Trabalho escravo contemporâneo é marcado por obstáculos e omissões dos poderes públicos. Entrevista especial com Xavier Plassat

Vitor Necchi – IHU On-Line

No final de 2016, uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em relação ao Brasil estabeleceu um marco histórico, ao mesmo tempo em que expõe o país para a comunidade internacional. No dia 15 de dezembro, o Estado brasileiro foi condenado por não garantir a proteção de 85 trabalhadores submetidos à escravidão contemporânea e ao tráfico de pessoas, além de não ter assegurado a realização de justiça também para outros 43 trabalhadores resgatados desta mesma condição. “Os parâmetros definidos neste julgamento inaugural se tornam referência e, no futuro, formarão jurisprudência para situações e contenciosos semelhantes, no Brasil e nas Américas, especialmente para a definição do que deve ser considerado como responsabilidade e dever do Estado no enfrentamento à escravidão moderna e ao tráfico de pessoas”, avalia o frei dominicano Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra – CPT.

Como resultado da condenação, o Estado brasileiro deve retomar as investigações sobre o caso, adotar medidas para evitar que a prescrição seja aplicada ao delito de escravidão e reparar as vítimas pelos danos imateriais sofridos, por meio de indenizações a 127 trabalhadores e a uma trabalhadora. Em 2000, 85 trabalhadores foram resgatados, e cada um receberá 40 mil dólares por serem vítimas de trabalho escravo e tráfico de pessoas. Em razão da denegação de justiça, 43 trabalhadores resgatados em outra fiscalização, de 1997, receberão 30 mil dólares cada.

“O caso Brasil Verde é justamente emblemático por demonstrar como a incidência da prática do trabalho escravo contemporâneo foi e continua sendo marcada por obstáculos e omissões dos poderes públicos na responsabilização dos envolvidos e na reparação das vítimas, persistindo ainda profundos entraves à erradicação dessa grave violação de direitos fundamentais”, destaca Plassat em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

A condenação se deu em um momento delicado. “O cenário atual do país é de gritante agravação da pressão dos setores que há anos procuram flexibilizar os direitos dos trabalhadores, eliminando tudo aquilo que consideram ser entrave à livre exploração e à maximização da rentabilidade de seus empreendimentos”, denuncia Plassat.

Jean Marie Xavier Plassat é frade dominicano e coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), por meio da qual combate o trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Nascido na França (1950), graduou-se em Ciência Política em Paris em 1970. No ano seguinte, ingressou na ordem dominicana. Passou a morar e trabalhar no Brasil em 1989. Sua atuação contra o trabalho escravo, iniciada em 1997, fez com que recebesse a medalha Chico Mendes de Resistência, em 2006, e o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, em 2008.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importância da condenação por trabalho escravo que o Brasil recebeu da Corte Interamericana de Direitos Humanos?

Xavier Plassat – Por vários motivos, podemos considerar essa sentença condenatória como histórica e emblemática. Trata-se da primeira ocasião em que um contencioso relacionado à proibição da escravidão e da servidão (Artigo 6 da Convenção Americana) vem a ser julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que é o tribunal colegiado do sistema americano de direitos humanos. A Corte é formada por sete juízes indicados pelos países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Os parâmetros definidos neste julgamento inaugural se tornam referência e, no futuro, formarão jurisprudência para situações e contenciosos semelhantes, no Brasil e nas Américas, especialmente para a definição do que deve ser considerado como responsabilidade e dever do Estado no enfrentamento à escravidão moderna e ao tráfico de pessoas. A sentença publicada inclui um exame detalhado da doutrina internacional sobre o tema da escravidão contemporânea, feito à luz da jurisprudência das mais altas Cortes internacionais (entre elas a Corte Internacional de Justiça, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos e o Tribunal Penal Internacional), de maneira a chegar a uma formulação, atualizada e de amplo consenso, do que deve ser considerado como escravidão contemporânea.

Constitui um avanço histórico a responsabilização internacional do Estado – brasileiro, neste caso. Responsabilização focada nas seguintes condutas violatórias:

– violação ao direito a não ser submetido a escravidão e a tráfico de pessoas;
– violação às garantias judiciais de devida diligência e de prazo razoável;
– violação ao direito à proteção judicial;
– violação ocorrida no marco de uma situação de discriminação estrutural histórica em razão da posição econômica.

É fundamental a Corte ter apontado esta última violação, que foi ainda explicitada no voto fundamentado formulado pelo juiz Eduardo Ferrer Mac Gregor, membro da Corte. A situação de discriminação estrutural histórica se refere à posição econômica ocupada pelas pessoas vitimadas, submetidas a práticas de aliciamento e de brutal exploração tão recorrentes e tão conhecidas que chegaram ao extremo de ser consideradas como “normais”, embora – diz a Corte – devam ser analisadas como expressão de uma pobreza estrutural. Sabemos que essa situação nada mais é senão o produto do alijamento de determinados grupos sociais em relação aos seus direitos e às ações do Estado, e a consequência da omissão deste mesmo Estado em oferecer e executar políticas públicas que pudessem reverter essa situação.

Em termos de direito, ainda constitui um avanço fundamental, para o Brasil e para o continente americano, o reconhecimento pela Corte de que, no caso da Fazenda Brasil Verde, estiveram presentes simultaneamente o crime de escravidão e o crime de tráfico de pessoas. Tráfico de pessoas não pode mais ser entendido de forma restrita, como se fosse apenas relacionado à exploração da prostituição ou ao tráfico de mulheres. Assim costumava ser reduzido até a definição do Protocolo de Palermo (2000). Por sinal, com a promulgação da Lei 13.344/2016, o Código Penal brasileiro acabou incorporando essa mudança, no (novo) artigo 149A.

