Por Katarina Peixoto
A manifestação de ontem, em Porto Alegre, foi diferente por muitas razões. A primeira é que foi imensa e muito representativa (havia organização política). A segunda é que foi extremamente organizada, em termos políticos. A terceira é que deixou os agentes da repressão e a polícia sem ação possível. A quarta é que conseguiu, numa noite de quinta-feira, gélida, arregimentar milhares de pessoas, ao longo de quilômetros, em defesa da democracia, contra o golpe, contra a misoginia, o racismo e a homofobia.
Não tem manual de inteligência, sic, militar, que consiga lidar com isso. E não tem, no resto do país, uma juventude disposta a fazer história, com tanta representatividade e substância. A imensa maioria dos que marcharam não tinha 30 anos. Estavam entre os 18 e os 25, em sua maioria. E fizeram, no outono de Porto Alegre, um carnaval de rua, cheio de clareza política, organização e legitimidade. Em defesa da democracia, contra o golpe, contra os cortes anunciados em programas sociais, contra o ataque aos direitos. Pelo reconhecimento de direitos.
O direito a uma polícia não militarizada, por exemplo, foi reclamado várias vezes, em alto e bom som. Sem violência. Gurias muito jovens pichavam “golpe” e “o golpe é misógino”. E depois se escondiam entre nós, que delas cuidávamos como quem cuida das crias. Os infiltrados estavam de dar dó. Estavam tão deslocados que deixavam claro seu passaporte vencido. Algumas pessoas com os narizes protegidos do frio.
Nenhum quebra-quebra. Quando chegamos na Duque de Caxias, depois de darmos a volta na Praça da Matriz, as cenas lindas. Era uma gélida noite de lua cheia e a Duque de Caxias é uma rua residencial, no centro de Porto Alegre. Arborizada, com moradores indo para varandas e janelas, acompanhar o mar de gente agasalhada, dançando carnaval e os chamando para protestar, porque é contra o golpe. Dois guris se beijam. Vinte anos, talvez menos. Eles se beijam, abraçam e, heróicos, seguem na marcha, vociferando as palavras de ordem “o golpe é racista, misógino e homofóbico”. Ninguém vai tirar dessa gurizada o que eles estão aprendendo e vivendo e representando, neste momento. Ninguém tem poder de sufocar isso. O casal de guris está imediatamente atrás de outro casal gay, de uns cinquenta anos. E outros, e outros. Parecia uma parada livre, sem fantasias, sem muitas cores, porque estava frio e porque é contra o golpe. Como pudemos pular e dançar e marchar, por quilômetros, divertindo-nos como crianças, neste momento?
Encontro dois guris, um menino e uma menina. Ele com um poderoso cartaz, feito em casa: “O silêncio também é golpista”. No dela estava escrito: “Geologia UFRGS pela democracia”. Peço para fotografá-los. Sigo adiante e acompanho uma discussão, cheia de confiança, de dirigentes estudantis, celebrando a consciência política de seus bixos, os que acabaram de entrar na universidade. E depois percebo, ao lado, e do outro lado, uma espécie de cordão de segurança, invisível para quem não tem política na cabeça, mas que impediu, mais de uma vez, que mascarados – infiltrados ou babacas desagregadores -, destruíssem algo ou destroçassem sede de partido golpista. Foram isolados na dinâmica política da própria manifestação.
Eram majoritariamente estudantes. Não havia sindicatos, nem movimentos de trabalhadores organizados. Claro que muitos adultos, trabalhadores, artistas, lá estavam. Professores universitários, professores de escolas, militantes partidários. Mas a manifestação foi puxada pela juventude do PCdoB, do PT e pelo extraordinário Levante Popular da Juventude.
Nunca vi tantas meninas tão jovens, com tamanha clareza sobre o que está em jogo no feminismo. Uma das palavras de ordem era esta: “Nós, somos um povo, e o Michel Temer, nós vamos derrubaaaar”. Uma paródia com o sou brasileiro, com muito orgulho, etc, da CBF, rede globo etc.
O Raul Pont estava lá, cheio de vida. O vô Raul, do Tião e do Mat, com a gurizada do “o golpe é misógino”, pulava junto (“quem não pula é golpista”), cantava, marchava.
A torcida do Inter também. Uma gurizada com uma faixa gigantesca, linda, dos colorados contra o golpe. E, lá ao fundo, uma faixa poderosa: “Não Atirem”.
Marchamos durante horas. Voltamos para casa cheios de esperança e de confiança. Nasceu e está aí a geração contra o golpe de 2016. Muito mais organizada, mais democrática, mais pluralista e poderosamente eloquente. Meninas com pirulitos de papelão, da Dilma, escrito embaixo: “Grelo Duro”.
É a Frente de Lutas Contra o Golpe.
Não atire
Aqui tem voto
Aqui tem democracia
Aqui tem feminismo
Aqui estão os gays
Aqui tem gente.
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Texto de Katarina, subcomandante da Brigada Boris Schnaiderman, e foto de Guilherme Santos, do Sul21.
Querida Katarina, aqui em SP tb estamos vivendo movimentos como esse descrito em seu texto. A juventude está levantando toda a sociedade. Eles e elas nos orgulham e nos dão mais ânimo pra continuar nessa luta tão antiga e que promete ser longa… Obrigada pelo lindo texto. Beijos na juventude linda e guerreira de PoA e tb em todos e todas, nem tão jovens, que continuam na labuta!!!