Por Brenno Tardelli, em Justificando
Assistir pela tarde e noite parlamentares invocando a seus netos, seus bairros ou até mesmo a Jerusalém, para aprovar um processo de impeachment que trata de um assunto completamente diferente, nos deveria fazer refletir sobre qual país nós queremos.
Refletir sobre, também, qual o nível de democracia que exigimos. Ao fim da sessão, para quem tinha dúvidas se a palavra “republiqueta” se encaixava no Brasil, nação de dimensões continentais, nesta segunda está seguro dizer que sim, a palavra se encaixa. Numa republiqueta, Eduardo Cunha passa um processo de impeachment em face de alguém que não é acusada de se locupletar de um centavo, mas sim de assinar uma manobra contábil que uma série de chefes de executivo realizam.
Aliás, isso é o máximo que se pode avançar no sentido de debate jurídico sobre o domingo. Prepare-se para uma análise político-emocional, pois de jurídico ontem não teve nada e a tristeza me domina enquanto escrevo. Se deputados passaram um processo desse em nome dos corretores de seguro, é porque perdemos a racionalidade no debate há algum tempo. Fico pensando o tanto de material que foi produzido, o tanto de juristas que se posicionaram sobre pedaladas fiscais, para, no fim das contas, o julgamento ser “pela minha neta”, “pelo aniversário da minha cidade” e coisas desse sentido. Até Miguel Reale e Janaína Paschoal devem estar com indigestão com o baixo nível republicano.
Em uma republiqueta, é normal, durante a sessão do impeachment, um parlamentar subir à tribuna para homenagear e saudar um torturador. Brilhante Ustra é uma figura incontestável, um torturador confesso. Sob seu comando, a Presidente da República teve todos seus dentes quebrados, além de ter sido submetida a abusos sexuais inimagináveis. Mas isso não impede Jair Bolsonaro de saudá-lo enquanto algoz da então jovem Dilma Rousseff. Desse boçal parlamentar do Rio de Janeiro tudo se espera, mas espanta como é ovacionado por seus pares enquanto fala esses absurdos.
Espanta, aliás, que o espanto é dirigido a um parlamentar que, como forma de resposta a ofensas homofóbicas e à saudação de um torturador, cuspiu em Bolsonaro. Não cabe a mim avaliar o ato de Jean Wyllis, uma vez que gozo do privilégio de nunca ter sido ofendido por minha sexualidade. Mas é curioso como no imaginário da população e da mídia de massa a cuspida a um parlamentar se sobreponha ao elogio público a um torturador da Chefe do Executivo.
Enfim, esse episódio foi um pequeno intervalo entre vários discursos contra a corrupção. Essa narrativa está em alta hoje em dia, e, em nome dela, tudo posso nesse discurso que me fortalece. Não são raras as críticas de que a Lava Jato, o julgamento pelo Congresso e todo o aparato montado para combater a corrupção seja para mirar em um específico partido. Em algum momento, combate ao PT virou combate à corrupção, e vice-versa – a prova disso é que Cunha pôde presidir a sessão livremente, com poucos pingados contestando sua legitimidade.
Nada mais cínico do que o combate à corrupção. Como sempre, republiquetas são viradas de cabeça para baixo em nome dessa cruzada contra algo que faz parte do povo. Para perseguir o corrupto, esse ser que pode ser cada um de nós, aplaudimos leis que endurecem ainda mais o sistema repressivo brasileiro, um dos mais encarceradores do mundo. Em nome desse combate, muitos deputados e deputadas se sentem de peito inflado para dizer que estão pela moralidade, enquanto no seu mundinho particular são muito mais corruptos do que a corrupção que dizem combater. Aliás, golpe não deixa de ser uma corrupção e quem o apoia, bom, não deixa de ser corrupto.
No parlamento, quem aceitou o golpe ontem, é bom que se diga, cumpre um estereótipo bem específico: na média, trata-se de um homem branco, heterossexual, rico e acima dos quarenta anos. Justamente quem na República Velha tinha o exclusivo direito ao voto. Naquela época, as eleições eram censitárias e excluíam as mulheres, os pobres e os negros. Em uma republiqueta, resgatamos a cultura de cem anos atrás e privilegiamos o voto censitário ao voto universal. Em especial na Republiqueta, a narrativa da grande mídia é feita por esse viés estereotipado, em uma espécie pós moderna do complexo de vira-lata.
Cínicos passaram, torturadores foram aplaudidos e a segunda-feira chegou aparentemente como outra qualquer. As pessoas foram à padaria, tomaram uma média e se dirigiram ao trabalho. Os bêbados do centro da cidade continuam bêbados, e, na paulista, hippies continuam a vender suas miçangas. Acima da rotina de cada um de nós, no entanto, algo se quebrou. Estamos vivendo em um país menos democrático que ontem. Estamos vivendo em uma Republiqueta.
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Brenno Tardelli é diretor de redação no Justificando.
Foto: Fernando Bizerra Jr / EFE.