Espetáculo corrompido: uma análise jurídica sobre o rumo das investigações contra Lula

Por Rômulo de Andrade Moreira e Fernando Hideo Lacerda*, em Justificando

A decisão proferida pelo Ministro Teori Zavascki na última terça-feira (22/03) apresenta-se como uma luz de racionalidade no fim do túnel sombrio por onde trafega o processo penal de exceção, sinalizando um lampejo de Estado de direito iluminado através do mínimo respeito às normas constitucionais e legais.

Determinou-se a suspensão e remessa ao Supremo Tribunal Federal do pedido de quebra de sigilo telefônico que teve como alvo principal o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e demais procedimentos relacionados, bem como a “sustação dos efeitos da decisão que autorizou a divulgação das conversações telefônicas interceptadas”.

Em linhas gerais, o Supremo Tribunal Federal liminarmente suspendeu e avocou as investigações que fundamentaram as interceptações telefônicas e em breve definirá o rumo da persecução criminal.

Sem emitirmos um juízo pessoal sobre a apreciação dos elementos informativos constantes do procedimento investigatório (até porque foi restabelecido o devido sigilo das investigações – art. 20 do CPP), mas apenas levando em consideração o pedido de interceptação formulado pelo MPF, as decisões proferidas pelo magistrado da 13ª Vara Federal de Curitiba e a lei das interceptações telefônicas (Lei nº 9.296/1996), podem ser definidas algumas perspectivas sobre o destino da investigação a partir de uma análise estritamente técnica, que ora propomos.

Desde o vazamento ilegal dos áudios interceptados, que inclui alguns interlocutores detentores de foro estabelecido por prerrogativa de função (presidente da república, ministro de estado e governador) e diálogos alcançados pelo sigilo profissional (advogados), os holofotes se voltaram para a arbitrariedade consistente na divulgação pública de tais comunicações.

O Ministro Teori Zavascki parece estar alinhado com os críticos da decisão, ao sublinhar a necessidade de apuração das “eventuais consequências no plano da responsabilidade civil, disciplinar ou criminal na conduta do juiz Sergio Moro.

Em todo caso, as arbitrariedades não se limitam à divulgação do conteúdo sigiloso. Tanto mais graves são as ilegalidades cometidas na própria determinação e realização da interceptação telefônica, em nítida violação à Lei nº 9.296/1996.

Propondo-se à regulamentação do art. 5°, inciso XII, da Constituição Federal (sigilo das comunicações telefônicas), a mencionada lei estabelece requisitos para se admitir a interceptação: (i) deve haver indícios razoáveis de autoria ou participação do interceptado em crime punido com pena de reclusão e (ii) demonstrar-se que a prova não poderia ser obtida por outros meiosdisponíveis (art. 2º).

Exige-se, ainda, que seja “descrita com clareza a situação objeto da investigação”(art. 2º, parágrafo único) e limita-se temporalmente a interceptação das comunicações telefônicas “que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova” (art. 5º).

Vejamos o teor da decisão proferida no dia 19 de fevereiro de 2016, pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, no Pedido de quebra de sigilo de dados e/ou telefônico nº 5006205-98.2016.4.04.7000/PR para analisar a sua (in)compatibilidade com os dispositivos da Lei nº 9.296/1996.

Com efeito, há algumas considerações relevantes em relação aos requisitos necessários para se admitir a interceptação das comunicações telefônicas. Destaquem-se, detalhadamente, trechos da decisão que identificam:

(i) os alvos das interceptações: “trata-se de pedido de interceptação telefônica formulado pelo MPF em relação a pessoas associadas ao ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva”;

(ii) os crimes apurados: “podem os fatos configurar crimes de corrupção e delavagem de dinheiro no contexto do esquema criminoso que vitimou a Petrobrás”;

(iii) a situação objeto da investigação: “necessidade de também aprofundar as relações entre as empreiteiras envolvidas no esquema criminoso da Petrobrás com oInstituto Lula e a empresa LILS Palestra, bem como em relação a associados do ex-Presidente” e “esclarecer a relação do ex-Presidente com as empreiteiras e os motivos da aparente ocultação de patrimônio e dos benefícios custeados pelas empreiteiras em relação aos dois imóveis”;

