Nas redes de Zuckerberg, o conteúdo antissionista é severamente coibido, na forma seja de sua pouca circulação, seja até mesmo de banimento.

O problema é que hoje a esquerda está mal situada para defender a liberdade de expressão, que, no entanto, foi historicamente um valor defendido pelos dominados.

É a liberdade de falar contra os poderosos, os ricos, os chefes religiosos.

Veio de posições progressistas a defesa deste direito. E também, em seguida, a luta para que as vozes subalternas tivessem espaço nos meios de difusão de mensagens: o entendimento que não basta abolir a censura estatal, mas é preciso combater também a censura empresarial.

Ou, dito de outra forma, de que não basta a liberdade de expressão como direito negativo (ausência de censura), é necessário também acesso ao debate público.

Mas, infelizmente, uma parte significativa do campo progressista se rendeu à ideia de que o caminho é vetar discursos, coibir a manifestação de diferenças, para proteger “identidades” que são simultaneamente tão poderosas (determinam completamente quem somos) e tão frágeis (são abaladas por um punhado de palavras).

Isso está errado como princípio – a liberdade de expressão precisa ser incorporada como um dos valores da esquerda. E está errado como tática política também. Cada vez que abrimos brechas na defesa da liberdade de expressão, estamos pavimentando o caminho para sermos nós os censurados.

Hoje, a recusa do debate, a negação do argumento científico e a crença na superioridade do conhecimento obtido por meio da experiência direta não são exclusividades da direita. Sua versão à esquerda assume a forma de valorização de vozes subalternas, o que se inspira em percepções críticas sobre os modos dominantes de produção do conhecimento e sobre a universalização espúria de um ponto de vista europeu, branco e masculino, mas se banalizou – e ganhou corpo nas batalhas digitais – como uma série de exclusivismos e exclusões organizada em torno da noção fluida de “lugar de fala”.

De uma denúncia de certo idealismo racionalista, que postula uma Razão descarnada capaz de interpretar o mundo permanecendo fora dele, chega-se à compreensão de que estamos presos em nossas experiências e somos incapazes de trocas verdadeiras com os outros.

Seria possível ver aí uma reflexão sobre a condição humana essencial, na esteira de Jean-Jacques Rousseau, que observava que entre as ideias e os sentimentos de uma pessoa e outra pessoa se interpõe, sempre, a linguagem. A tradução da experiência na linguagem, necessária para o esforço de comunicação com o outro, impõe “um filtro que me obriga sempre a dizer mais e menos do que aquilo que sinto”, como escreveu André Gorz.

Essa leitura mais generosa fica interditada porque o foco não é a solidão originária de toda consciência humana, mas o grupo. Somos plenamente transparentes dentro do grupo de pertencimento, definido em geral por raça ou sexo e gênero (ou, no identitarismo de direita, também por nacionalidade e religião), mas completamente opacos para os estranhos a ele.

O que se coloca, então, é a absoluta impossibilidade de qualquer diálogo fora do grupo de pertencimento. Aquilo que de início remetia a construções sociais opressivas, que estruturavam vivências diferenciadas para integrantes de diferentes grupos, ganha ares místicos com a crescente popularidade de noções como “ancestralidade” ou o apelo a um “feminino” inerentemente conectado com o mundo natural, na esteira de Luce Irigaray e outras pensadoras.

Ainda que se volte a aceitar que a questão é estrutural, restam alguns pressupostos questionáveis. O primeiro é que a experiência do grupo é tanto perfeitamente compartilhada com os outros integrantes quanto completamente incomunicável aos estranhos. O segundo é a presunção de que o integrante do grupo, por sua própria vivência, tem clarividência sobre sua situação. O terceiro é que qualquer olhar externo sobre a vivência ou sobre os mecanismos de opressão sofridos por aquele grupo é sempre agressivo, ofensivo, ameaçador ou, no mínimo, inconveniente e inútil.

Eles impõem uma impossibilidade de diálogo. Aos externos, isto é, àqueles que não participam do grupo, a única opção possível é uma solidariedade subserviente e a reafirmação permanente de sua própria culpa pessoal.

É assim que se transita facilmente de uma afirmação razoável, empiricamente demonstrável (numa sociedade racista, todo branco, de uma maneira ou de outra, é beneficiado, assim como todo homem numa sociedade sexista ou todo heterossexual numa sociedade homofóbica) para a denúncia infalsificável de que “todo branco é racista” – infalsificável porque a simples tentativa de negar o “fato” já conta como confirmação. A primeira afirmação permite solidariedade, diálogo e ação conjunta; a segunda, apenas manifestações ritualizadas de mea culpa.

De Marx e Engels indicando que as ideias dominantes são as ideias da classe dominante a Simone de Beauvoir escrevendo que na sociedade patriarcal as mulheres são obrigadas a significar suas vidas por meio de consciências alheias, sempre há compreensão de que a consciência crítica não está disponível a não ser por meio de um trabalho de desconstrução de discursos dominantes e de produção coletiva de novas percepções. É isso que a leitura ingênua do “lugar de fala” desconsidera.

Assim, fica garantida a inviolabilidade das percepções espontâneas dos integrantes do grupo. Nada que venha de fora pode merecer atenção, muito menos desestabilizar as convicções já arraigadas.

Isto alimenta o anticientificismo que contamina boa parte destas percepções, que se traduz no veto ao debate e à pesquisa científica. Ou dados de pesquisas são ostentados quando reforçam as crenças do grupo, mas refutadas in limine e silenciadas quando as contradizem ou introduzem maior complexidade às questões.

Um exemplo é a campanha de cancelamento contra o prof. Richard Miskolci, um dos principais estudiosos da diversidade sexual no Brasil, por ter ousado questionar a pertinência da categoria “cisgênero”. Tentaram demiti-lo da instituição em que trabalha, sofreu assédio moral nas redes, seu nome foi cortado da tradução de um livro estrangeiro em que era citado – em vez de aceitarem que o debate é legítimo e precisa ser travado.

Verdade: a liberdade de expressão é um pé no saco. Significa que a gente tem que ouvir com um monte de gente dizendo besteira – que paçoca é ruim, que Miles Davis não é o maior jazzista de todos os tempos, que cachorros são mais espertos do que gatos, que Bebê Rena era um bom seriado – e nem podemos bater nelas.

Mas é como dizia Rosa Luxemburgo: a liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente.

Cabe à esquerda defender a liberdade de expressão, buscando meios transparentes de impedir abusos e, sobretudo, não esquecer que seu objetivo é ampliar o acesso ao debate público, não distribuir poderes de veto a mais grupos.

 

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