Pelo combate à intolerância religiosa e em defesa do Estado Laico

Ao invés de promover cidadania e ampliar direitos, a comunicação entre Estado e religião tem gerado “brechas” legais que podem ser utilizadas de forma inconstitucional

Por Ivanilda Figueiredo* – Plataforma Dhesca

No dia 12 de janeiro de 2016, a Presidenta Dilma Rousseff sancionou dois projetos de lei originados no Congresso Nacional: a Lei 13248/2016, que tem origem no Projeto de Lei 1677/2007, do Deputado Gastão Vieira (PMDB/MA) e institui o Dia Nacional do Tambor de Crioula; e a Lei 13246/2016, originada no projeto de lei 2828/2003, do Deputado Neucimar Fraga (PL/ES) e que institui o Dia Nacional da Proclamação do Evangelho.

Ambos os projetos têm em comum instituírem datas comemorativas de manifestações culturais de bases religiosas. O tambor de crioula é uma dança de origem africana que, segundo a justificativa do projeto, é reconhecida pelos folcloristas como uma manifestação cultural de origem nos quilombolas e vista como um ato de louvor a São Benedito. A proclamação do Evangelho é vinculada às religiões cristãs e remete ao ato de anunciar o Evangelho, segundo a ordem expressa por Jesus no evangelho de Marcos.

Os dois exemplos mais recentes de Dias Nacionais com conotação religiosa se somam a muitos outros marcos temporais nacionais, estaduais e municipais relacionados ao reconhecimento de valores religiosos. Reconhecer culturalmente uma manifestação religiosa ou o valor das religiões tem sido concebido como adequado aos parâmetros da Constituição da República, que em seu artigo 19, inciso I, estabelece o Estado Laico ao afirmar ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Ainda que tais datas sejam vistas como manifestações culturais brasileiras, sua constitucionalidade é questionável, pois a real isonomia exigiria que toda e qualquer religião com adeptos no Brasil tivesse datas em seu reconhecimento.

Mais grave, no entanto, é quando nas legislações estabelecedoras de dias nacionais são inseridos outros dispositivos que diretamente desafiam a laicidade do Estado. Nas leis recém-criadas vê-se isso claramente. Na Lei 13248/2016, há apenas o reconhecimento do Dia Nacional do Tambor de Crioula. Já na Lei 13246/2016, além da instituição do Dia Nacional da Proclamação do Evangelho, há um artigo Art. 2o acrescentando que “no dia 31 de outubro dar-se-á ampla divulgação à proclamação do Evangelho, sem qualquer discriminação de credo dentre igrejas cristãs”.

Quem dará essa divulgação? Na norma não está dito, mas, com ela, abre-se a possibilidade de criação de uma obrigação para o Estado de investir recursos na divulgação do dia da proclamação do evangelho. Essa obrigação é flagrantemente inconstitucional. Como dito acima, o Estado não pode financiar atividades religiosas. Esse tipo de norma passa muitas vezes despercebido e os dispositivos parecem inócuos, já que a lei não determina que o Estado invista – apenas abre uma brecha para que isso aconteça -, o que leva a crer que o dispositivo legal não é inconstitucional.

A Relatoria de Direitos Humanos e Estado Laico da Plataforma Dhesca Brasil manifesta preocupação com a admissão desse tipo de possibilidade que, em nosso entender, é em si inconstitucional. O Estado não está autorizado a investir recursos em atividades religiosas, pois tal atitude configura quebra irremediável do princípio da laicidade. É de se alertar que legislações autorizativas como essas podem servir de base para investimentos tanto no âmbito federal quanto no estadual e no municipal, sendo num país de mais de 5000 municípios de difícil controle cidadão gastos desse tipo no âmbito local.

Ademais, quando o citado artigo usa a expressão “sem qualquer discriminação de credo dentre igrejas cristãs”, entende-se que a norma quis proibir qualquer privilégio de uma igreja cristã sobre outra. Como já se disse, a possibilidade de qualquer igreja receber recursos públicos para comemorações religiosas é vedada constitucionalmente. Porém, o dispositivo incide ainda em mais uma inconstitucionalidade, pois ao tratar de igrejas cristãs, exclui todas as demais manifestações religiosas.

Comunicação entre Estado e religião

A Relatoria vê com preocupação a ampliação de datas religiosas em normas que cada vez mais expandem seu conteúdo para além do reconhecimento da manifestação cultural em si. Textos normativos pouco explícitos ou confusos são inimigos do direito à segurança jurídica e podem servir justamente para que as “brechas” legais sejam utilizadas das mais diferentes formas, algumas delas inconstitucionais.

A dimensão religiosa e a estatal podem validamente se comunicar, entretanto, isso deve ocorrer no sentido de promover cidadania e ampliar direitos. As igrejas podem por sua capilaridade ajudar em campanhas preventivas contra determinadas doenças, por exemplo. Ou mesmo podem ser instituídas datas nacionais que agreguem as religiões em torno de valores cidadãos, sem privilegiar nenhum delas.