A condenação do Brasil deve trazer efeitos concretos. O Estado brasileiro deverá retomar as investigações sobre o caso, adotar medidas para que a prescrição nunca venha a ser aplicada ao delito de escravidão e oferecer reparação às vítimas pelos danos imateriais sofridos. A sentença estipula o pagamento pelo Estado de indenizações pecuniárias para 127 trabalhadores e a uma trabalhadora. Além dos 85 resgatados durante a fiscalização realizada em março de 2000 (que receberão o equivalente de 40 mil dólares cada um), outros 43 trabalhadores, resgatados em uma fiscalização realizada em abril de 1997, terão direito a 30 mil dólares cada. A importância desses valores diz por si só a gravidade das ofensas sofridas por essas pessoas.

Um exemplo dos efeitos práticos da sentença Brasil Verde já temos na imediata atualidade: no dia 19 de dezembro de 2016, apenas quatro dias depois da publicação da sentença da CIDH, uma decisão liminar determinando ao ministro do Trabalho a publicação, no prazo de 30 dias, da Lista Suja do trabalho escravo foi proferida pelo juiz da 11ª Vara do Trabalho de Brasília, em atendimento à ação movida pelo Ministério Público do Trabalho contra a omissão persistente do atual ministro do Trabalho, em descumprimento da Portaria Interministerial 4/2016. Na decisão, o magistrado alerta contra “o retrocesso do Brasil nesse tema, [pois] para além do grave problema social interno, pode ensejar consequências outras no âmbito externo e perante as Cortes Internacionais, notadamente no delicado momento atual”. E complementa: “A abolição definitiva do trabalho escravo faz parte, há anos, de uma agenda permanente mundial fundada em norma imperativa do Direito Internacional, de caráter cogente (jus cogens). O Estado brasileiro acaba de ser responsabilizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, em recentíssima decisão (…). Pela proximidade com o tema tratado na presente ação, merecem transcrição os seguintes trechos da referida decisão da CIDH:

‘317. Além disso, a proibição de não ser submetido à escravidão possui um papel fundamental na Convenção Americana, por representar uma das violações mais fundamentais à dignidade da pessoa humana e, concomitantemente, de vários direitos da Convenção (par. 306 supra). Os Estados têm a obrigação de garantir a criação das condições necessárias para que não ocorram violações a esse direito inalienável e, em particular, o dever de impedir que seus agentes e terceiros particulares atentem contra ele. A observância do artigo 6, relacionado ao artigo 1.1 da Convenção Americana, não apenas pressupõe que nenhuma pessoa seja submetida a escravidão, servidão, tráfico ou trabalho forçado, mas também requer que os Estados adotem todas as medidas apropriadas para pôr fim a estas práticas e prevenir a violação do direito a não ser submetido a essas condições, em conformidade com o dever de garantir o pleno e livre exercício dos direitos de todas as pessoas sob sua jurisdição. (…)

322. A Corte estabeleceu que o dever de prevenção inclui todas as medidas de caráter jurídico, político, administrativo e cultural que promovam a salvaguarda dos direitos humanos e que assegurem que eventuais violações a esses direitos sejam efetivamente consideradas e tratadas como um fato ilícito o qual, como tal, é suscetível de gerar punições para quem os cometa, bem como a obrigação de indenizar às vítimas por suas consequências prejudiciais. Resta claro, por sua vez, que a obrigação de prevenir é de meio ou comportamento, e não se demonstra seu descumprimento pelo mero fato de que um direito tenha sido violado. (…)’.

Vale mencionar que esse foi o primeiro caso decidido pela CIDH sobre escravidão e tráfico de pessoas, o que acabou por colocar a República Federativa do Brasil no “banco dos réus” do plano internacional. Nesse cenário, revela-se ainda mais preocupante a omissão atacada, pois sinaliza um retrocesso injustificado no trato do tema em uma quadra da história em que o Estado brasileiro deveria, em resposta à condenação que lhe foi imposta, redobrar os esforços em busca da extinção definitiva do trabalho escravo em seu território, o que pressupõe a adoção de todas as medidas de “caráter jurídico, político, administrativo e cultural” necessárias, a abarcar a publicação, tal como previsto na referida Portaria, do Cadastro de Empregadores”.

IHU On-Line – Essa decisão se refere a uma fiscalização realizada em 1997 e outra em 2000. Nestes 20 anos, qual a situação verificada? Já houve mudanças em relação à realidade do trabalho escravo no Brasil?

Xavier Plassat – Uma precisão necessária: o fato de a Corte ter limitado sua apreciação a essas duas fiscalizações se deve ao chamado “marco temporal” que delimita a competência da CIDH no ponto de vista do Brasil, enquanto réu nesta ação. Em dezembro de 1998, quando reconheceu a competência da Corte Interamericana, o Brasil ressalvou que a Corte não poderia tratar dos fatos violatórios anteriores a esta data. O caso de 1997 não foi tratado como tal (mais um caso de flagrante trabalho escravo), mas pela violação persistente do direito à realização da justiça que suas vítimas sofreram até hoje. Mas deve ficar claro que os fatos que originaram a denúncia internacional do Brasil tiveram início pelo menos em 1988, com uma primeira denúncia recebida pela CPT [Comissão Pastoral da Terra] sobre prática de trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde e sobre o desaparecimento de dois adolescentes que teriam tentado fugir. A essa denúncia se seguiram outras 11 denúncias em anos subsequentes, as quais suscitaram um total de seis fiscalizações de órgãos públicos na mesma fazenda (em 1989, 1993, 1996, 1997, 2000 e 2002) e ocasionaram o resgate de mais de 300 trabalhadores ao longo de 14 anos.

O caso Brasil Verde é justamente emblemático por demonstrar como a incidência da prática do trabalho escravo contemporâneo foi e continua sendo marcada por obstáculos e omissões dos poderes públicos na responsabilização dos envolvidos e na reparação das vítimas, persistindo ainda profundos entraves à erradicação dessa grave violação de direitos fundamentais.

Nesses 20 anos (1997-2017), muitos passos foram dados, inclusive em consequência de outra ação movida na OEA pela CPT e pelo CEJIL [Centro pela Justiça e o Direito Internacional]: o paradigmático Caso José Pereira [1], iniciado em 1994, que resultou em Acordo de Solução Amistosa, assinado em 2003 pelo governo brasileiro. Este compromisso internacional constituiu um separador de águas na política brasileira de combate ao trabalho escravo.

