Aula inaugural do curso de Filosofia da Universidade Estadual de Campinhas (IFCH-Unicamp), ministrada em 27 de fevereiro de 2025
Quando recebi este convite, tive um misto de sentimentos. Por um lado, uma alegria infindável de poder dar uma aula inaugural, sabendo da importância e da marca que ela exerce na vida do jovem estudante. Por outro, tive receio por estar vivendo num mundo que se esfacela e cujas garantias para a formação estão à revelia de trocas de governos. A formação se tornou um item supérfluo numa sociedade do consumo e da concorrência generalizada. Então, fazer filosofia voltou a ser, para o bem e para o mal, a escolha por um modo de vida.
Que fique claro: a filosofia nunca foi uma mera profissão mais ou menos segura, mesmo com Kant e com a universidade alemã, ela sempre teve a ver com algo existencial. Ela também nunca esteve numa posição confortável, é verdade — Espinosa polia lentes para garantir seu sustento; Galileu, aos 45 anos, ainda lutava por melhores condições de subsistência, até que se deparou com a luneta e fez comércio dela para poder comer melhor.
Eu quero dizer que é importante, de saída, o estudante de filosofia confrontar os desafios que virão. E os nossos são muitos: o neofascismo se espalha pelo mundo globalizado, as guerras aparecem como saídas para a manutenção do mesmo mundo, e todos nós estamos desnorteados com a velocidade em que as ruínas se produzem. Os nossos desafios enquanto estudantes de filosofia são muitos.
Eu me incluo entre os estudantes de filosofia porque, muito embora tenha doutorado (iniciando um pós-doc este ano) ainda sou muito jovem para ser considerado filósofo. Pelo menos, de acordo com o que diz Platão na sua República. Para Platão, o tempo mínimo cabível para o exercício filosófico são trinta anos. O aspirante precisa primeiramente adquirir conhecimentos profundos em geometria, ser esmerado em ética, conhecer a lógica e a física. Só depois dos 30 anos, pode ser iniciado no exercício dialético, com o prejuízo de que antes dessa idade ele seja vencido pela efervescência juvenil. Então, só após os 50 anos, ele finalmente termina a formação filosófica.1
Inicio por Platão não por acaso, pois realmente quero demonstrar a vocês algo que sempre me fascinou: a diferença que temos em relação ao tempo. O tempo de formação é um tempo fundamental ao aspirante à filosofia. Numa sociedade acelerada como a nossa, todavia, essa formação está em risco. De modo que a escolha pela filosofia significa escolher um modo de vida: a luta por um outro tempo, por uma outra forma de relação com o espaço, é fundamental ao estudante de filosofia.
Parto dessa conclusão porque novamente parece se abrir um horizonte muito perigoso marcado pelo ódio à inteligência. O anti-intectualismo já é uma verdade, independentemente da posição política. E isso não é novo na história contemporânea. Volto a lembrá-los de algo tenebroso, mas com lições evidentes. Durante a Guerra Civil Espanhola, as falanges fascistas deram o primeiro grito de “morte à inteligência!”
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Miguel de Unamuno. Reprodução Wiki.
O anti-intelectualismo e o fascismo
Num auditório mais ou menos como este, repleto de estudantes que, disputando o espaço, se acotovelavam com milícias fascistas, o reitor da Universidade de Salamanca — o filósofo e poeta Miguel de Unamuno — resolveu enfrentá-los. Eu gostaria que vocês usassem agora a imaginação para voltar àquele auditório: Era um debate protagonizado por fascistas que tinham tomado a universidade. Professores, antigos amigos de Unamuno, haviam se convertido ao fascismo, e naquele momento inclusive o acusavam de “vermelho”.
Millan-Astray, fundador da Legião Estrangeira Espanhola e braço direito de Francisco Franco, gritou: “!Viva la muerte!”, depois que outro professor, Francisco Maldonado, amigo de Unamuno (pelo menos era nisso que ele acreditava), criticou o nacionalismo basco, “que descreveu como ‘câncer da nação’, que precisava ser curado com o bisturi do fascismo”. Percebam: eram falas fascistas num auditório repleto de fascistas armados. Foi quando Unamuno interveio: “Todos vocês esperam as minhas palavras”, disse e prosseguiu. “Vocês me conhecem e sabem que sou incapaz de ficar em silêncio. Às vezes o silêncio é mentir. Pois o silêncio pode ser interpretado como concordância.”
