Mulheres também se queixam de violência policial

Duas mulheres queixam-se de ter sido agredidas pela polícia na linha de Sintra. Uma apresentou queixa, que está a ser investigada pelo Ministério Público. IGAI recebeu 730 queixas em 2016 contra agentes mas só nove tiveram como consequência uma pena

Por Joana Gorjão Henriques, no Público

Era um dia de Março de 2017 e Maria (nome fictício, como todos os outros desta história) estava em casa, na zona do Pendão, linha de Sintra. A vizinha bateu-lhe à porta: “Traga a identificação do seu neto, está ali a polícia.”

Diz ao agente que o neto tem apenas 13 anos. “Não quero saber, está metido no problema”, responde.

Maria insiste que o polícia não pode levá-lo, que o neto é menor. “Não fiz nada”, conta o rapaz à avó, “vinha a passar e a polícia meteu-me no canto”. O agente grita para Maria, acusa-a a ela, e às pessoas do seu bairro, de “só criarem delinquentes”. O diálogo aquece. O polícia empurra Maria, dá-lhe um golpe e a senhora cai. “Sou diabética. Não vejo, não me empurre.”

À terceira vez, uma sobrinha de Maria tenta defendê-la. Também cai ao chão e bate com a nuca no passeio, exactamente da mesma forma, com um golpe do polícia. Levanta-se. E o agente continua a empurrá-las. “Saiam daqui.”

Entretanto, na estrada, aparece outro agente, com outro jovem, Francisco. “Trouxeram o miúdo de rastos, parecia um cão, com as calças do joelho para baixo, só se viam os boxers.”

A sobrinha de Maria diz alto que aquilo “não vai ficar assim”, que “vai filmar”. Quando põe a mão na mala para tirar o telemóvel, o polícia puxa-o e atira-o para o chão. Empurra-a de novo, ela cai outra vez. “Você não vai filmar nada.” Começa a dar-lhe pontapés, na barriga e no peito. Agarra-lhe nos cabelos, arrasta-a. Põe-lhe o joelho na barriga e imobiliza-a, agarra no braço e torce-o. “Fica quieta sua puta, sua vaca”, grita o agente.

Depois de ameaçar apresentar queixa, a sobrinha de Maria é detida e levada para a esquadra de Queluz. O neto de Maria também é levado, acusado de ter roubado uma mota (os pais mais tarde irão buscá-lo). A sobrinha de Maria regressou ao Pendão às 4h30. Apresentou queixa. Maria não, porque não “tem saúde para andar a subir e descer para o tribunal”. “Isto é um acto de racismo, de raiva”, queixa-se ao PÚBLICO. “Não tinham motivo para fazer o que fizeram.”

Os dois jovens na história, um de 16 anos e outro de 17 anos, contam uma versão parecida. Mas não quiseram apresentar queixa por acharem que “não adianta”. A um tiraram as calças, e a outro os sapatos, acusam. Dizem também que foram violentados na esquadra, e alvo de insultos racistas. Os dois são acusados de roubarem a mota. “Devíamos contar com a polícia. Mas eu quero é estar longe deles. Mesmo que fosse culpado não deveriam agir assim, não deveria apanhar aquela porrada. Se eu fosse um ‘tuga’ não tinha acontecido”, diz António.

O caso está em investigação pela Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) que, por isso mesmo, não comenta. O Ministério Público abriu um inquérito. A PSP respondeu que tem conhecimento desta situação “e que se encontra em fase de processamento interno”.

Regularmente, adultos, jovens e crianças são atormentados pela polícia nos bairros sociais, acusa o sociólogo António Pedro Dores. “Quem pertence à classe média não tem ideia de que isto se passa”, comenta.

É em bairros de concelhos como Amadora e Sintra que é feito um policiamento apertado à população, analisa, um controlo que serve de exposição pública nas televisões para mostrar que a polícia intervém. Ao mesmo tempo, depois transmite a imagem de que as forças policiais têm medo de entrar nos mesmos bairros por causa de uma alegada perigosidade.

O advogado José Semedo Fernandes lembra-se, quando saía do já extinto bairro de Santa Filomena, na Amadora, onde viveu, de ser “empurrado” pela polícia para regressar para dentro. Sair em grupo significava ser parado pelos agentes. Também se recorda de, em tribunal, ser confundido com um arguido. “O papel que nos está reservado na justiça é o de arguidos…”, afirma.

Victor Sanches, 38 anos, morador na Cova da Moura, o fundador de um lugar que é uma biblioteca, uma tabacaria, um espaço de encontro e de debates que se chama Tabacaria Tropical, não tem nada a ver com este caso. Mas fala de medo da polícia. Ao longo de toda a sua vida viu várias rusgas, muitas marcadas pela ideia de “estado de excepção” a que ficam entregues bairros como aquele.

Sente que em Portugal um negro “é visto como um vilão”. Olha para a polícia como “um poder” com o qual não pode contar. “É um poder que não é meu.” Porque um negro da Cova da Moura “tem sempre que provar que é inocente” primeiro.

Já teve que correr. Já foi parado e deitado no chão em dias de chuva. Já teve que ser identificado num bar. Já perdeu a conta das interacções com a polícia. Uma das mais traumáticas aconteceu no Rossio, quando o quiseram revistar e ele recusou. Levaram-no para a esquadra e “obviamente que no caminho levei no focinho”. Ainda hoje incomoda-o falar do episódio.

Estas estão longe de ser situações excepcionais. A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) recebeu quase 880 queixas até 2016. Dessas, as que são contra as forças de segurança representam 12%.

Desde 2012 que a Amnistia Internacional registou 39 queixas envolvendo forças de segurança, sendo que 14 casos são de denúncias envolvendo uso excessivo ou desnecessário da força por parte da GNR e outras 16 envolvem a PSP. A IGAI teve 730 queixas em 2016 contra agentes das forças policiais, 255 de ofensas à integridade física, 137 de práticas discriminatórias, 60 de abuso de autoridade. Só nove tiveram como consequência uma pena.

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