Reflexões abertas sobre as lutas sociais no Brasil

Tenho lido muitas análises interessantes sobre as crises que assolam o país. Parlamentares, intelectuais, ativistas sociais, religiosos(as) e outros têm empreendido grande esforço para compreender o que realmente está acontecendo no Brasil, para além das aparências. E bem verdade que há também uma quantidade enorme de análises superficiais e mesmo idiotas, apresentando pretensas respostas – rasteiras, diga-se – sobre os processos sociais (no sentido amplo do termo) em andamento. Minha modesta contribuição visa tão somente abordar alguns pontos desse debate. Vamos a eles

Guilherme Carvalho – Macaréu Amazônico

1. O discurso do desencanto.

Algumas pessoas se mostram desencantadas com os “movimentos sociais”, principalmente com os sindicatos. Não obstante também incluem na cesta “os novos movimentos” que, segundo essa perspectiva, não têm rumo e nem programa. Tal narrativa questiona ainda a falta de lideranças. Ao meu ver esse ponto de vista não consegue perceber que estamos passando por um amplo processo de formação de novas lideranças, processo este que somente será mais bem percebido daqui a alguns anos com a maior experiência de quem está hoje na ocupação de prédios, terras e ruas. As crises que vivenciamos aceleraram essa formação. Uma nova geração de ativistas está sendo constituída. Todavia, e isto me parece muito importante, com base em referenciais qualitativamente diferentes de gerações anteriores. Questões como democracia, o fim do patriarcado, a incorporação da problemática racial, as lutas contra o preconceito etc., são elementos estruturantes do ideário em construção e/ou em afirmação. Há grande chance de termos adiante lideranças (homens e mulheres) mais sensíveis ao acolhimento das múltiplas identidades presentes na sociedade brasileira nas agendas das lutas coletivas (mulheres, indígenas, negros e negras, quilombolas, jovens de periferia, transgêneros, homossexuais, e muitos outras), melhor capacitadas para compreender a complexidade das lutas sociais e da necessidade de alianças estratégicas para a construção de um forte campo contra-hegemônico desde o plano local até o internacional, capaz de se contrapor ao bloco de poder que também incide nas diferentes escalas. A luta de classes não perdeu o vigor, mas sera “multicolorida”.

Por outro lado, parece estar se consolidando um conjunto interessante de novas premissas que devem “dar o tom” do que serão as lutas sociais no nosso país. A ação em rede tem prescindido em muitos casos da formalização de instâncias. Algo que as mobilizações em andamento têm demonstrado é que a atuação em rede não exige necessariamente a formalização de uma instância – um fórum, por exemplo – ou mesmo de uma entidade/instituição para a ação direta. Isso é ruim? Há certamente pontos positivos e negativos nessa fascinante experiência. Uma questão relevante diz respeito ao poder. Um movimento social que questiona o poder, mas que não avança para estabelecer ao menos as linhas gerais do que se quer de novo tende a se esvaziar e envelhecer rapidamente. Este é um risco.

Outros elementos relevantes estão associados à comunicação (fundamentalmente com a sociedade), à rapidez na disseminação das informações (o uso criativo das redes sociais é um elemento valorizado), à articulação e à execução de ações. Estas obedecem códigos aos quais as “organizações tradicionais” ainda não compreenderam ou não internalizaram devidamente. Daí a sensação de que elas estão “paradas no tempo”, se “burocratizaram”. Não obstante, isto de forma alguma significa que os sindicatos e outros formatos de organização social estejam obsoletos. Uma questão: a ação em rede que se conforma no Brasil não têm o Estado como seu único ou exclusivo oponente. E este é um diferencial importante. As lutas no campo da cultura são bons exemplos de que o que se quer ultrapassa em muito os limites do Estado (“a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”) em que pese ele ainda ser um foco importantíssimo da pressão social. Outro exemplo: a luta contra o preconceito foca no Estado, mas ataca os fundamentos da própria sociedade e remexe cada indivíduo por dentro, em muitos casos expondo suas entranhas. Da mesma maneira as questões suscitadas pelo Bem Viver questionam não somente o modelo econômico, mas colocam em xeque as bases da nossa civilização – muito mais amplo e complexo do que a discussão sobre macroeconomia. É cada vez mais evidente a um conjunto crescente da nossa população de que vivemos numa sociedade capitalista – portanto, excludente -, racista, machista, homofóbica, misógina, colonial e que encara a natureza como algo apartado da cultura – como uma fonte de recursos naturais e de materialização do lucro. Como podemos perceber o discurso do desencanto é não somente uma visão derrotista dos processos sociais em andamento, quanto limitado para compreendê-los para além das aparências.