Desde meados da década de 1990, em função da denúncia no Caso José Pereira e de várias cobranças dirigidas à OIT [Organização Internacional do Trabalho] e à ONU [Organização das Nações Unidas] (pela CPT, pela OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e pela Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura]), o Brasil havia iniciado um processo de reconhecimento da escravidão moderna, passando a criar estruturas e mecanismos inovadores para a sua erradicação. Entre elas, podemos citar: a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel em 1995, que atua de forma sigilosa e centralizada, apurando as denúncias de trabalho escravo; a atribuição do benefício do seguro-desemprego especial aos resgatados do trabalho escravo; o lançamento do 1º Plano Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e do 2º Plano em 2008; a instituição da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) em 2003, seguida pela criação sucessiva de várias Coetrae (comissões estaduais; hoje já são 16); a celebração do Pacto Nacional (das empresas) pela Erradicação do Trabalho Escravo, em 2005; a aprovação de instrumentos modernos adaptados à realidade do trabalho escravo, como o Cadastro de Empregadores flagrados com trabalho escravo (“Lista Suja”); leis estaduais e federais vedando contratos e licitações públicas com empresas envolvidas em trabalho escravo; leis estaduais e até municipais cassando o registro de contribuinte de empregadores infratores etc.

Com base nas características concretas do trabalho escravo encontradas pelo Grupo Móvel de fiscalização, o Congresso Nacional atualizou em dezembro de 2013 a definição legal do trabalho escravo, que consta no artigo 149 do Código Penal, identificando quatro condições que o caracterizam, de forma alternativa ou cumulativa: condições degradantes de trabalho, que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador; jornada exaustiva, em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga; trabalho forçado, em que a pessoa é mantida no serviço através de fraudes, isolamento geográfico ou ameaça e violência; e servidão por dívida, em que a pessoa é forçada ilegalmente a contrair uma dívida e trabalhar para pagá-la.

Com isso, obviamente, houve mudanças importantes: o trabalho escravo saiu da invisibilidade (proporcionada pelo negacionismo anterior) para aparecer na luz do dia. A TV e a imprensa passaram a mostrar relatos de resgate e imagens das condições degradantes infligidas a trabalhadores, inicialmente na Amazônia e, aos poucos, em todas as regiões do país. Além da CPT e seus parceiros imediatos [2], várias entidades e instituições entraram em campanha e se qualificaram neste enfrentamento: o Ministério Público do Trabalho, particularmente atuante, com sua coordenação especializada, a Conaete [Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo], e sua participação sistemática em todas as fiscalizações; o Ministério Público Federal, com contribuição mais efetiva depois de reconhecida, em 2007, a competência da Justiça Federal para julgar o crime do artigo 149; a Defensoria Pública, com incipiente porém crescente atuação na defesa das vítimas; a Organização Internacional do Trabalho (OIT), com programa específico de cooperação neste campo no Brasil; a ONG Repórter Brasil, com sua agência de notícias, suas pesquisas de cadeias produtivas e seus programas educativos; a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], promotora, em 2014, de uma Campanha da Fraternidade sobre o tema [3], entre outras.

Quanto à realidade do trabalho escravo verificada no Brasil durante estes anos, digamos que ela se revelou um pouco mais diversificada e mais complexa que o “padrão” inicialmente observado na Amazônia, sobretudo a partir do início do regime militar: um padrão associado ao avanço do capital e da fronteira agrícola sobre a floresta, com farto recurso à mão de obra braçal aliciada nos estados do Nordeste para desmatar e formar pastos em grandes propriedades ou, aproveitando a madeira de segunda, para produzir carvão destinado à produção de ferro-gusa em Marabá, no Pará, ou Açailândia, no Maranhão. O trabalho escravo se revelou uma prática frequente nas terras do agronegócio da cana, da soja, do algodão e do café. Nessas atividades – digamos de trabalho rural – que foi encontrada, entre 2003 e 2016, a grande maioria das situações de trabalho escravo: 2.710 dos 3.053 casos e 42 mil dos quase 48 mil trabalhadores identificados como escravos neste período. Dois em cada três casos foram encontrados na Amazônia, mas apenas 47% dos trabalhadores foram libertados nesta região. Nestes 14 anos, o número de fiscalizações realizadas na Amazônia caiu de uma média inicial de 150 por ano para somente 82 em 2016. Paralelamente houve uma ampliação da fiscalização do trabalho escravo para todo o território nacional, porém com um efetivo de auditores fiscais em constante redução. Neste período, 9.995 pessoas foram encontradas em condição análoga à de escravo na Região Sudeste e 2.610 na Região Sul, contra 9.553 no Nordeste, 10.924 no Centro-Oeste e 14.757 no Norte. Nos últimos três anos, o número médio de estabelecimentos fiscalizados por ano, em todo o Brasil, apresentou forte recuo, com poucas exceções: Rio de Janeiro, Minas Gerais, Ceará, Amazonas, São Paulo e Tocantins.

Foi neste contexto que chegamos ao “descobrimento” de situações de trabalho escravo em “novas” atividades e localidades até então tidas como imunes a esta praga ou simplesmente carentes de fiscalização: cerca de 3 mil libertados na construção civil, 550 na confecção e outros 2 mil em comércios e serviços diversos.

Desde o começo da década de 1990, a quantidade de auditores fiscais do trabalho (AFT), que havia chegado ao teto histórico de 3.464 AFTs em 1996, caiu gradativamente, chegando a um mínimo histórico de aproximadamente 2,5 mil, caracterizando-se um déficit atual de 1.144 AFTs, somente considerando as vagas não preenchidas (estimativa do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho – Sinait). Déficit ainda bem superior, se considerarmos o total necessário de 8 mil AFTs, apontado por um estudo do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada]. Em complemento às operações conduzidas pelo Grupo Móvel central, cerca da metade das operações são realizadas por equipes regionais, mas várias unidades regionais do Ministério do Trabalho consideram inviável atuar na fiscalização do trabalho escravo com efetivos tão diminutos.

