O Brasil saudoso do passado propõe um golpe: Jogar a Constituição no lixo, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

Você já parou para pensar o que faz com que alguém afirme que vivemos uma ”ditadura dos direitos humanos” ou do ”politicamente correto” num país racista, machista, homofóbico e preconceituoso como o nosso? Em que a existência de diferenças não é tolerada por muita gente?

Pelo menos se vivêssemos uma situação de pleno cumprimento dos direitos fundamentais, em que pessoas não fossem vítimas de agressões simplesmente por serem quem são, e no qual indivíduos e grupos fossem devidamente punidos por incitar a violência e cometer crimes de ódio, poderíamos até entender esse discurso dodói. Para, depois, celebrar o fato dele vir de uma minoria.

Mas a realidade é outra. Não apenas nas relações sociais do dia a dia, mas na forma como o Estado brasileiro e seus operadores tratam os que mais precisam dele: em grande parte das vezes, com desprezo.

Não temos sido competentes para por em prática a garantia da dignidade humana que está prevista na Constituição Federal, seja pela falta de regulamentação, seja pelo não cumprimento da letra escrita.

Promulgada em 5 de outubro de 1988, ela não é perfeita, longe disso. Mas, olhando para trás, é incrível como, ao menos, os legisladores conseguiram que o respeito aos direitos mais básicos do ser humano estivesse presente no texto final como está.

O grande problema da Constituição não é estar ultrapassada., como afirmam alguns que temem que ela saia totalmente do papel. Foi nunca ter sido efetivada.

Temos visto juristas, empresários e nobres políticos defendendo uma revisão profunda da Carta Magna para a remoção de determinados entraves que impedem o desenvolvimento desta nação. Leia-se como ”entraves” os instrumentos para proteger minorias, por exemplo, em nome de um suposto ”bem-estar” da maioria.

Não sei se é ignorância ou má fé de quem tem aspirações políticas e econômicas maiores e quer surfar com a falta de informação alheia, mas diariamente são questionadas cláusulas pétreas (que não poderiam ser mudadas nem que a vaca tussa) da mesma forma que se discute a cobertura da pizza da noite de sábado.

Liberdade, dignidade, função social da propriedade. Em nome das necessidades políticas e do mercado, tudo precisa ser adaptado.

As discussões mais amplas envolvendo o assunto versam sobre alterar a representação política e o processo eleitoral, incluindo aí seu financiamento. Ou o sistema tributário brasileiro, com a desoneração de algumas áreas. Na esteira desses debates, inserem-se outros.

Lobistas que sussurram nos corredores do Congresso Nacional, cutucam daqui e dali, visando a mudanças que diminuam a proteção ao trabalhador. Outros pressionam pela revisão das regras na área fundiária, reforçando a necessidade de se garantir o direito de propriedade mesmo sem função social. Isso sem contar os que querem alterações profundas para que a concentração midiática continue sendo um dos pilares de nossa democracia. Noves fora, grupos religiosos que sonham transformar o país em uma teocracia, proibindo a interpretação do Supremo Tribunal Federal a favor dos direitos já previstos em 1988.

E há aqueles que acreditam que o artigo 5o, sobre garantias fundamentais do ser humano, é um grande mimimi. Mal sabem eles que direitos humanos também incluem o direito de professar uma fé, abrir um negócio, ter uma casa, não ser agredido na rua, poder votar e ser votado, respirar ar limpo, não ser escravizado, viajar para fora do país e voltar, não passar fome, usar a internet sem ter suas mensagens lidas por estranhos.

E que o artigo 3o, que afirma que, além de garantir o desenvolvimento nacional”, também são objetivos fundamentais da República ”construir uma sociedade livre, justa e solidária”, ”erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdade sociais e regionais” e ”promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, é um libelo comunista.

No atual contexto, e por mais profunda que seja sua crise de legitimidade, ninguém foge da democracia representativa. Nem a extrema esquerda, nem a extrema direita. E, por mais que a Constituição tenha virado uma colcha de retalhos, segue sendo de vanguarda em um país que, nem de longe, e apesar das conquistas, conseguiu efetivar direitos fundamentais.

A Constituição de 1988 foi um compromisso de equilíbrio, um pacto político que criou regras de convivência entre grupos e classes sociais após o fim da ditadura. O discurso de uma nova e abrangente Assembleia Constituinte, que vez ou outra volta com força ao Congresso, significa repactuar a sociedade. Mas para quê repactuar uma sociedade que não conseguiu colocar em prática o que propôs? E não por que não podia, mas porque não quis mexer com estruturas que garantem muito a poucos e pouco a muitos.

Seguimos diante dos desafios propostos por aquele texto sem a devida coragem de enfrentá-los. E não apenas isso.

Neste ano, em que a Constituição faz 29 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completará 69 anos. Muitos criticam a Declaração, afirmando que é um documento com uma visão por demais ocidental de mundo, que não traz respostas para uma ideia global de dignidade, coletiva e individual ao mesmo tempo. E não traz mesmo. Mas se, apesar dos avanços, Estados e sociedades ainda não conseguiram fazer com que grande parte do documento se transformasse em prática cotidiana, imagine-se como seria se não tivéssemos nem esse pacote mínimo para usar como referência.

O mundo, ainda em choque com os horrores da Segunda Guerra Mundial, produziu a Declaração. O Brasil, ainda olhando paras as feridas de 21 anos de ditadura militar, sentou-se para escrever uma Constituição. É depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que sofrimento igual nunca mais se repita. Desde então, não vivemos uma guerra como aquela entre 1939 e 1945, muito menos um período de exceção quanto 1964 e 1985.

Acabamos nos acostumando. E esquecendo. E banalizando.

A Constituição continua sendo norte e farol. Herdamos um texto da geração de meus pais e, agora, precisamos mostrar isso à de nossos filhos, sob o risco de que o espírito presente em 1988 se perca por desconhecimento da própria história.

O problema é que parte da geração que ajudou a escrever aquele texto esqueceu dos debates que levaram até ele, em nome da governabilidade. E tentaram enterrar a razão de ser do Estado brasileiro atrás de negociatas e corrupção. Para permanecer no poder ou para alcançá-lo.

Não precisamos reinventar todas as regras em uma Assembleia Constituinte ampla, que jogue espírito da Constituição Federal de 1988 no lixo. Precisamos tirar o que está lá do papel. E há demandas por reformas, desde que amplamente discutidas com a população e não feitas à toque de caixa como acontece hoje. Começando por uma Reforma Política, aí sim, por Assembleia específica (com pessoas eleitas que não tenham mandato parlamentar) a fim de tentar tirar a nossa democracia representativa da UTI. E por uma Reforma Tributária, que combata as desigualdades.

Dizem que o poder público não consegue por em prática os direitos previstos na Constituição por não ter recursos. Ironicamente, se a Constituição fosse seguida, incluindo os princípios de justiça social, o que inclui redistribuição, e de priorização de políticas aos mais vulneráveis, haveria mais recursos para efetivar os direitos. O povo, ao se tornar mais consciente de si e de sua cidadania, tem reivindicado que isso aconteça cada dia mais. Portanto, aos privilegiados, as regras precisam mudar para que tudo fique como está. E rápido.

Ainda há cidadãos com vontade e ética para essa boa briga ou estamos fadados a, de tempos e tempos, ficarmos com medo do futuro e dar meia volta em direção ao passado?

 

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