Então, num tenso auditório tomado por fascistas armados que apontam para o seu rosto, Unamuno não silencia e diz tudo o que pensa sobre Millan-Astray, que replica: Morte à inteligência! Viva a morte!2 Naquele mesmo dia, os fascistas só não lincharam Unamuno porque ninguém menos que a mulher de Franco impediu. Mas ele morreria seis semanas depois, deprimido e amaldiçoado como traidor por seus pares.
Vocês podem sugerir que essa realidade está afastada de nós. Que evidentemente isso ocorreu no século passado como uma anomalia da sociedade burguesa. Se a gente, porém, suspende essa crença e faz um exame mais detalhado daquilo que permeia nossa vida cotidiana, a gente vai concluir que não estamos tão distantes assim.
Agora, eu quero chamar a atenção para a noção de “Morte à inteligência”. Bem, me parece que, na era da conectividade virtual, a reflexão demorada e a crítica são vistas com desconfiança. Se a capacidade crítica sempre se relacionou à possibilidade de se distanciar; se a reflexão sempre se relacionou à parada e ao silêncio; com a passagem à era da flexibilidade — na qual se tem que estar disponível para o mercado 24 horas por dia, 7 dias por semana —, ter tempo para abrir um livro parece um privilégio. A ideia de “formação” muda. Ela se reduz a uma vaga noção de estar apto à vida a partir de uma educação moldada às necessidades do estudante enquanto consumidor, e da sociabilidade como um mercado.
Qualquer busca por raciocínios ou conceitos elaborados passa a ser vista como excesso de “elitismo deslocado da vida real”. Importa agora se tornar inteligível às massas, acostumadas com a linguagem publicitária. É nesse quadro que será possível uma pergunta persistente nas redes sociais: “sua vó é capaz de entender sua tese?” Essa frase, que parece ser tão inclusiva, tão progressista, na verdade é só um desavergonhado elogio ao rebaixamento publicitário. É claro que a linguagem da ciência necessita da simplicidade, mas isso não condiz com um rebaixamento panfletário. Tornar ideias simples é, afinal, muito complexo.
Então, ao invés de lutarmos pelo tempo livre para que cada um possa desfrutar de coisas complexas, como entender a física quântica, ou interpretar um parágrafo de Fanon, lutamos por um didatismo rebaixado ao consumo, como se a vida humana fosse algo simples e pasteurizado. Ao invés de brigar para que o trabalhador deixe de ser precarizado em horários flexíveis, que no fim roubam todo o tempo de sua existência inviabilizando qualquer usufruto com uma atividade intelectual, passamos a culpar os intelectuais pela miséria de nossa vida. E mais uma vez abrimos inconscientemente caminho para os gritos de “morte à inteligência!”
Minha fala toma um rumo sombrio, eu sei, mas é só para alertar que muito embora tempestades se afirmem no horizonte, enquanto estudantes de filosofia que somos podemos tomar o exemplo de Unamuno e não silenciar. Não silenciar, porque o silêncio é mentir. E nosso compromisso é sempre com a verdade, por mais que ela seja ensaboada e escorra por entre os nossos dedos; ter a verdade como horizonte da prática filosófica é o fundamento da filosofia. Afinal, já dizia um velho russo: a verdade é sempre revolucionária.
Se a filosofia tem como uma de suas tarefas reposicionar os problemas, e não simplesmente resolvê-los, ela também é uma atividade perigosa que, para os adoradores da polícia, precisa ser contida. Mas, para entender essa atividade policial em torno da filosofia, a gente precisa voltar à sua pré-história.