(iv) a insuficiência das provas obtidas até então: “apesar do MPF ter reunido um acervo considerável de provas, especialmente em relação ao apartamento e o sítio, a complexidade dos fatos, encobertos por aparentes falsidades e pela utilização de pessoas interpostas, autoriza a utilização da interceptação telefônica para acompleta apuração dos fatos”; e

(v) a inexistência de outros meios para a obtenção da prova: “não vislumbro no presente momento outro meio para elucidar tais fatos salvo a interceptação ou outros métodos de investigação mais invasivos”.

Em primeiro lugar, a decisão demonstra o seu verdadeiro propósito já nas linhas iniciais. Ao invés de identificar individualizada e fundamentadamente os investigados alvos da interceptação telefônica, menciona que se trata de procedimento destinado a afastar o sigilo de “pessoas associadas ao ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva”. É dizer que o mais relevante não parece ser os indivíduos interceptados em si, pois todos seriam meio para se chegar à pessoa do ex-presidente, que sequer teve seu número pessoal interceptado na aludida decisão.

Em segundo lugar, a legislação estabelece que deve haver indícios razoáveis de autoria ou participação dos indivíduos interceptados em crimes sujeitos à pena de reclusão. Embora o magistrado estabeleça os tipos penais de corrupção e lavagem de dinheiro, a determinação das interceptações foi destinada a pessoas cuja conduta sequer estava sendo apurada.

Após adotar o método de conduções coercitivas de investigados que sequer foram intimados, aparentemente fora instituída uma nova forma de obtenção da prova: a interceptação telefônica de testemunhas.

Em detalhe: “A interceptação deve abranger as entidades controladas pelo ex-Presidente e igualmente seus auxiliares mais próximos. Deve ser deferida igualmente em relação ao caseiro do sítio, não porque ele estaria envolvido nos crimes, mas para buscar esclarecer o real proprietário”.

Não obstante, a inovação arbitrária atingiu também o sigilo das comunicações telefônicas do escritório de advocacia que representa o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, num grave atentado às prerrogativas profissionais e ao direito de defesa ― não apenas de Lula, mas de todos os clientes atendidos pela banca.

Determinar interceptações difusas (direcionada a pessoas jurídicas, “auxiliares mais próximos”, testemunhas e advogados), sem a identificação de um alvo específico para que se lhe possam atribuir indícios de autoria ou participação, afronta a necessária individualização do investigado sujeito ao afastamento do sigilo de duas comunicações telefônicas, tornando nula a decisão sob exame.

Em terceiro lugar, a situação objeto das interceptações deve ser descrita com clareza para que se possa estabelecer um vínculo entre a prova que se pretende produzir e a excepcionalidade da medida (que só pode ser decretada pelo prazo de “quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”), identificando-se um nexo de causalidade entre os indícios de autoria apontados no procedimento e o meio investigatório utilizado.

Em outras palavras, não se pode determinar a interceptação sem que esteja identificada a necessidade e adequação da medida para apuração dos fatos apurados. Neste sentido, veja-se o art. 282, do CPP (com as devidas ressalvas). Deve haver uma fundada razão para se acreditar que nos 15 dias interceptados (prazo máximo autorizado para o afastamento do sigilo das comunicações telefônicas) haverá obtenção de provas relevantes para esclarecimentos dos fatos.

Ocorre que os indícios apresentados para justificar a situação objeto da investigação referem-se ao período compreendido entre os anos de 2002 a 2006 (delação de Fernando Antônio Falcão Soares), 2007 (depoimento de Salim Taufic Schahin), 2011 a 2014 (quebra do sigilo bancário e fiscal do Instituto Lula e da empresa LILS Palestras, Eventos e Publicações Ltda.), 2011 e 2014 (petição apresentada pela OAS sobre o apartamento no Guarujá e reforma cozinha, respectivamente) e 2010 (registros de matrícula do sítio de Atibaia).