IHU On-Line – Por que se passou tanto tempo? Onde o trâmite se mostrou moroso?

Xavier Plassat – De fato, é impressionante pensar que a sentença Brasil Verde é o desenlace de uma ação iniciada em… 1998! O trâmite no sistema americano de direitos humanos tem seus ritos próprios: a primeira instância é a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que recebe as denúncias e atua um pouco como promotora de Justiça, instruindo o caso, pedindo informações às partes envolvidas, procurando – quando possível – promover solução “amistosa” e, finalmente, na ausência de solução alternativa, levando o caso para a segunda instância, a de julgamento, que é a Corte Interamericana.

Na fase de instrução, o Estado brasileiro atendeu de forma caótica aos pedidos de informação da Comissão Interamericana e perdeu a oportunidade de negociar uma possível solução amistosa. Finalmente, em novembro de 2011, a CIDH emitiu seu Relatório de Admissibilidade e Mérito, com as recomendações pertinentes. O relatório, bem detalhado e bastante severo, terminava oferecendo ao Estado uma última chance para, mediante um compromisso a ser negociado com os peticionários, evitar que o caso fosse levado para a Corte Interamericana. A CPT e o CEJIL concordaram em tentar a construção do acordo sugerido pela comissão, o qual deveria se ater às nove recomendações formuladas pela CIDH. As mesmas diziam respeito a: reparar adequadamente as violações de direitos identificadas; investigar os fatos relacionados e as responsabilidades envolvidas; estabelecer mecanismos de identificação e localização das vítimas; implementar políticas públicas e medidas legislativas para erradicar o trabalho escravo; adotar mecanismos para sanar lacunas na coordenação entre investigação, persecução e sanção, especialmente no plano penal; adotar medidas de prevenção.

Transcorreram quase dois anos de negociação. No final de 2013, quando já estava concluída a minuta final do acordo, com 21 cláusulas, incluindo medidas importantes visando fortalecer as políticas públicas de combate ao trabalho escravo, o Estado brasileiro, de repente, se retirou da negociação [4] e informou que iria cumprir unilateralmente as recomendações da CIDH. Mas não fez. Ao todo, a Comissão Interamericana ofereceu dez extensões de prazo a pedido do Estado para que pudesse cumprir as recomendações que, por fim, nunca foram efetivadas. Finalmente, em 4 de março de 2015, a Comissão Interamericana submeteu o caso à Corte Interamericana, para julgamento. Duas audiências foram realizadas, em fevereiro de 2016, em San José da Costa Rica, sede da Corte, e, em maio, em Brasília. Ao longo desses anos, foram encaminhadas as petições pertinentes e, em 20 de outubro de 2016, a Corte proferiu sua sentença, tornando-a pública em 15 de dezembro. Foram ouvidos vários peritos, testemunhas e, como representantes das vítimas, cinco trabalhadores do interior do Piauí, principal estado de origem dos mais de 300 trabalhadores que, em pelo menos dez ocorrências, chegaram a ser explorados entre 1988 e 2002, em condição análoga à de escravo na fazenda Brasil Verde (situada no município atual de Sapucaia, no Pará, e então propriedade do grande pecuarista João Luiz Quagliato).

IHU On-Line – A condenação deve-se ao fato de o Estado brasileiro não garantir a proteção de 128 trabalhadores submetidos à escravidão contemporânea e ao tráfico de pessoas. O senhor acredita que ela terá um impacto educativo?

Xavier Plassat – Um impacto educativo e também dissuasivo, isso é bem provável. Essa sentença chega em boa hora na presente conjuntura política do país. Ao acatar a decisão da Corte, imediatamente após a sua publicação, a secretária especial de Direitos Humanos do governo federal, Flávia Piovesan, presidente da Conatrae, disse entender que a Corte Interamericana é o legítimo intérprete da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e exerce um “papel de grande relevância na proteção dos direitos humanos na região”. Certo, seria difícil por parte do Estado afirmar o contrário. A secretária acrescentou “que a sentença da Corte IDH, não obstante condenatória ao Estado brasileiro, representa uma oportunidade para reforçar e aprimorar a política nacional de enfrentamento ao trabalho escravo, especialmente no que se refere à manutenção do conceito” legal de trabalho escravo definido pelo artigo 149 do Código Penal Brasileiro, “assim como em relação à investigação, processamento e punição dos responsáveis pelo delito”. Precisamos ainda confirmar o alinhamento desta posição com a do governo como um todo. Quem entre os ministros assinaria o pacto federativo para a erradicação do trabalho escravo, de iniciativa da Secretaria de Direitos Humanos, lançado em cerimônia realizada no Conselho Nacional de Justiça, em 13 de dezembro passado, já aprovado por 19 governos estaduais? Além do compromisso de colaborar no combate ao trabalho escravo, instituindo Coetrae e elaborando plano de erradicação, consta neste pacto o engajamento de “dar apoio político à defesa do atual conceito de trabalho escravo, tal como definido no art. 149 do Código Penal”.

O julgamento e a publicação da sentença do Caso Brasil Verde ocorreram em meio a uma disputa acirrada, levantada há alguns anos no Congresso pela bancada ruralista e por representantes de grandes empreiteiras, contra o conceito legal de trabalho análogo a de escravo em vigor no país desde 2003 (Art. 149 do Código Penal). Sob o pretexto de regulamentar a Emenda Constitucional 81 que prevê o confisco de propriedades onde for flagrada a prática do trabalho escravo, um dispositivo aprovado em 2013, mas até hoje carente de aplicação, esses lobbies pretendem desfigurar a definição do trabalho escravo, retirando-lhe suas principais características contemporâneas: a negação da dignidade e da livre determinação da pessoa, negação conseguida por meio da imposição de condições sub-humanas de trabalho (as chamadas condições degradantes e a jornada exaustiva). Aprovada essa mudança, o trabalho escravo voltaria à sua invisibilidade.

