Brasil mal educado

Por Luiz Eduardo Cani e Sandro Luiz Bazzanella, no Justiticando

Iniciemos com o famoso jargão economicista: “Educação é investimento”.

Outrora esta frase de efeito parecia ser consenso entre empresários, políticos, comunicadores e, até parte da sociedade brasileira autointitulada esclarecida. Porém, nos últimos meses parece que se tornou lugar comum expressão econômica inversa: “Educação é despesa”.  O remédio para a despesa é corte. Diminuição dos recursos. Precarização de serviço público vital ofertado pelo Estado à população brasileira. 

Educação – seja em âmbito formal ou informal – é o bem mais precioso que uma sociedade pode possuir. Educação é necessária e indispensável para a qualificação da visão de mundo de crianças, adolescentes, jovens e adultos. Promove a ação adequada dos indivíduos capazes de ler, escrever, interpretar e analisar as mais diversas situações presentes no seio de suas sociedades, desencadeando dinâmicos processos de desenvolvimento humano, social, político e econômico. 

A educação promove a cidadania, que pode se caracterizar pelo sentimento e, sobretudo, pelo zelo em relação ao espaço e aos bens públicos, pois compreende que são constitutivos do bem comum.  A observância e o cuidado do bem comum é a garantia da constituição de um mundo que acolhe a dignidade da vida humana e a vida em sua totalidade. Nesta direção, o apreço pela educação como movimento de conformação do mundo, em suas mais variadas formas encontra-se entre os homens das cavernas que há milhões de anos atrás fez inscrições (pinturas rupestres) nas paredes das cavernas. Registrou nosso ancestral primevo suas práticas cotidianas provavelmente com o intuito de instruir as jovens gerações, bem como as gerações vindouras.  Mesmo que este ensinamento cavernícola tenha chegado aos dias atuais parece que algumas sociedades e seus governantes não compreenderam suficientemente a mensagem.

Os cortes promovidos pelo atual governo na educação estão na contramão da trajetória da humanidade desde seus primevos tempos. Retrocesso. Disseminação da mediocridade. Deformação. Obscurantismo. Não há argumento social, político e cultural suficientemente compreensível para a voracidade com que são anunciados e executados tais cortes. Apenas compreende-se minimamente esta lógica se considerarmos que se trata de um governo a serviço de uma plutocracia financeirizada ávida por explorar bens e serviços públicos. Neste diapasão governamental e plutocrático educação é uma commodity. Há um público consumidor a disposição. Vender ensino de baixo custo desonerado da pesquisa e da extensão é um excelente negócio. Ademais esta commodity possui baixa exigência de investimento em marketing, na medida em que está no imaginário popular a percepção de que somente com “estudo” é possível ascender a melhores funções, a melhores salários e, por decorrência lógica, socialmente.

Para tornar mais claro o argumento vejamos a trajetória dos cortes, anunciada pelo governo como contingenciamento no ensino superior em 2019. O orçamento previsto da União para 2019 com investimento em ensino superior era de R$ 49,621 bilhões de reais. Em abril o Ministério da Educação anunciou o congelamento de R$ 1,7 bilhões dos gastos de 63 Universidades e 38 Institutos Federais, representando 24,84% dos gastos não obrigatórios, ou discricionários e 3,43% do orçamento total das referidas instituições.  As despesas não obrigatórias se dividem em duas categorias. A primeira categoria é o gasto com custeio, ou despesas correntes, entre elas: conta de luz, de água, de bolsas acadêmicas, insumos de pesquisa, compra de equipamentos para laboratórios e pagamento de funcionários terceirizados. A segunda categoria são as despesas de investimento, ou de capital, que são obras realizadas nas universidades, bem como compra de equipamentos.