Ora, procedeu-se à interceptação das comunicações telefônicas, no dia 19 de fevereiro de 2016, pelo prazo de 15 dias, visando à obtenção de provas defatos ocorridos entre os anos de 2002 a 2014, relacionados a tipos penais de corrupção e lavagem de dinheiro pela ocultação de patrimônio, para os quais eventual prova testemunhal sequer bastaria para comprovação das práticas delitivas e cujos indícios apontados datam de década e anos atrás!

Não apenas a interceptação telefônica não se presta à obtenção de provas dessa natureza, como o lapso temporal existente entre os indícios da prática delitiva e o momento da realização das interceptações torna a medida ilógica e absolutamente ilegal. Especialmente quando se encaixam as peças desse quebra cabeça: vazamento seletivo de provas à mídia, condução coercitiva de Lula, interceptação dos advogados e identificação da estratégia de defesa, encontro “fortuito” de provas relacionadas a outras pessoas e situações, afastamento do sigilo e divulgação pública dos áudios em momento politicamente oportuno.

Nesse contexto, uma vez constatada a ilegalidade e nulidade da decisão que determinou a interceptação telefônica de “pessoas associadas ao ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva”, há de se responder tecnicamente à questão inicialmente colocada: caso seja mantido o respeito às normas vigentes, quais as perspectivas para o rumo desta investigação?

Podemos respondê-la a partir de duas constatações.

(1) O Ministério Público Federal tem sua conduta orientada pelas regras da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública incondicionada (arts. 24 e 42 do CPP). Ou seja, caso estejam presentes prova do crime e indícios suficientes de autoria, há o dever de ajuizamento da ação penal. Como, no caso em questão, ao invés de oferecer denúncia requereu-se a interceptação das comunicações telefônicas, restou demonstrado que não havia prova do crime ou indício suficiente de autoria, necessitando-se das interceptações como último recurso na obtenção de provas para esclarecimento dos fatos.

(2) O juiz Sergio Moro entendeu que, “apesar do MPF ter reunido um acervo considerável de provas, especialmente em relação ao apartamento e o sítio”, a “completa apuração dos fatos” dependeria do êxito na obtenção de elementos a partir da interceptação das comunicações telefônicas, justificada pela “complexidade dos fatos”. Nesse contexto, a decisão demonstra que o magistrado não vislumbrou outros meios de prova salvo a interceptação telefônica para elucidação dos fatos (art. 2º da Lei nº 9.296/1996).

Ora, se o MPF e o magistrado reconhecem, por um lado, que os fatos não estão completamente apurados e, de outro, que não se vislumbram outros meios de prova senão a interceptação das comunicações telefônicas para sua completa elucidação, é legítimo concluir que não há mais diligências a serem realizadas caso as interceptações se mostrem infrutíferas aos propósitos concebidos.

Com efeito, os áudios amplamente veiculados após a divulgação pública das comunicações interceptadas não comprovam (e nem poderiam) a ocultação de patrimônio e não detalham qualquer prática atinente ao tipo penal de corrupção cujos indícios de autoria teriam sido identificados nas investigações, sendo juridicamente irrelevantes aos fatos que justificaram a determinação das interceptações telefônicas.

Diante do quadro apresentado, considerando-se que o próprio MPF e o magistrado responsável pelas investigações consideraram incompletos os fatos apurados até então e a interceptação das comunicações telefônicas (vislumbrada como última tentativa de se obter elementos probatórios) não foi apenas ilegal, mas infrutífera aos propósitos jurídicos a que se destinavam (embora seu uso desvirtuado para fins políticos ainda esteja pendente de apuração civil, disciplinar ou criminal), afasta-se a justa causa para a continuidade das investigações, não restando alternativa ao Supremo Tribunal Federal senão promover a extinção do procedimento investigatório em relação aos fatos que motivaram as interceptações telefônicas, com a ressalva de que a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia (art. 18 do CPP) e o Ministério Público oferecer denúncia se houver “justa causa”, nos termos do Enunciado 524 da súmula do Supremo Tribunal Federal.