Pré-história da filosofia
A matemática foi o passo inaugural para o desenvolvimento da própria noção de razão. No Oriente Médio, na China ou no Egito, o desenvolvimento das cidades e a necessidade do controle da produção ou do sistema de irrigação criou a possibilidade de um conhecimento que precisava estar correlacionado à verdade como resultado prático da experiência. A noção de verdade dependia da correspondência direta entre as ideias e sua aplicação.3
A abstração da matemática, unida à sua aplicação prática, tornou possível uma investigação que partisse da realidade, mas não se limitasse a ela. Se a matemática é a pré-história da filosofia, o princípio de abstração guiado pelo esforço racional não pode ser relegado a um lugar geográfico ou posto nas mãos de alguns homens. Há um grau de generalidade radical da razão como condição de possibilidade da filosofia. Estou falando de algo muito sério, estou me colocando contra a ideia de milagre grego.
Foram alguns pensadores europeus, imbuídos de predicados identitários e absortos em teorias racialistas do século XIX, que passaram a ignorar essa generalidade da razão e quiseram tornar a filosofia monopólio do Ocidente. Ora, eu gostaria de lembrar a vocês que quando hordas fundamentalistas cristãs invadiram a biblioteca de Alexandria, assassinaram brutalmente Hipátia e tentaram destruir os escritos filosóficos em 416 d.C., não fazia qualquer sentido falar em “Ocidente” e “Oriente”. Do mesmo modo, não fazia qualquer sentido para a Antiguidade a separação moderna entre filosofia da natureza e filosofia antropológica. Sim, quero afirmar algo que pode ser visto como escandaloso: o Ocidente, tal como o pensamos, é mais uma das invenções modernas feitas para a dominação. Mais uma vez: foi a colonização europeia que buscou privatizar também a riqueza cultural humana, construindo uma história das ideias incapaz de resistir a um exame sério.
E, com tudo isso, eu quero dizer também que o exercício filosófico é radicalmente anti-identitário. Mas o que significa dizer que a filosofia é radicalmente anti-identitária? Essa afirmação não pode ceder à ingenuidade de ignorar que a filosofia se tornou identitária. Afinal, como somos sempre ensinados: a filosofia aparece como uma disciplina de brancos, localizados num espaço territorial muito específico, e exercida majoritariamente por homens. Há algo mais identitário do que isso?
E se a gente assume essa questão, também precisaremos levar em consideração que o caráter revolucionário do exercício da dúvida filosófica foi e continua sendo policiado. Tornou-se discurso de Estado — e desde Kant, pelo menos.
Assim, a institucionalidade da filosofia tirou o filósofo da praça publica e o colocou sentadinho nos bancos da universidade. O filósofo se tornou um funcionário público. Quero dizer que nada há de errado em se tornar um funcionário público, mas acreditar que a filosofia possa ser limitada à carreira acadêmica talvez seja um erro. E quero dizer também que, ainda que a filosofia não se reduza à carreira acadêmica, ela não pode existir sem a academia. E isso é fundamental, esse tensionamento é fundamental. Eis a dialética do fazer filosófico.
Do que estamos falando então? De política. Se a filosofia é a destituição do saber “naturalizado”, levando à interrogação e à possibilidade racional de apreensão da totalidade, ela também é uma investigação que visa a gênese dos processos que organizam a realidade, buscando a universalização do saber que excede qualquer identidade.4 Partindo do particular e indo ao todo, o exercício filosófico não apenas diz respeito ao que é humano, como excede qualquer fronteira.
Já no berço da filosofia, a tensão entre o finito e o infinito está posta, assim como, é claro, a problematização sobre o princípio de tudo, que desloca toda a compreensão ordinária do senso comum para a explicação da natureza. Por isso, ao destituir o instituído como normal e normativo, a filosofia é sempre uma dor de cabeça para o poder constituído. E, portanto, precisa ser controlada.
Sim, o que estou afirmando é que há um processo de identitarização da filosofia, que não por acaso se radicaliza no século XIX. Paga-se mais ou menos bem ao filósofo, colocam ele sentadinho, celebram-no e o homenageiam para que permaneça quietinho. Capturado nessa camisa de força, reproduzindo o discurso da sagrada filosofia como um milagre surgido na Grécia Antiga, o aspirante se torna um cão de guarda. Na era da universidade como empresa e do saber como escala produtiva de papers, suas grandes expectativas se tornam ilusões perdidas. Logo, o aspirante a filósofo se torna amargo e desiludido. Evidentemente, esse não precisa ser o nosso destino.