Antes mesmo deste ano de 2016 e da decisão da Corte no Caso Brasil Verde, os anos anteriores já haviam suscitado muitas dúvidas quanto ao futuro do combate ao trabalho escravo no Brasil. Recordemos: 2014 encerrou com a suspensão da Lista Suja dos empregadores flagrados por trabalho escravo, medida decretada liminarmente pelo presidente do Supremo Tribunal Federal a pedido de grandes construtoras, e, desde então, a lista deixou de ser publicada pelo Ministério do Trabalho, muito embora tenha sido revigorada por nova portaria interministerial [5] lançada nos últimos dias do governo Dilma com a anuência da presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia. O final do ano de 2015 apresentou um verdadeiro tiroteio por parte de setores do Congresso fortemente articulados (as famosas bancadas BBB: bala, boi, bíblia) contra a política brasileira de combate ao trabalho escravo: no seu foco, já estava e permanece até hoje o rebaixamento da definição do trabalho escravo, bem como a liberação total da terceirização.

IHU On-Line – O governo do presidente Michel Temer já manifestou alguma posição em relação ao combate do trabalho escravo? O que se pode esperar dele?

Xavier Plassat – A repercussão internacional da condenação e as cobranças logo dirigidas ao Estado foram amplas e imediatas. Deu manchete no jornal El País já no dia 17 de dezembro: “Eram escravos no Brasil e não sabiam, agora o mundo todo ficou sabendo”; na BBC, no dia 22 de dezembro: “Por que Brasil parou de divulgar ‘lista suja’ de trabalho escravo tida como modelo no mundo?”; no The Guardian, neste 9 de janeiro: “Brasil deverá pagar US$ 5 milhões a trabalhadores mantidos escravos em fazenda de gado”. Na mesma semana da publicação da sentença, apoiando-se na decisão da Corte Interamericana – a qual reconhece explicitamente o pioneirismo da legislação brasileira nesta área -, a Justiça do Trabalho deu 30 dias para o ministro do Trabalho voltar a publicar a Lista Suja do trabalho escravo.

Neste contexto, tendo a considerar que ficará um pouco mais complicado para o governo Temer dar seguimento a esses funestos projetos de retrocesso no combate ao trabalho escravo, especialmente quanto à extinção da Lista Suja e à redução do conceito legal de trabalho escravo. Na argumentação dos seus detratores, o conceito do artigo 149 CPB [Código Penal Brasileiro] não teria clareza e por isso provocaria “insegurança jurídica”. Eles alegam que “jornada exaustiva” e “condições degradantes” são expressões genéricas, de interpretação subjetiva, e pretendem eliminar esses caracterizadores na definição do trabalho escravo (veja o Projeto de Lei da Câmara 3842/12, do ex-deputado Moreira Mendes, que visa alterar a redação do art. 149 CPB, e o Projeto de Lei do Senado 432/2013, do senador Romero Jucá, que procura instituir uma definição específica, diversa da do art. 149, para efeito de regulamentação da Emenda Constitucional 81 que determina o confisco da propriedade onde for flagrado trabalho escravo).

Por duas vezes, no final de 2015 e início de 2016, o PLS 432/2013 passou perto de ser submetido à votação dos senadores, em regime de emergência. A tentativa só foi barrada pela forte mobilização da sociedade e a participação de destacadas figuras nacionais, a exemplo de Wagner Moura, ou internacionais, como o indiano Kailash Satyarthi, prêmio Nobel da Paz.

Importante frisar que o Escritório das Nações Unidas no Brasil lançou, em abril de 2016, um documento sobre o combate ao trabalho escravo no país mostrando que, apesar dos avanços no âmbito das políticas brasileiras para erradicação do trabalho escravo, muito mais precisa ser feito. E sinaliza grande preocupação perante o atual questionamento do conceito legal de trabalho escravo, o qual considera “como uma referência legislativa para o tema, [estando] em consonância com as Convenções [da OIT]”. “O Brasil se destacou em um cenário contemporâneo onde o termo ‘trabalho escravo’ perpassa a noção de mera ausência de liberdade, para refletir também aquilo que é sonegado aos trabalhadores com tamanha exploração: sua condição de seres humanos, dotados de sonhos e esperanças”.

O cenário atual do país é de gritante agravação da pressão dos setores que há anos procuram flexibilizar os direitos dos trabalhadores, eliminando tudo aquilo que consideram ser entrave à livre exploração e à maximização da rentabilidade de seus empreendimentos: liberação incondicional da terceirização das relações de trabalho; preponderância do negociado sobre o legislado na efetivação dos direitos; redução da definição legal do trabalho escravo; fragilização da inspeção do trabalho, tanto quantitativamente quanto qualitativamente. Em resumo: abrindo a porta ao recrudescimento do trabalho escravo que essa precarização do vínculo trabalhista potencializa.

Neste contexto, afinadas inclusive com as posições formuladas pela Corte da OEA, as recomendações formuladas pelo Escritório da ONU no Brasil resumem de forma adequada os anseios da sociedade civil e de todos os setores empenhados na erradicação efetiva do trabalho escravo [6].

IHU On-Line – Em qual governo houve uma atuação mais decisiva no combate à escravidão contemporânea?

Xavier Plassat – Desde 1995, os presidentes sucessivos têm considerado o combate ao trabalho escravo como uma política de Estado, não uma bandeira partidária, não uma política de um governo apoiado por X ou Y. Isso tem sido fundamental para conseguirmos avançar, apesar de tantos percalços. Por outro lado, uma coisa é uma política explícita de combate ao trabalho escravo, outra é garantir a coerência do conjunto de políticas públicas em torno deste objetivo. Ora, várias vezes, as ações de um setor do governo contradizem as ações de outro setor: isso fica claro quando olhamos, por exemplo, como são tratadas as comunidades tradicionais ou os territórios indígenas, ou a questão florestal, ou a política agrícola, ou ainda os grandes projetos hidrelétricos: o rastro de desestruturações e de acentuadas vulnerabilidades.

