Os Fukuyamas brasileiros acreditam em um “fim dos golpes”

Relativistas parecem assistir à tomada de Troia como se pudéssemos minimizar o cavalo e a história das guerras; como se estivéssemos em um observatório distante

Por Alceu Luís Castilho, em Outras Palavras

Francis Fukuyama tornou-se conhecido nos anos 90 com uma tese esdrúxula: a do “fim da história”. Com a queda do Muro de Berlim e da União Soviética, teria vencido o liberalismo. Sucederam-se inúmeros decretos: de que estaríamos vivendo o fim de vários cânones. O fim disto, o fim daquilo. Era uma visão conservadora do mundo. A serviço de supostos consensos. Não à toa, naquele momento tivemos o “consenso” de Washington, a agenda estadunidense que previa uma rota inexorável para os Estados, a reboque dos mercados.

Vivemos agora no Brasil, em meio aos que tomam posição pelo impeachment ou pela democracia (os governistas estão incluídos aqui, não necessariamente pelos mesmos motivos, mas o campo é bem maior), uma curiosa terceira via, capaz de observar um fenômeno histórico muito concreto como se ele não estivesse acontecendo. Como se pudéssemos pairar em torno dele, em uma espécie de Olimpo, decretando que ambos os lados estão errados, as tomadas de posição estão açodadas demais. Lembro-me, então, de Fukuyama. É como se estivessem a decretar o “fim dos golpes”.

Não estou falando dos golpistas que (como sempre) se recusam a pronunciar a palavra “golpe”. Ou que até, cinicamente, remetem a palavra ao campo contrário, como tem feito o Estadão. Esses que, em 1964, chamavam ou chamariam o golpe empresarial militar de “revolução”. Não, estou falando de setores à esquerda, defensores de direitos humanos, de povos tradicionais, com histórico no campo democrático, portanto, que, de repente, não mais do que de repente, decidiram que deve haver algum meio termo entre uma posição e outra, “vamos todos conversar”.

Como se a bola não estivesse na pequena área, quase entrando, e pudéssemos, sei lá, apitar, chamar todos para um convescote e informar, em um ritmo quase filosófico, que, a rigor, aquela partida não está sendo jogada, o mundo mudou e não somente a partida, mas o futebol como um todo não é tão decisivo assim. Algo como: parem, parem, reflitamos sobre t-u-d-o. Trata-se de um esforço de congelamento, quase místico, numa espécie de versão equilibrista e pós-moderna do Cândido de Voltaire: vejam, vocês estão todos muito afobados, e todos errados, respirem fundo.

Como se não tivéssemos uma faca em nossa jugular. Como se quem se posicionasse contra um golpe político muito específico, que vai muito além das qualidades e defeitos do lulopetismo, ou do governo Dilma Rousseff (quase consensualmente desastroso), não tivesse entendido nada, não estivesse ouvindo a voz dos novíssimos tempos, não estivesse refletindo sobre novas categorias necessárias, não pensasse nos esgotamentos, nos impasses, nos limites do Estado; como se pactuássemos com os desmandos e com o modelo predador adotado pelos governantes de plantão.

golpe laerte bicicleta

Como tenho escrito, as vítimas de sempre não ficarão no mesmo lugar, em caso de retrocesso político no Brasil: elas se tornarão mais vítimas ainda. Os povos indígenas, os camponeses, as pessoas violentadas pelos projetos de infraestrutura, os moradores de periferia, os manifestantes (as vítimas da violência de Estado) não ficarão num mesmo lugar em caso de golpe paraguaio (sem militares), midiático-empresarial: eles perderão ainda mais. Não existem territórios livres. Nosso arremedo de democracia perderá algumas de suas ilhas – e são os excluídos os primeiros a serem atingidos.

Será necessário lembrar que o líder da extrema direita tem falado diretamente em eliminar o MST, com armas? Que a agenda dos direitos sociais (que já se deteriora com Dilma) encolherá ainda mais, com a chegada do PMDB e da Fiesp ao poder? Que haverá forte retaliação aos resistentes? Por que isso tudo soa indiferente? Como se pudéssemos, a partir da chegada desses golpistas específicos ao poder, viver uma nova correlação de forças, como se o exercício do poder – econômico, político – não fosse algo extremamente palpável, concreto.

Como se os nossos desejos nobres por uma terceira via – humana, igualitária – pudessem fazer frente à realpolitik apenas por serem expressados; como se fosse possível, após a derrubada de um governo e assentada a poeira (uma suposição otimista, aliás, a de que a poeira seja assentada), a nau dos sensatos pudesse reencaminhar as reivindicações históricas a partir de novos patamares, de novos paradigmas; como se nos encaminhássemos para a confortável posição de mover os pauzinhos em uma situação onde os horrores já estejam desconstruídos.

Não, gente. As coisas vão piorar muito. E alguém precisa salvar aquela bola explosiva que está quase entrando em nossa meta.

Destaque: Procissão do Cavalo de Troia (Giovanni Domenico Tiepolo, 1773).

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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Lara Schneider.

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