Do medo da madrugada à emoção da vitória: a ocupação Lanceiros Negros celebra permanência

Por Luís Eduardo Gomes, Sul21

“O Samuel é o grande vitorioso dessa noite. Essa criança de quatro dias vai ter um teto para morar e não vai ser hoje que ela vai para o frio, para a chuva, para o vento ou para alguma área de risco. Ela vai continuar morando no Centro de Porto Alegre com a mãe e com o pai dela”, disse, com os olhos marejados, Queóps Damasceno, morador da Ocupação Lanceiros Negros, após o Tribunal de Justiça suspender a ação de reintegração de posse do prédio localizado na esquina das ruas Andrade Neves com a General Câmara.

A decisão judicial tomada na manhã desta terça-feira (24) foi um surpreendente final feliz para as famílias da Lanceiros Negros, que, por mais de oito horas, aguardavam por uma ação para despejá-las do prédio de propriedade do governo do Estado. O local estava desocupado há cerca de uma década, quando cerca de 70 famílias tomaram posse no final do ano passado. Após idas e vindas de uma disputa judicial, o governo conseguiu autorização para levar a cabo a reintegração de posse.

Apesar de autorização judicial para a desocupação ser referente ao dia 24 de maio, a operação da Brigada Militar começou a ser montada ainda na noite de segunda-feira, com policiais bloqueando todos os acessos das ruas Andrade Neves e General Câmara ao prédio disputado. No entanto, mesmo com o forte aparato, que envolvia dezenas de homens do Batalhão de Choque, policiais montados, viaturas e motocicletas, nenhuma ação foi tomada durante a madrugada, uma vez que a notificação judicial ainda não tinha chegado aos moradores. A expectativa, porém, era de que se tratava do silêncio que precede a tempestade. No caso, a retirada à força dos moradores.

Enquanto essa expectativa não se confirmava, manifestantes e apoiadores da ocupação barrados de entrar no prédio fizeram uma vigília na esquina das ruas dos Andradas com a General Câmara. Atrás do cordão de isolamento, eles gritavam palavras de ordem contra a BM e em apoio aos moradores da Lanceiros Negros, tais como: “que vergonha, que vergonha deve ser, ter que bater em trabalhador para ter o que comer”. “Aqui tem um bando de louco, louco por moradia, quem acha que isso é pouco, nunca teve uma noite fria”, cantavam os manifestantes por volta das 6h, com os termômetros ainda marcando 9ºC.

Mãe de dois filhos, avó do dez netos e bisavó de uma criança nascida há dez dias, Jussara dos Santos Rodrigues, 60 anos, conta que, durante a espera, a preocupação era com o que poderia acontecer com as crianças. “Antes de pensarmos em nós adultos, temos que pensar nas crianças. Como tem 40 crianças lá dentro, a nossa preocupação era com elas, até não era tanto conosco. Era com nossos netos, nossos filhos, e graças a Deus deu tudo certo”, disse a bisavó do menino Keirrison. Ela passou a noite do lado de fora do prédio.

Outro morador que teve de acompanhar a ação na rua foi Queóps Nascimento, coordenador do Movimento Livre nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), que lidera a ocupação. Ele conta que conseguiu dormir apenas 40 minutos, no escritório dos advogados da ocupação, também localizado no centro. “Até agora, desde 10 horas da noite passada, foi um momento de tensão muito grande. Momento em que a Brigada não queria abrir nenhuma linha de diálogo, impediu vários trabalhadores e trabalhadoras de entrar no prédio. Mesmo com um mandado pro dia 24, eles começaram a operação ilegalmente no dia 23 e mães de família não tiveram acesso as suas crianças. Tiveram que ficar acordadas na rua”, afirmou.

Do lado de dentro, os moradores conviviam com o medo de que a polícia pudesse entrar a qualquer momento para retirá-los do local em que moram desde o final do ano passado. “A noite foi muito tensa. Terror. [Passamos] segurando as crianças no colo, as crianças com medo. Na verdade, a gente estava com medo, eu principalmente, mas graças a Deus tivemos uma vitória”, contou Joceana Mello do Nascimento. “Nós achávamos que eles iam entrar e baixar o pau até nas crianças. Porque a gente não ia sair por bem, né?”.

Segundo Joceana, nenhum adulto conseguiu dormir durante a noite. “Passamos conversando, tomando chimarrão, tremendo um pouco, tomando café, esperando”. Mãe de dois filhos, de 1 e 9 anos, ela diz que apenas as crianças conseguiram pegar no sono, mesmo as maiores de cinco anos já estando a par de que poderiam perder o teto. “Elas estavam mais calmas, porque a gente colocou eles numa sala. Eles não viram muita coisa”, disse.