Não existe uma resposta simples à sua pergunta. Qual seria o critério a ser usado? O número de libertados naquele período? Os instrumentos normativos criados? Os orçamentos empenhados? As ações destinadas a prevenir o trabalho escravo ou a “reparar” os danos entre as vítimas? É muito limitado examinar essa questão apenas pelos números: 740 libertados por ano no tempo de Fernando Henrique Cardoso; 4.171 no primeiro mandato de Lula; 4.671 no segundo mandato de Lula; 2.286 no primeiro mandato de Dilma; e 834 na sequência. São vários fatores envolvidos e não se pode confundir os números com a fotografia de um fenômeno por definição invisível, como é o trabalho escravo.

Podemos lamentar as oportunidades perdidas: o plano de erradicação do trabalho escravo construído pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário/Instituto Nacional de Colonização e Reforma AgráriaMDA/Incra, logo jogado no lixo; a criação de mecanismos efetivos de contratação lícita de mão de obra rural; a efetiva inclusão de pessoas resgatadas do trabalho escravo em programas de inserção, acesso a terra e cidadania; a implementação real de mecanismos como o confisco de propriedades de escravagistas; a integração do combate ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo, e deste com o combate à destruição ambiental; a condução de uma ação penal à altura da gravidade deste crime etc.

Sob qualquer governo, tenho o sentimento que foi determinante a aliança forte que foi se construindo entre sociedade civil e setores do Estado, nos três poderes e nas regiões: a atuação conjunta que resultou foi fundamental para impedir retrocessos e garantir novas conquistas. Ah! Saudade do senador José Néry e da Frente Parlamentar Mista pela Erradicação do Trabalho Escravo! Assim devemos continuar atuando no novo contexto político, tão repleto de ameaças e inquietações.

Se, por um lado, é lamentável ter que chegar a uma sentença condenatória para assegurar que a luta contra o trabalho escravo seja estimulada a continuar, por outro lado, é muito oportuno, nesta conjuntura política específica, que o Brasil perceba que continuará sendo monitorado pela comunidade internacional para que, no combate ao trabalho escravo, o país não deixe de ser a referência à qual chegou a ser identificado pela comunidade internacional.

IHU On-Line – A palavra “escravo” remete a uma realidade aparentemente superada. O que caracteriza e mantém o trabalho escravo no mundo contemporâneo?

Xavier Plassat – Realidade superada? Não é exatamente a opinião dos juízes que examinaram o caso Brasil Verde e a prática dos principais países nessa matéria. Eles aproveitaram inclusive para nos deixar um legado bem claro sobre o que devemos entender por escravidão moderna. Para a Corte, a categoria de escravidão, histórica e universalmente, remete ao exercício sobre alguém dos chamados “atributos do direito de propriedade”, quais sejam: “Restrição ou controle da autonomia individual; perda ou restrição da liberdade de movimento de uma pessoa; obtenção de um benefício por parte do perpetrador; ausência de consentimento ou de livre arbítrio da vítima ou sua impossibilidade ou irrelevância devido à ameaça de uso da violência ou outras formas de coerção, o medo de violência, fraude ou falsas promessas; uso de violência física ou psicológica; posição de vulnerabilidade da vítima; detenção ou cativeiro; exploração” [7].

Segundo a Corte, a escravidão possui um caráter pluriofensivo: é uma agressão a vários direitos da pessoa. Isso ficou bem claro na Fazenda Brasil Verde. Na fiscalização de 2000, que encontrou trabalhadores em situação de escravidão, verificou-se que eles foram aliciados por um ‘gato’ no interior do Piauí e viajaram durante dias em ônibus, trem e caminhão até chegarem à fazenda. Suas carteiras de trabalho foram confiscadas e assinaram documentos em branco. As jornadas de trabalho eram de 12 horas ou mais, com um descanso de meia hora para almoçar e apenas um dia livre por semana. Na fazenda, eles dormiam em galpões com dezenas de trabalhadores em redes, sem eletricidade, camas ou armários. O teto era de lona. A alimentação era insuficiente, de péssima qualidade e descontada de seus salários. Eles se adoentavam com frequência e não recebiam atenção médica. O trabalho era realizado sob ordens, ameaças e vigilância armada. Segundo a Corte, houve “violação à integridade e à liberdade pessoais (violência e ameaças de violência, coerção física e psicológica dos trabalhadores, restrições da liberdade de movimento); os tratamentos eram indignos (eram degradantes as condições de habitação, de alimentação e de trabalho); havia também limitação da liberdade de circulação (restrição de circulação em razão de dívidas e do trabalho forçado exigido)”. Em seu conjunto, foram estes os “elementos constitutivos da escravidão no presente caso” [8]. “Foi constatada a existência de trabalho exaustivo, condições degradantes de vida, falsificação de documentos e a presença de menores de idade” [9].

Na oportunidade, a Corte rejeitou o argumento então apresentado pelo Estado – e hoje corriqueiramente apresentado por aqueles que defendem uma revisão para baixo do conceito legal brasileiro de trabalho escravo – “de que o tipo penal do delito de redução à condição de escravo do artigo 149 do Código Penal brasileiro seria muito amplo” – um argumento usado ainda na vigência da formulação anterior à alteração introduzida em 2003 pelo legislador – “supostamente incorporando figuras não contempladas no Direito Internacional” [10]. E observou que “se um país adota normas que sejam mais protetoras à pessoa humana, como se poderia entender a proibição da escravidão no ordenamento jurídico brasileiro a partir de 2003, o Tribunal não poderia restringir sua análise da situação específica com base em uma norma que ofereça menos proteção”.

“Finalmente, a Corte [observou] que a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil se encontra em consonância com o pronunciamento da Corte Interamericana no presente caso. As decisões apresentadas durante este litígio demonstram que o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e o próprio STF interpretam as situações análogas à escravidão de maneira responsável, deixando claro que uma mera violação à legislação trabalhista não atinge o limiar da redução à escravidão, mas é necessário que as violações sejam graves, persistentes e que cheguem a afetar a livre determinação da vítima”.

Estes são afirmações fundamentais para se discutir a atualidade do trabalho escravo no Brasil, seu conceito legal, e as formas de combatê-lo. Sempre que uma pessoa for tratada “pior que animal”, no dizer de muitos trabalhadores que fugiram daquela situação, sempre que for tratada como se coisa fosse, tirando-lhe a capacidade de exercer de fato sua liberdade real (não somente formal), teremos que referir essa situação à condição “análoga” à de escravo.