Aliás, nesse processo, e com esse magistrado em particular, sempre são possíveis as mais teratológicas decisões, muitas delas proferidas ao arrepio das leis processuais e, especialmente, da Constituição Federal, sempre à luz dos holofotes da grande mídia e da inebriante repercussão “positiva” da opinião pública. Goza-se, ao que parece (Lacan explica!).

Nada obstante, nesse episódio em particular, ele se superou. Decididamente estamos vivendo dias muito estranhos (para dizer o mínimo). É preciso atentarmos para o que Bobbio escreveu: “Os direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais. Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas” (1).

Não é possível que assistamos passivamente a esse estado de coisas. Rasga-se solenemente a Constituição Federal todos os dias, especialmente na 13ª. Vara Criminal de Curitiba e em Brasília. O juiz Sérgio Moro faz do processo penal o que ele quer, o que ele acha que deve fazer, o que agrada a população e a grande mídia (que lhe premia, inclusive). Impressiona a sua ousadia. O seu destemor (nesse sentido). Não é possível que a cúpula do Poder Judiciário brasileiro, seja o Supremo Tribunal Federal, seja o Conselho Nacional de Justiça, não imponha um freio a esse pernóstico ativismo judicial curitibano.

Como pode um juiz de primeiro grau ter acesso a uma conversa privada de uma Chefe de Estado e, simplesmente, com uma canetada espúria, divulgá-la? Em nome de quê? Do interesse público? Qual interesse público? Desestabilizar o Governo, as instituições, a nação? Ele não tem responsabilidade? Havia outras autoridades na República com competência para fazê-lo. Não ele.

Lembremos que Hitler praticou as suas atrocidades, em certo aspecto e para os seus propósitos, também em nome do interesse público e “los profesores de derecho desempeñaron un papel importante en el declive del derecho durante el tercer Reich. Brindaron un ropaje filosófico a los actos arbitrarios y los crímenes de los nazis, que sin esse disfraz se habrían reconocido claramente como actuaciones ilegítimas. Prácticamente no hubo desafuero alguno perpetrado por los nazis que no hubiese sido reconocido durante el régimen como ´supremamente justo` y que no hubiese sido defendido después de la guerra por los mismos académicos, valiéndose de los mismos dudosos argumentos en cuanto a su ´justificación` o incluso su ´conveniencia` desde un punto de vista jurídico.” (2) Será que não vamos aprender com a História?

Definitivamente chegamos ao fundo do poço. Tudo é possível. Infelizmente, a razão está com Giorgio Agamben:

“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. (…) O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.” (3)

Aqui merece destaque analisar o papel da mídia no atual contexto político brasileiro. O Brasil atravessou um período relativamente longo no qual as liberdades públicas estiveram sacrificadas em razão de um regime político não democrático que se instaurou no país quando os militares depuseram um governo civil legitimamente eleito. Um golpe, não uma revolução. A partir desta ruptura institucional (ilegítima), o país passou a viver à margem da democracia, respirando um ar poluído pelo medo, pela desesperança, pelo arbítrio, pela desconfiança, pelas deslealdades, onde preponderavam as delações, premiadas ou não, a tortura, a corrupção, o coronelismo, a burocracia estatal, o emperramento da máquina administrativa, a incompetência na gestão pública, etc., etc. Salvava-se o futebol…

No plano internacional, enquanto o mundo dividia-se entre as duas superpotências, envoltas em uma perigosa guerra (fria), cada vez mais, e para sempre, obedecíamos às ordens dos Estados Unidos (até o nosso sistema jurídico, nada obstante a tradição do civil law, vive a copiar ocommon law: delação premiada, barganhas penais, relativização das provas ilícitas, privatização das prisões, etc.).