Apesar da tensão, Clairton Mauro Chaves Rodrigues, 57, marido de Jussara, conta que passou a noite aguardando por uma decisão positiva da Justiça ou uma mudança de ordem vinda do governo do Estado. “Se eles nos tirassem, para onde a gente ia ir com as crianças? Os adultos podem ir para debaixo do viaduto, mas como é que a gente vai manter essas crianças? Se a gente está nessa ocupação, é porque a gente não tem onde morar. Esse pessoal é um povo que precisa e a gente não tem para onde ir”, afirmou o morador. “Eu, sinceramente, pelo trabalho e luta que a gente vem fazendo, tinha certeza que isso não ia ser assim tão fácil. Ele [o governador] mexer com a quantidade de pessoas que está usufruindo o prédio? Eu imaginava que ele não tinha o coração de pedra. ‘Ele vai mexer com um monte crianças que não têm onde morar?’”, complementou.

Enquanto aguardavam o início da ação da polícia, veio a surpresa. Por volta das 6h45, a assessoria jurídica dos moradores da Lanceiros Negros informou que o desembargador Jorge Luis Dall’Agnol, do plantão do Tribunal de Justiça, deferiu uma ação ajuizada por eles na noite anterior e decidiu pela “imediata suspensão da decisão que determinou a desocupação e reintegração de posse do imóvel”.

O risco iminente de conflitos que poderiam ocorrer a partir da deflagração da operação policial foi justamente o que pesou para a Justiça determinar o cancelamento da ação. “(…) Levando em consideração a notícia trazida com a inicial, e o iminente cumprimento de mandado de reintegração de posse para a retirada de várias famílias, considerando risco considerável de conflitos sociais, como comum em litígios desta natureza, relevo que o imediato cumprimento da decisão poderá gerar conflitos, ao desabrigo de eventuais diretos”, determinou o desembargador Jorge Luis Dall’Agnol, plantonista do Tribunal de Justiça.

Primeiro, vieram abraços. Advogados, vereadores e representantes de movimentos sociais e de direitos humanos festejaram. Logo em seguida, a explosão de euforia popular. Na rua e nas sacadas da ocupação. Moradores se abraçavam, cantavam e festejavam a decisão que garantia que, ao menos por mais algumas noites, as cerca de 70 famílias da Lanceiros Negros continuariam tendo um teto. “É muita emoção, eu não paro mais de chorar de alegria em saber que a nossa luta valeu, que o povo ajudou. Muita gente chegou e ajudou”, disse Clairton.

A partir de então, começou uma espera pela BM ser notificada da decisão judicial desta manhã, o que acabou acontecendo por volta das 7h25. Imediatamente, os policiais começaram, enfim, a se retirar do local. Logo em seguida, a porta da ocupação foi aberta, e moradores a manifestantes puderam comemorar, juntos, em frente ao prédio.

A luta continua

Por volta das 7h30, representantes da assessoria jurídica da ocupação deram uma coletiva de imprensa sobre a decisão judicial. “Parece que finalmente o judiciário conseguiu ouvir os nosso argumentos que iam, principalmente, no sentido de que uma reintegração de posse não pode ser executada simplesmente tirando as pessoas que estão morando aqui, colocando-as ao relento”, disse o advogado Tiago Luz.

Tiago lembrou que, em uma decisão de primeiro grau, um juiz já tinha decidido anteriormente que para levar a cabo a reintegração de posse do prédio o Estado teria que definir um destino para as famílias da ocupação. Isto acabou sendo alvo de recurso por parte do governo Sartori e aceito pela Justiça, mas revertido com a decisão do desembargador Dall’Agnol. “Ao nosso ver, o Estado não tem a menor preocupação com o que vai acontecer com essas famílias”, disse.

Segundo a assessoria jurídica, a questão deve agora ser discutida por um grupo de mediação conduzido pela Defensoria Pública, o que já estava marcado para acontecer em junho. Mesmo com a previsão de uma negociação entre moradores e o governo do Estado, a defensora pública Denise Dora, que acompanhou durante a madrugada a ação para se certificar que não seriam registrados excessos durante o cumprimento da ação, a ordem da desocupação partiu da Casa Civil. No entanto, ela lembrou que o uso da força para reintegração de posse é uma “ação irracional do ponto de vista humano” e que não confere com o que a Justiça tem determinado atualmente nesse tipo de litígio.

Os advogados também reclamam que a Brigada bloqueou o acesso de moradores e também de advogados durante a ocupação. “Moradores que chegaram do trabalho tiveram que passar a noite na rua, porque não tinham para onde se deslocar”, afirmou Tiago Luz. “Eu gostaria de destacar o despotismo, o autoritarismo, a violência da Brigada Militar contra as pessoas no seu direito de ir a vir e ao direito, dever de um advogado, de acesso ao seu cliente”, complementou a também advogada Valnez Bittecourt.

Apesar da vitória, os moradores sabem que a decisão desta terça pode ser apenas temporária. “A gente sabe que isso não tá ganho ainda, esse cara vai armar outra para nós ainda. Nós sabemos que tem muita luta pela frente a gente não pode se acomodar”, afirma Clairton.

Imagem: Moradores e apoiadores da ocupação vibram com a decisão judicial| Foto: Guilherme Santos/Sul21

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