Um bom exemplo é o Dia Nacional contra a Intolerância Religiosa, instituído pela Lei 11635/07 e comemorado no dia 21 de janeiro. Tal lei é oriunda de projeto de lei do Deputado Daniel Almeida (PCdoB/BA) e se configura como um exemplo positivo de como a dimensão religiosa e a estatal podem se comunicar sem interferências indevidas. Em um Estado Laico, as autoridades públicas devem se nortear por valores constitucionais como a proteção da liberdade de crença e não em exaltação ou favorecimento de qualquer credo específico.

A Relatoria entende como importante campanhas que relembrem a cada brasileiro e brasileira que o seu direito de professar sua crença específica só pode ser assegurado porque o Estado não tem preferência por nenhuma religião e deve tratar a todas de forma isonômica. Só um Estado Laico é capaz de assegurar a liberdade de crença e, portanto, promover uma convivência pacífica entre os cidadãos independente da religião professada por cada um.

Intolerância religiosa

A imagem mítica do Brasil, cultivada por muitos, é de um país de convivência pacífica entre as religiões e de grandes expressões de sincretismo religioso. Se, por um lado, essa afirmação é verdadeira quando se compara o país a Estados nos quais a intolerância é aceita, por outro lado, esse ideal esconde as violências sofridas historicamente por adeptos a religiões de matriz africana, as perseguições a ciganos e, mais recentemente, a rejeição às pessoas muçulmanas.

O Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir) no estado do Rio de Janeiro, entre julho de 2012 e dezembro de 2014, registrou 948 queixas relacionadas a intolerância religiosa. O Disque 100 do Governo Federal recebeu, em 2014, 149 denúncias de violações de direitos motivadas por intolerância religiosa. Esses dados ainda dizem muito pouco sobre a realidade brasileira. É preciso um esforço de todos os âmbitos federativos (federal, estadual e municipal) para a sistematização das ocorrências de intolerância religiosa.

A Relatoria considera ainda de grande importância que o Estado brasileiro realize, por seus institutos especializados, pesquisas quali-quantitativas capazes de apresentar o cenário atual com a caracterização das religiões e pessoas mais afetadas pelos atos de intolerâncias, os locais de ocorrência e modo como estas ocorrem. Só um amplo conhecimento da realidade, pode embasar ações eficazes de enfrentamento a intolerância.

O aumento do número de expressões de intolerância ainda não é devidamente documentado em todo o país, no entanto, as próprias noticias na mídia dão conta de terreiros e de outras casa de fé queimados ou destruídos, de pessoas humilhadas em espaços públicos ou mesmo atacadas por atos violentos.

Há ainda outra face da intolerância religiosa, diversa daquela que ataca as pessoas pela sua religião ou ausência dela. Trata-se da intolerância motivada pelas características pessoais ou pelo modo de vida das pessoas. Essa faceta tem se manifestado recentemente em pronunciamentos públicos de ódio às mulheres, pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis (LGBTs), pessoas negras e indígenas, adolescentes acusados de ato infracional ou adultos acusados de crime. Esses grupos têm sido alvo constante de ataques por parte de pessoas adeptas de um tipo de conservadorismo político que busca reinterpretar e instrumentalizar a linguagem religiosa no sentido de legitimar o discurso de ódio. Não satisfeitos com a tentativa de naturalização desse discurso, esses conservadores buscam também legalizar a prática, conforme se depreende do projeto de “Estatuto da Liberdade Religiosa” promovido por essa corrente:

“Não se considera crime, na forma de discurso de ódio, a divulgação, na esfera pública ou privada, de ideias de uma religião contrárias a um determinado comportamento social ou mesmo crença de um determinado grupo, religioso ou não, desde que feitas pacificamente, com urbanidade, tolerância e respeito aos direitos humanos fundamentais.” (art. 9, § 2º)

O artigo acima é mais um exemplo do que foi dito anteriormente sobre as brechas propositais presentes em determinadas normas. Se, por um lado, o artigo normatiza o “direito” de ofender, por outro diz que tais atos deverão ser feitos com respeito a direitos fundamentais, o que é um contrassenso em si e, portanto, abre uma grande brecha para interpretação quando da aplicação da regra.

O Dia Nacional de Combate a Intolerância Religiosa (21.01) deve ser um marco capaz de alertar a população brasileira para a importância da valorização do Estado Laico. Se as religiões podem se guiar internamente por verdades absolutas, o Estado, pelo contrário, deve se pautar por valores universalizantes, inclusivos e que contemplem a diversidade, garantindo a todos e todas o acesso aos direitos assegurados constitucionalmente.

* Relatora de Direitos Humanos e Estado Laico da Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil, publicado em 18.01.2016 no Brasil de Fato

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