IHU On-Line – Em que atividades ele é mais verificado no Brasil?

Xavier Plassat – Em 2016, os setores de atividade afetados por trabalho escravo foram majoritariamente rurais: 70% dos casos, 72% dos resgates, com predominância na pecuária (214 libertados entre: AC, AM, BA, GO, MA, MG, MS, MT, PA, PR, RO, RR, TO), na cultura do café (100; MG, BA e PA), na exploração da madeira (68; MG, PA, PI, MT, MS, SC), no extrativismo vegetal (60; PI, MG), no carvão vegetal (45; PI, MS). Nas atividades não agrícolas, predominou a construção civil (70; AM, BA, CE, MA, MG, PA, SP), comércio e serviços (115; AM, BA, CE, GO, MT, PA, RJ, RS, SP). Na confecção foram encontrados dois casos, em SP (20 libertados). Os estados com mais estabelecimentos fiscalizados foram PA, MG, MT, RJ, TO, BA, PR, totalizando 135 fiscalizações; nos estados do PA, MA, MT e TO, o número de fiscalizações realizadas em 2016 está entre 40% e 60% abaixo da média dos 13 anos anteriores.

IHU On-Line – O que favorece esse tipo de exploração dos trabalhadores? Aumento do desemprego? Fiscalização pouco eficaz? Atuação predatória de grandes corporações e fazendeiros?

Xavier Plassat – O trabalho escravo continuará possível enquanto continuar existindo oferta e procura para esse tipo de exploração, sem mais nem menos. Temos grupos sociais que, em virtude de discriminações estruturais históricas – como bem explicitou a Corte Interamericana –, estão amarrados e presos em um verdadeiro ciclo vicioso: sem saída, a não ser a partir de políticas públicas estrategicamente focadas para enfrentar as vulnerabilidades que foram se acumulando em sua história. Temos empregadores que só entenderão a necessidade de respeitar o direito da pessoa que trabalha quando sentirem doer no bolso ou na sua própria liberdade. Temos uma sociedade que precisa curar sua cegueira e/ou abandonar a criminosa indiferença.

IHU On-Line – Trata-se de um fenômeno regionalizado ou ocorre em todo o país?

Xavier Plassat – A tabela abaixo apresenta a situação.

IHU On-Line – O ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski suspendeu em 22 de dezembro de 2014 o Cadastro de Empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à de escravo Contemporâneo, que relaciona empregadores flagrados e multados por manterem trabalhadores em situações próximas da escravidão. A decisão foi revogada pela ministra Cármen Lúcia em maio de 2016, mas, mesmo assim, o Ministério do Trabalho não retomou a divulgação do documento. Em 19 de dezembro, a Justiça do Trabalho determinou, em caráter liminar, que o ministério retomasse a publicação em até 30 dias. A lista tem sido eficaz no combate ao trabalho escravo?

Xavier Plassat – A admiração suscitada na comunidade internacional pela existência da Lista Suja e a força da ofensiva armada contra ela em certos meios empresariais do Brasil, um tanto defasados, são por si só confirmação da sua real e temível eficácia. Afinal este mecanismo funcionou sem nunca ser interrompido, de novembro de 2003 a dezembro de 2014, e tem gerado resultados que vários países invejam ao Brasil. O principal deles é de ter tornado possível a construção de um mapa do trabalho escravo visualizando quem usa, quem vende, quem compra, quem lucra com ele, e criando assim a possibilidade para o consumidor, o cidadão, o produtor, o Estado – todos lesados em alguma parte por este crime – de tomar suas atitudes: não comprar, não vender, não financiar, não bancar. Uma força considerável que encontrou eco em algumas iniciativas de ética e responsabilidade empresarial, que são importantes ressaltar. Não se trata apenas de “social washing”, mesmo se, claro, isso também aconteça. Hoje a problemática das cadeias produtivas se tornou uma ferramenta de primeira importância no combate ao trabalho escravo. Justamente porque não apela somente para princípios éticos, mas também para uma mínima observância das regras do jogo nos mercados e na gestão de riscos. Afinal, quem busca o custo zero na exploração da mão de obra não fere apenas – embora principalmente – as pessoas que vêm explorando, mas prejudica os empregadores que continuam se pautando nas regras estabelecidas. Trata-se de uma forma covarde de dumping social.

Vamos apostar que a Lista Suja voltará a ser publicada. Desde quando quebrar o termômetro melhora o estado do paciente? Miriam Leitão foi lúcida, corajosa e feliz ao afirmar, em comentário recente: “É o crime que tem que ser combatido, não a lista!”.

IHU On-Line – Como é a sua rotina de combate a este crime?

Xavier Plassat – Morando no interior do Estado do Tocantins, participo desde 1997 das iniciativas da Comissão Pastoral da Terra, especialmente na Campanha Nacional “De Olho Aberto para não Virar Escravo”, hoje presente nos principais estados afetados pelo trabalho escravo rural. Procuramos, com nossas equipes de campo, agir de forma estratégica, sem nos descolar da realidade vivenciada na base pelos trabalhadores rurais que nos procuram, e integrar essa luta às lutas mais amplas por terra, território e direitos. Agir localmente e pensar globalmente, segundo os ensinamentos de nosso mestre Pedro Casaldáliga. “Glocalmente.”

Mobiliza-nos a acolhida deste senhor que chegou à CPT, indignado e machucado, para encaminharmos sua denúncia; nos angustia saber se vai ou não ser atendida pela fiscalização; nos preocupa o que será feito após o resgate dos seus companheiros; nos frustra o passo lento das políticas públicas para assumir essas questões; nos anima o empenho de vários servidores públicos motivados e corajosos que encontramos nas Coetraes e na Conatrae; nos interessa conhecer a experiência de outros grupos que atuam nessa frente mundo afora; nos encoraja o insistente chamado do papa Francisco, militante de longa data no combate ao tráfico humano, para “globalizar” o cuidado, aprender a misericórdia e manter visão integral do ser humano e da criação. Neste exato momento, preparamos um novo programa que, esperamos, poderá responder melhor aos desafios do momento. Chama-se “Raice”: Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão.