O anúncio destes cortes foi grotescamente conduzido pelo atual ministro, que inicialmente (em 30 abril de 2019) anunciou a redução de verbas de três universidades: Universidade Nacional de Brasilia (UNB); Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal da Bahia (UFBA). Justificou tal atitude afirmando baixo desempenho acadêmico e científico de tais universidades, bem como promoção de “balbúrdia” nas referidas instituições. Após pressões e constrangimentos institucionais e sociais e ministro anunciou corte/contingenciamento de 30% das verbas das universidades públicas federais. No dia 9 de maio, em uma representação cênica, o ministro utilizou chocolates para justificar o corte/contingenciamento das verbas, errando o cálculo, talvez intencionalmente, para dizer que o corte de 30% representava apenas 3,5 chocolates dentre 100, ou seja, 3,5% do orçamento.

A tragédia dos cortes na educação superior continua avassaladora. Desde abril de 2019 até o presente momento foram bloqueadas 11.811 (onze mil oitocentas e onze) bolsas de pesquisa de doutoramento e pós-doutoramento pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Este corte representa uma economia de R$ 544 milhões aos combalidos e nada criativos cofres da União.[1]

A título de comparação dos cortes/contingenciamento na Educação Pública Federal, vejamos alguns outros números que incidem sobre os cofres públicos. O orçamento do poder judiciário para 2019 é de 49,9 bilhões de reais.[2]  O Congresso Nacional (Deputados e Senadores) custa aos cofres públicos R$ 10,8 (Dez vírgula oito) bilhões de reais.[3] CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da previdência concluído em 2018 demonstrou que a iniciativa privada devia à Previdência a soma de R$ 450 bilhões de reais.[4] O agronegócio deve aos cofres públicos mais de 17 bilhões de reais, mas os bancos públicos concederam descontos de até 95% do valor, a ser custeado pelo Tesouro Nacional, isto é, com os impostos pagos pela vilipendiada população brasileira.[5] 

Agora vejamos alguns números da educação superior de 2017. Naquele ano, o Brasil possuía 296 Instituições de Educação Superior (IES) públicas e 2.152 privadas. As instituições públicas se dividem em 41,9% estaduais, 36,8%, federais e 21,3%, municipais. Quase 3/5 das IES federais são universidades e 36,7% são Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) e Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets).[6] “A 5ª Pesquisa do Perfil Socioeconômico dos Graduandos das Universidades Federais, realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e divulgada neste ano, mostrou que, em 2018, 70% dos alunos de graduação em universidades federais vinham de famílias cuja renda é de, no máximo, um salário mínimo e meio per capita (menos de R$ 1.500 por mês, por pessoa). […] Em 2002, 500 mil pessoas faziam cursos de graduação em universidades federais. Hoje, são mais de 1,1 milhão. […] levantamento feito neste ano pelo diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), Carlos Henrique Brito, revelou que, dos estudos publicados pelas cem instituições de ensino superior do país nos últimos cinco anos, mais de 95% eram de universidades públicas. A participação delas na inovação também é extremamente relevante: de acordo com o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), das dez organizações brasileiras que mais depositaram pedidos de patentes de invenção em 2018, nove eram universidades”.[7]

Segue abaixo estrato com as dez melhores universidades brasileiras, retiradas ranking das melhores universidades brasileiras em 2018.[8]

Diante das informações e dos números expostos (e muitas outras estatísticas poderiam ser apresentadas) torna-se incompreensível do ponto de vista da economia popular e de um possível projeto de desenvolvimento social, político e econômico local, regional e nacional, a política de cortes e contingenciamentos do governo plutocrático de plantão. E não está em jogo aqui análises relativas a ausência de uma proposta estratégica de educação em seus mais diversos níveis inexistentes até o presente momento. 

A estratégia do atual (des)governo é desvincular os interesses sociais da esfera dos interesses de rentistas e investidores, ávidos por açambarcar o “mercado educacional” brasileiro e descomprometidos com investimentos em pesquisa e extensão. Trata-se de vender ensino sob as modalidades mais rentáveis possíveis, a baixo custo e, por decorrência lógica, de baixa qualidade.  É nesta direção que se pode compreender alguns aspectos do discurso oficial à opinião pública apresentando as universidades públicas como perdulárias dos recursos públicos. Promotoras de balbúrdia. Centros disseminadores da ideologia de gênero, de esquerda, de comunistas, socialistas, e tantas outras obtusidades e anacronismos característicos de desarrazoado governo em curso.