Naquele ambiente absolutamente sombrio, a imprensa sofria reveses cotidianos, subjugada pelo governo que dispunha de um órgão especialmente designado para fiscalizá-la, situação que se agravou sobremaneira após a publicação do Ato Institucional nº. 5, em 13 de dezembro de 1968, só revogado em 13 de outubro de 1978, com a promulgação da Emenda Constitucional nº. 11. Mesmo com a revogação do AI 5, a liberdade de imprensa continuou manietada. Os mais diversos meios de comunicação seguiram monitorados pela Censura Federal. Telenovelas não foram ao ar, mesmo após já gravados capítulos, redações de jornais foram invadidas, outros ficaram inviabilizados financeiramente, até fecharem as portas, jornalistas ameaçados e mortos, outros fugiram do país. Enfim, não havia liberdade de imprensa. Fingia-se que se informava e o povo fingia que era informado. E o governo militar, hipocritamente, flertava com alguma mídia em troca de algumas concessões.

Com a redemocratização do país, a partir da promulgação da Constituição, as liberdades públicas, em particular, a liberdade de imprensa, destacou-se. E era natural que assim o fosse. Era mesmo um desejo de todos nós, carentes que estávamos de uma informação livre, liberta dos grilhões dos militares. A imprensa libertou-se e isso foi muito bom. No texto constitucional ficou consignado: “É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.” (art. 5º., XIV). Também: “É livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato.” (inciso IV), assim como “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.” (inciso IX).

É certo que há o interesse público em saber o resultado de um determinado processo judicial. Também está na Constituição que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos. Correto. Tudo faz parte do jogo democrático. Mas, é preciso que outras peças deste jogo sejam manejadas dentro do mesmo tabuleiro. É o mesmo jogo, são as mesmas peças, os mesmos jogadores e o mesmo tabuleiro. Vejamos, por exemplo, o que está escrito no art. 5º., X da Constituição: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgada no Brasil pelo Decreto Presidencial nº. 678/92 (com status de norma supralegal, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal), após estabelecer no art. 13 que “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão”, afirma que o seu exercício estará sujeito “a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas.”

E o que vemos e lemos hoje, e há muito, nos telejornais, nas revistas, nos jornais, nas redes sociais, nos blogs, enfim, nos mais diversos meios de comunicação? Trechos de delações premiadas que deveriam estar, por força de lei, sob absoluto sigilo nos autos da investigação criminal, partes de depoimentos de testemunhas, de interrogatórios de indiciados, fragmentos de interceptações telefônicas e escutas ambientais também cobertas pelo sigilo (nem sempre autorizadas pela Justiça, portanto, às vezes clandestinas, criminosamente conseguidas) etc. E sempre material seletivamente fornecido pelos órgãos do Estado que têm a guarda dos documentos. Isso é fato. Réus (mais) pobres e ricos. Brancos e (mais) negros. Incluídos e (mais) excluídos.

E mais: até o cotidiano de pessoas encarceradas em estabelecimentos prisionais, onde se encontram sob custódia do Estado e, portanto, sob a responsabilidade do governo brasileiro, é devassado e vendido nas bancas de revista e exposta gratuitamente na rede mundial de computadores.

E há algo ainda mais grave. Se tais fatos não fossem um agravo absurdo do ponto de vista da vida privada e da intimidade da pessoa (que na esmagadora maioria das vezes ainda nem foi julgada), o prejuízo do ponto de vista processual é imenso, incomensurável, pois esta exposição midiática põe e expõe o julgador (e também o acusador) em uma situação de pressão junto à opinião pública da qual dificilmente ele se libertará corajosamente. O ato de acusar e o de julgar já estão viciados, contaminados pela pressão da mídia, pelo fato noticiado, pela capa da revista, pela manchete do jornal, pelos comentários dos amigos, enfim…

Ao final e ao cabo, condena-se não em razão das provas, mas em virtude das evidências noticiadas. A condenação impõe-se, não porque o Direito assim o exige, mas porque é preciso que o leitor e o telespectador tenham uma resposta (de preferência rápida, daí a razão das prisões provisórias infindas) acerca da informação dada, pois não é possível que depois de tantos fatos postos, tantas fotos postadas, não haja uma sentença dada, um castigo imposto! É assim a lógica do sistema, não? Esta foi a razão pela qual começamos lembrando os tempos difíceis do regime político comandado pelos militares brasileiros e como foi importante o papel da imprensa, seja resistindo (pelo menos uma parte dela, veja, por exemplo, o Pasquim), seja, após o fim da ditadura, fortalecendo o agora regime democrático.

