Ganhadora do Jabuti, freira trabalhou como educadora no sertão durante anos de chumbo
Por Guilherme Freitas, em O Globo
RIO – Nos anos 1970, a freira Maria Valéria Rezende, nascida em Santos (SP), instalou-se em Caraibeiras (PE), povoado sertanejo tão isolado que a única construção numa estrada de acesso era uma palhoça chamada Hotel do Deserto. Seguidora das ideias de Paulo Freire, ela chegou à cidade durante a ditadura para se dedicar à educação popular, trabalho que a ocupou por toda a vida. A experiência dos anos de chumbo serviu de base para seu novo romance: “Outros cantos” (Alfaguara), o primeiro lançamento da autora após o sucesso de “Quarenta dias” (Alfaguara), que no fim de 2015 ganhou os Jabutis de melhor romance e livro do ano de ficção. Como a obra premiada, ambientada na periferia de Porto Alegre, “Outros cantos” joga luz sobre os excluídos, desta vez no sertão pernambucano. A protagonista é uma educadora que, numa viagem de ônibus pelo Nordeste, recorda seu trabalho durante a ditadura no povoado fictício de Olho d’Água, inspirado em Caraibeiras.
Nascida numa família de literatos (o poeta Vicente de Carvalho, integrante da ABL, era seu tio-avô), Maria Valéria, de 73 anos, só estreou na literatura em 2005, com o romance “O voo da guará vermelha” (Objetiva). Nos anos 1960, foi integrante da Juventude Estudantil Católica e entrou para a Congregação de Nossa Senhora. Ajudou a esconder opositores após o golpe de 1964 e chegou a sair do país, em 1972, levando na mala os originais do livro “Cartas da prisão”, de Frei Betto. Passou por Itália, França, Argélia, EUA e México antes de voltar ao Brasil. Ela conversou com O GLOBO por telefone, de João Pessoa, onde vive há 30 anos
Seu livro anterior, “Quarenta dias”, era ambientado na periferia de Porto Alegre. “Outros cantos” se passa no sertão nordestino. São livros que falam dos excluídos. É um tema ausente na literatura brasileira hoje?
Todos os meus livros falam dos excluídos, porque só posso falar do que conheço. É um tema que quase desapareceu na literatura brasileira. Talvez seja consequência da concentração geográfica de escritores publicados e divulgados. No Brasil sempre foi assim: o sujeito que queria ser escritor tinha que se mudar para Rio ou São Paulo. É claro que isso cria distorções. Se eu escrevo sobre uma educadora no sertão nordestino, sou tachada de regionalista. Mas quem escreve literatura de alcova e bar ambientada em um bairro de classe média de São Paulo não é chamado de bairrista. É considerado autor de “literatura urbana universal”.
“Outros cantos” parte de suas memórias do tempo em que trabalhava com educação de base no Nordeste, nos anos 1960, durante a ditadura. Como foi essa experiência?
Do final dos anos 1960 até os anos 1990, lidei com educação popular, que não se resume à alfabetização. É parte de um processo complexo de ajudar as pessoas a refletir sobre o mundo a partir de suas próprias experiências. Trabalhávamos com pessoas que, naquela época, quase não tinham comunicação com o mundo, e queríamos ajudá-las a combater a visão fatalista de que quem nasce pobre vai morrer pobre. Era uma luta muito grande, porque havia um conformismo induzido, alimentado por séculos com uma linguagem religiosa de quem dizia que essa era a “vontade de Deus”. Muitas vezes, no sertão, tive que convencer os pais a deixar os filhos irem à escola, porque diziam que estudar era desculpa para não trabalhar. Hoje, muitas daquelas crianças são doutores ou professores universitários.
Você falou sobre o fundo religioso do conformismo. Mas seu trabalho com educação foi dentro de uma corrente da Igreja que pregava o engajamento social. Como era a atuação da Igreja nessa época?
O discurso conformista sobre a pobreza vem do período colonial, mas não é só da Igreja, e sim de toda a sociedade brasileira, profundamente injusta, que se serviu do discurso religioso para pacificar sua consciência exploradora. Nunca falo “a Igreja”, porque é um termo muito amplo. Havia bispos a favor e contra a ditadura. Quando partimos para essa missão de desaparecer em meio ao povo, como o fermento na massa, quem nos deu cobertura foi a Igreja, que acolheu inclusive muitos que não tinham fé. Justamente por falarmos desde essa posição tínhamos mais condições de combater o ranço conformista revestido de linguagem religiosa que promovia a acomodação das pessoas. Mostrávamos que a Bíblia também pode ser revolucionária, quando lida de forma que a aproxima do cotidiano do povo. É o contrário do tipo de pregação que hoje se espalha no Brasil, desvinculada dos processos sociais e históricos, com uma leitura fundamentalista da Bíblia que toma o texto ao pé da letra.