Ou dito de outra forma, trata-se de um desmonte da educação pública. Não se trata de uma reforma educacional para educar para as exigências do mercado de trabalho, senão simplesmente de transformar a educação numa commodity atrativa a investimentos especulativos.  Desnecessário dizer que a racionalização e a transparência na utilização dos recursos públicos é condição sine qua non na administração das Universidades Federais, bem como em todas as esferas da administração pública. O corte de bolsas, de fundos de financiamento para pesquisas e de insumos básicos. significa condenar a ciência brasileira ao definhamento, justamente num momento global de transição tecnológica e científica em que a pesquisa se faz urgente e necessária.  

Nesta direção, a parceria pública e privada no fomento à pesquisa e à inovação é bem-vinda e desejável, desde que a iniciativa privada compreenda que educação é bem público, cuja finalidade última é a afirmação do bem comum. Ou seja, educação requer investimentos em suas diversas fases e dimensões, cujo retorno se revela em médio prazo em desenvolvimento social e econômico de excelência, condição comprovada por inúmeros países asiáticos entre outros.  Estratégias públicas e privadas que desconsideram exigências educacionais de ordem civilizatória (reconhecimento do bem e do belo), reduzindo-a a mercadoria a ser ofertada em escala aos consumidores condenam sociedades inteiras à mediocridade, ao embrutecimento, ao analfabetismo funcional, ao subdesenvolvimento. 

Mais do que isto, este negligenciamento reproduz massas de indivíduos desprovidos de autonomia de pensamento e ação, presos ao  ethos  escravocrata que circunscreve a conformação da sociedade brasileira em seu percurso histórico. Desprovidos de autonomia, esperam pelo “messias”, pelo general, pelo salvador da pátria, pelo capital, pelo cabo, ou se não houve mais ninguém serve mesmo o soldado raso. Ainda nesta direção, reproduz levas de indivíduos loquazes, ventrículos e bufões a reverberar discursos desprovidos de consideração em relação ao permanente zelo pelo espaço público, pelo comum, construindo hábeis teorias da justificação daquilo que posteriormente se apresentará como farsa, ou mesmo como barbárie.

Educação é bem vital, pertencente a toda a sociedade brasileira. Façamos todos os esforços para evitar o incêndio e a queima também das universidades, fazendo evaporar a diversidade de pensamento, a criatividade inovadora advinda de pesquisa qualitativa e responsável.

Luiz Eduardo Cani é Advogado, Mestrando em Desenvolvimento Regional na Universidade do Contestado, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal, graduado em Direito pela Universidade Regional de Blumenau. Professor de Direito na Universidade do Contestado. 

Sandro Luiz Bazzanella é Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Educação e Cultura pela Universidade do Estado de Santa Catarina, graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Dom Bosco. Professor Titular de Filosofia na graduação e no mestrado da Universidade do Contestado.


Notas:

[1] https://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2019/09/corte-de-bolsas-deve-causar-fuga-de-cerebros-alerta-neurocientista/

[2] http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/87639-cnj-da-parecer-favoravel-a-proposta-orcamentaria-do-judiciario-para-2019

[3] https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/congresso-nacional-gasta-r-10-8-bilh%C3%B5es-por-ano-1.339706

[4] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/10/23/empresas-privadas-devem-r-450-bilhoes-a-previdencia-mostra-relatorio-final-da-cpi

[5] https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2018/05/economia/627360-governo-proibe-banco-publico-de-renegociar-dividas-rurais-de-r-17-bi.html

[6] http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/dados-do-censo-da-educacao-superior-as-universidades-brasileiras-representam-8-da-rede-mas-concentram-53-das-matriculas/21206

[7] https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2019/08/alvo-de-criticas-e-cortes-universidades-lutam-para-mostrar-sua-importancia.html

[8] http://ruf.folha.uol.com.br/2018/ranking-de-universidades/

Manifestação de 30 de maio de 2019 em Porto Alegre. Foto: Carol Ferraz/Sul21

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