A liberdade de imprensa é um valor a ser a todo instante preservado e conquistado. Os profissionais da imprensa devem ser sempre valorizados. Mas, é preciso, por outro lado, que sejam também respeitadas outras liberdades, também fundamentais. É a Constituição que exige. A democracia custa muito caro para todos. São ônus e bônus. São deveres e direitos. É um verdadeiro “toma lá, dá cá” ético (se bem nos entendem). Tanto não é possível uma liberdade de imprensa que não encontre freios, como, obviamente, não se pode admitir censura à imprensa.

Não dá para admitir que trechos de uma delação premiada documentada em autos de uma investigação criminal estejam no dia seguinte estampadas na capa de jornal de circulação nacional ou em telejornal de grande audiência. Diga-se o mesmo em relação às interceptações telefônicas ou escutas ambientais. Não é possível! Pessoas presas, algemadas, que sequer foram indiciadas formalmente, não podem ser expostas publicamente. É óbvio que isso gera um sentimento negativo que seguramente implicará, também negativamente, no momento de se fazer o juízo de acusação e, mais tarde, o juízo de condenação. Não, não é chegada a hora. Já passou o momento de repensarmos este modo de atuar. Nós que fazemos parte desta engrenagem chamada justiça criminal: integrantes da polícia, do ministério público, advogados, magistrados e todos os outros.

Nós estamos lidando com gente e não estamos mais no século XVIII, quando“o povo reivindicava seu direito de constatar o suplício e quem era supliciado”, pois o “condenado era oferecido aos insultos, às vezes aos ataques dos espectadores.”Afinal de contas, “as pessoas não só tinham que saber, mas também ver com seus próprios olhos. Porque era necessário que tivessem medo; mas também porque deviam ser testemunhas e garantias da punição, e porque até certo ponto deviam tomar parte nela. Ser testemunhas era um direito que eles tinham e reivindicavam; um suplício escondido é um suplício de privilegiado, e muitas vezes suspeitava-se que não se realizasse em toda a sua severidade. Todos protestavam quando no último instante se retirava a vítima aos olhares dos espectadores.” Tudo muito parecido com o momento atual, só que este é um relato de Michel Foucault, da França, do século XVIII (4).

Somos seres racionais, trabalhamos com leis, normas jurídicas, princípios e regras, com uma Constituição, sobretudo. A imprensa, por sua vez, tem o dever republicano (e fundamental) de informar fatos efetivamente relevantes e importantes para a sociedade, além, claro, de entreter, divertir, etc., sem desabonar a honra das pessoas, desacreditá-las, ainda que, supostamente, tenham praticado algum delito. Isso se chama credibilidade. Um dia pode se perder.

Se formos realmente contra a corrupção devemos lutar pelo bom combate, que respeite a Constituição Federal e os parâmetros fixados pelo legislador. Não se pode transigir com o domínio da persecução penal pela luta política, munido do arbítrio seletivo e legitimado pelo espetáculo. Fica-se com a lição de Nietzsche (5), que sabiamente alertou aqueles que se propõem a combater monstros a se acautelarem para não se tornar monstros também, pois ― se ao olhar muito tempo para dentro de um abismo, o abismo olha dentro de você ― o combate ilegal, partidário, inconsequente e espetacularizado da corrupção acaba por corromper o próprio Estado de Direito.

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.

Fernando Hideo Lacerda é Advogado criminal e Professor de Direito Penal e Processual Penal na Escola Paulista de Direito (EPD), nos cursos de graduação e pós-graduação. Mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

REFERÊNCIAS

1 BOBIO, Norberto, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992, páginas 01 e 05.
2 MÜLLER, Ingo, Los Juristas del Horror, Bogotá: Inversiones Rosa Mística Ltda., 2009, p. 101.
3 Estado de Exceção, São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 13.
4 Vigiar e Punir – História da Violência nas Prisões, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 49
5 Além do bem e do mal, Curitiba: Hemus, 2001, p. 89.

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