A personagem relaciona o sertão nordestino a outros “desertos” que conheceu durante o exílio, na Argélia e no México. Você também passou por esses lugares. Como foi reviver as memórias da ditadura escrevendo o romance?
Não quis fazer um livro de memórias, porque acho chato. Autobiografias se passam por verdadeiras, mas no fundo são ficção. Então preferi dar a forma de um romance e ficar livre para reinventar tudo. A protagonista não tem nada da minha personalidade, não sou uma sonhadora, e as histórias que ela conta são inventadas. Mas o percurso dela é emprestado do meu. E a figura que aparece ao longo do romance com várias formas, um homem que a protagonista nunca sabe se é a mesma pessoa, tem a ver com uma experiência forte que vivi durante a ditadura.
Qual?
Escondi muita gente e ajudei muita gente a sair do país. As pessoas se apresentavam com um nome, mas sabíamos que era falso, e bastava raspar as sobrancelhas para que ficassem irreconhecíveis. Eram pessoas sobre quem eu não sabia nada, mas que colocavam as vidas nas minhas mãos. E eu colocava minha vida nas mãos delas, porque se fossem pegas podiam me entregar. Não existe relação mais íntima do que essa, quando duas pessoas que não se conhecem confiam suas vidas uma à outra e depois nunca mais se veem.
Em que momento você precisou sair do país?
Em 1972, a congregação me mandou para um trabalho na Europa. Entendi que a intenção era me manter lá para proteger a mim e às irmãs. Levei os originais datilografados das cartas de prisão de Frei Betto. Antes de viajar, fiquei um mês na casa do meu avô, em Belo Horizonte, transcrevendo as cartas com a ajuda de frades dominicanos. Frei Betto escrevia com uma letrinha miúda que só se lia com lupa. Mandava as cartas dentro de um cinto, que a gente trocava com ele durante as visitas no presídio de Tiradentes. Logo que cheguei à Itália entreguei os originais para a editora, que publicou o livro antes de ele sair no Brasil. Aí minha vida se complicou, porque as embaixadas eram vigiadas. Fiquei um tempo na Argélia, depois fui para os EUA, onde me sustentava dando cursos sobre Paulo Freire. Desci de ônibus até a Cidade do México e voltei ao Brasil por Manaus, para não chamar a atenção. Depois voltei a dar aulas no sertão.
Acredita que o trabalho de quem se dedicou à educação de base durante a ditadura é lembrado hoje?
Muitos da nossa geração optaram pela luta armada ou pela militância cultural, outros seguiram o caminho da educação. Fomos milhares. Nos últimos anos, por conta da Comissão da Verdade, o Brasil se lembrou de presos, torturados, exilados, censurados, mortos. Mas não se falou tanto de quem, acreditando que a mudança só podia vir da organização popular, sumiu no meio do povo para fazer esse trabalho, cuja condição de sucesso era a invisibilidade. A gente lê nos livros de História que, na segunda metade dos anos 1970, surgiram no campo movimentos populares e sindicatos que ajudaram a enfraquecer a ditadura. Dito assim, parece geração espontânea. Mas é fruto do trabalho de pessoas que ficaram invisíveis para combater a ditadura nas periferias e nos campos, e que, de certa forma, continuam invisíveis.
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TRECHO DE ‘OUTROS CANTOS’
Eu fazia trinta anos no dia em que me meti pela primeira vez nesta aridez. Ainda não se havia espalhado por toda a terra a ilusão de poder-se fraudar o tempo e afastar indefinidamente o envelhecimento e a morte com técnicas cirúrgicas e calistênicas, fórmulas químicas, discursos de autopersuasão, mantras, injeções, próteses, lágrimas e incensos. Então, só era possível fazê-lo tornando-nos heróis, mártires, mitos, símbolos. Apostava-se a vida no que acreditávamos ser maior que a nossa própria vida. Encher de sentido o tempo era, então, mais urgente pois tão passageiro, urgência de marcar o mundo com nossa existência, mesmo que arriscando-nos a torná-la mais breve. Ultrapassar os trinta anos era atravessar o portal da juventude para a idade adulta. Era, então, o exato meio da vida.
Vejo-me outra vez jovem ainda, sentada sobre o tronco de um coqueiro decepado e deitado em frente à casa que me cabia, naquele povoado cujo nome explicava a razão de sua existência, tão longe de tudo: Olho d’Água, como tantos outros mínimos oásis espalhados pela vastidão das terras secas. Eu me escorava na parede caiada em branco, havia pouco abandonada pelo sol, dando às minhas costas o único alívio possível contra o calor que me abateu desde a manhã, bem cedo, quando apeei do caminhão meio desmantelado que me levou àquele exílio.
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Enviada para Combate Racismo Ambietal por Ruben Siqueira.