É curioso como entender o identitarismo atual nos ajuda também a compreender como a filosofia deixou de ter um papel perigoso para se somar às forças de contenção pela ordem. Mas como se produziu o identitarismo? — Aliás, vim aqui hoje falar isso (risos).
O identitarismo
Os impérios europeus, ao produzirem a ideia de diferença como inferioridade, algo que tinha um papel fundamental à colonização, fizeram com que o indivíduo racializado passasse a ser visto como um humano em estado de potência, que deveria ser conduzida à plena humanidade por seus “mestres”. Aqui se produz uma identidade fechada. O negro é o negro, o indígena é o indígena e por aí vai…
Nesse essencialismo racial, que também projeta uma identidade no sexual, estabeleceram-se ligações de causalidade entre a racialização e o destino do racializado, entre o sexo biológico e seu destino anatômico. Aqui também o discurso científico é capturado e buscará explicar a situação depauperada dos racializados através do determinismo biológico, descartando o desenvolvimento histórico-social. Eis, a lição da história: a colonização europeia consolidou a definição de identidade necessária à expansão e ao controle mercantilistas, mantendo sob a sombra de seu ímpeto o patriarcalismo e o racismo.
Assim, a identidade tornou-se um recurso necessário para legitimar controles e assegurar a abertura de mercados baseados no tráfico humano e em produtos primários. Aos identitarizados restava a luta pela “cidadania”. Como a ideia de universalidade é abstraída da formalidade dos contratos, o sujeito de direito será encarnado na figura do citoyen (cidadão), que evidentemente não é o racializado das colônias, mas o proprietário da metrópole. Essa universalidade abstrata dos contratos, correlacionada ao embrião da mercadoria, organizará aos poucos os critérios para dela se apossar: a propriedade é a porta de acesso. Enquanto aquele que identitarizou o mundo se colocou no lugar do universal, àqueles identitarizados restou a crença na moeda como forma de tornar-se universal.
A questão é que, durante o período áureo da modernização, a fé na universalidade abstrata foi mantida, mas, com o ocaso da modernidade, a universalidade abstrata foi desmascarada, dando início a um novo modelo de gestão. É aqui que começa a nossa história. Ficou evidente que o sol não era para todos e que, portanto, era preciso demarcar critérios de exclusão e implementar mecanismos de contrainsurgência para manter os fluxos do mercado sem “estresses desnecessários”.
A novidade do século XXI é que, no estágio atual das forças produtivas — em que o capitalismo se torna um capitalismo de crise —, o identitarismo se reatualiza e passa a operar o horizonte da “política”. Reatualizada pelas crises no mundo do trabalho e da noção de progresso, a gestão identitária da diferença marca o novo quadro da relação entre a sociedade civil e o Estado. Uma vez que a crença de que a “humanidade realizaria todas suas potencialidades” caiu por terra, passou a ser necessária uma judicialização da política voltada às identidades como autorregulação.
Qual a tarefa da filosofia num quadro de mundo em colapso? Quais os caminhos que nos levam para fora dessa armadilha que a todo momento nos joga na cara os fantasmas do fascismo? Como romper com o circuito da mercadoria que, nesse momento, leva o mundo inteiro ao colapso econômico e ao abismo da crise climática?
Talvez uma das formas de levar em consideração essas questões seja problematizando-as e colocando-as em perspectiva filosófica. Isso requer que tornemos a filosofia perigosa de novo. Eu desejo, do fundo do meu coração, que vocês desejem isto tanto quanto eu: Não silenciemos jamais! Sigamos o exemplo de Unamuno!
Muito obrigado!
Notas
- Platão. A República. Tradução de Maria Helena Pereira da Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1987. ↩︎
- Antony Beevor. A batalha pela Espanha: a guerra civil espanhola 1936-39. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 58. ↩︎
- Howard Eves. Introdução à história da matemática. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011. ↩︎
- Alain Badiou. Théorie du sujet. Paris: Seuil, 1982. ↩︎
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