NOTAS

[1] José Pereira, um adolescente de 17 anos de idade, foi escravizado na Fazenda Espírito Santo, também localizada no Estado do Pará: ele e outros 60 companheiros trabalhavam sob vigilância armada, eram trancados no barracão na hora de dormir e possuíam dívidas impagáveis decorrentes da compra de produtos inflacionados. Na tentativa de fuga, José Pereira foi perseguido, alcançado e alvejado pelos capatazes: o fugitivo foi atingido no olho, fingiu-se de morto para despistar os algozes, conseguiu sobreviver e pediu socorro à Comissão Pastoral da Terra.

A demora na responsabilização criminal dos envolvidos e a ineficácia e o desinteresse do aparato estatal na recomposição dos bens jurídicos lesados fizeram a CPT levar o caso para instâncias externas. Primeiro caso de trabalho escravo rural denunciado no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, este caso foi determinante para que o Estado brasileiro reconhecesse a existência do trabalho escravo no país, possibilitando a celebração de um acordo de solução amistosa em setembro de 2003. Os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro naquele momento impulsionaram a adoção de importantes medidas de enfrentamento, inclusive a implementação do 1º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Mesmo assim, o acordo ainda hoje segue pendente de integral cumprimento.

Em carta dirigida à CIDH (em janeiro de 2012), os peticionários têm reconhecido “a importância das ações realizadas pelo Estado brasileiro desde então, inclusive o lançamento do 2º Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, em setembro de 2008”. Contudo, constataram que “medidas particularmente sensíveis previstas nesse 2º Plano ainda não foram concretizadas, enquanto a exploração de trabalho escravo segue como uma prática recorrente e amplamente utilizada no Brasil. Algumas causas estruturais que permanecem intocadas sustentam a manutenção desse quadro. A omissão do Estado na reforma legislativa, falhas na coordenação das diversas instâncias públicas, a ausência de políticas consistentes de reinserção dos trabalhadores resgatados ou de prevenção dos trabalhadores em risco de aliciamento, e a impunidade dos perpetradores, por exemplo, acabam por fomentar práticas como a intermediação e o aliciamento fraudulentos, a submissão a condições desumanas de alojamento e de trabalho e a imposição de restrições à liberdade e à integridade pessoal dos trabalhadores”.

[2] Particularmente o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Cármen Bascarán – CDVDH-CB, em Açailândia, Maranhão.

[3] Fraternidade e Tráfico Humano.

[4] Ao aceitarem a sugestão de acordo feita pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a CPT e o CEJIL se pautavam na possibilidade de conseguir com maior celeridade uma reparação em favor das vítimas e, sobretudo, de discutir e acordar, de forma atualizada, vários mecanismos que pudessem ajudar a sanar problemas que, até hoje, emperram a efetiva erradicação do trabalho escravo, principalmente na fase do “pós-fiscalização”: os resgatados do trabalho escravo são devolvidos aos seus ambientes de origem, sem mais nem menos, e ali reencontram as mesmas condições que geraram sua desgraça; os infratores não sofrem sanção penal ou patrimonial à altura do crime praticado.

Esses problemas poderiam ser superados mediante a consolidação de instrumentos já em vigor e por meio da adoção de novos mecanismos de articulação das políticas públicas (do MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário], do MDS [Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome], do MEC [Ministério da Educação]), os quais, idealmente, deveriam ser iniciados desde o momento do resgate; também mediante o estabelecimento de rotinas de atuação conjunta por parte dos fiscais, policiais e procuradores atuantes na fiscalização, que possam garantir a coleta de provas adequadas. De maio de 2012 a dezembro de 2013, foram realizadas laboriosas sessões de negociação, às quais foram convidadas várias instituições, além da SDH/PR [Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República]: TEM [Ministério do Trabalho e Emprego], MDA, MDS, MRE [Ministério das Relações Exteriores], MPT [Ministério Público do Trabalho], PGR [Procuradoria-Geral da República], PF [Polícia Federal], AGU [Advocacia-Geral da União]. Quase todas as propostas debatidas foram de iniciativa dos peticionários e acabaram gerando consenso entre as partes, em torno de mecanismos e rotinas inovadores.

[5] Ministério do Trabalho e Secretaria Especial de Direitos Humanos.

[6] São oito recomendações formuladas pela ONU ao Brasil:

1. A manutenção, pelo Poder Legislativo, do conceito atual de “trabalho escravo”, previsto no Código Penal Brasileiro (Art. 149), por estar em consonância com os instrumentos internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil, a exemplo das Convenções Nº 29 e Nº 105 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, e a consequente rejeição de propostas legislativas que tenham por objeto reduzir a abrangência conceitual do crime;

2. A reativação do Cadastro de Empregadores flagrados explorando mão de obra escrava, comumente reconhecido por “Lista Suja”, por ser um instrumento de transparência, controle social e propulsor da responsabilidade social empresarial;

3. O fortalecimento e o incremento da carreira da inspeção do trabalho, indispensável ao enfrentamento ao trabalho escravo;

4. O fortalecimento de programas de referenciamento e assistência às vítimas atualmente existentes, por meio de criação de políticas públicas específicas, integradas e efetivas;

5. A investigação, julgamento, punição e execução das sentenças condenatórias de maneira célere e efetiva pelo Sistema de Justiça Criminal, tendo em vista que a impunidade ainda é um dos fatores que favorecem a existência do crime;

6. A ratificação da Convenção sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das Suas Famílias.

7. A observância aos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos por parte do Estado e empresas, principalmente através do fortalecimento do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo;

8. A ratificação do Protocolo Adicional à Convenção Nº 29 da OIT.

[7] Cf parágrafo 272 da Sentença Brasil Verde.

[8] Cf parágrafo 306 da Sentença Brasil Verde.

[9] Cf parágrafo 310 da Sentença Brasil Verde.

[10] Cf parágrafo 308 da Sentença Brasil Verde.

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