2. As mulheres “dão/darão o tom”

Não há mais como desconhecer: o feminismo adquiriu uma capacidade estupenda de mobilização e de sensibilização sociais. Daí o porquê dos ataques violentos que sofre do bloco de poder que hegemoniza nossa sociedade (mídia corporativa, bancadas religiosas no Congresso Nacional etc.). As feministas são atacadas porque incomodam, porque contribuem para dissecar o machismo em público, porque desvelam o falso moralismo, porque questionam profundamente as estruturas e as relações desiguais de poder.

O feminismo se impôs. Ele promove o debate generalizado nas salas de aula, nas rodas de conversa, nos locais de trabalho, na mídia. Desnuda o machismo dentro dos próprios movimentos sociais, das ONGs, das igrejas e dos partidos de esquerda. Além disso, o feminismo tem contribuído a um processo ampliado de reeducação. Os homens são cada vez mais impelidos a reverem suas posições, a mudar comportamentos. O fato de a violência contra a mulher ainda continuar sendo uma das nossas principais mazelas não desqualifica o que está sendo dito aqui. O aumento das denúncias sobre as múltiplas formas de violência contra a mulher é, ao meu ver, um importante indicador dessa crescente consciência social favorecida pelas lutas feministas. Creio que a tendência é que as mulheres e seus movimentos se consolidem enquanto um dos principais motores das mudanças sociais no Brasil nos próximos anos. Quem viver verá.

3. Povos indígenas e comunidades tradicionais: um longo caminho a percorrer.

Um elemento importante da estratégia de resistência desses atores sociais foi o de urbanizar as suas lutas. Isto é, levar suas demandas e interesses para dentro das cidades, para as instituições e pessoas presentes no espaço urbano, fazer a disputa no campo onde estão seus oponentes e (potenciais) aliados). Isto não é pouco. Mostraram uma capacidade construída a duras penas de romper com as amarras físicas (distância), de estabelecer suas plataformas políticas (sabem objetivamente o que querem) e estruturar sua estratégia comunicacional (dialogam com diferentes atores sociais e fortalecem seus próprios laços). Além disso, manejam como poucos o poder de incidir nas diferentes escalas. Isto ficou evidente quando num determinado momento diversos atores sociais de distintos países – como o Vietnã e a Alemanha – manifestaram-se ao mesmo tempo contra a construção da Hidrelétrica de Belo Monte. Contudo, parece que nós amazônidas empenhados(as) na construção de um bloco contra-hegemônico não conseguimos extrair desse fato os devidos aprendizados que, se sistematizados de modo qualitativo e posteriormente disseminados, poderiam nos ajudar no aprimoramento das nossas estratégias de luta. A beleza e a complexidade do que foi representado nesse gesto global de solidariedade diz muito do que devem ser as lutas sociais nessa etapa histórica do capitalismo globalizado.

Entretanto, o preconceito e o ódio pelas causas dos povos indígenas e comunidades tradicionais é muito forte na sociedade. Isto porque são política e ideologicamente (re)alimentados de diferentes formas, onde as ideias forças de progresso e desenvolvimento jogam papel crucial. Combater tais ideias não é fácil, pois estão entre os principais suportes do próprio capitalismo. Daí que o caminho para romper tais barreiras ainda será muito longo.

4. Os movimentos pela reforma urbana precisam se reinventar
A década de 1980 foi pródiga na mobilização das periferias urbanas. As lutas por saúde, educação, regularização fundiária, moradia, infraestrutura etc., ocorreram de ponta a ponta no Brasil. As mobilizações das organizações comunitárias como suporte importantíssimo das greves operárias que ocorriam no ABC paulista foi um fato marcante nessa história. Ao longo dos anos muitas lideranças foram presas e mesmo assassinadas.

Com o fim da ditadura civil-militar muitos desses movimentos se lançaram para garantir maior participação nas decisões governamentais, debates, execução e monitoramento de políticas públicas; pela criação de espaços de gestão colegiada (como os conselhos setoriais), pela democratização do orçamento, entre outras bandeiras de luta. Muitas conquistas aconteceram desde então. Todavia, há algum tempo se percebe que a agenda institucional passou a ter prevalência sobre as ações de mobilização e pressão sociais. As reuniões e os acordos se tornaram regulares. Muitas organizações passaram até a executar elas próprias algumas ações de governo, particularmente na área habitacional. A proximidade com o aparelho do Estado se tornou tão forte que qualquer alteração na correlação de forças, como a que estamos vivenciando neste momento com a interinidade do golpista Michel Temer, repercute imediatamente no interior de tais organizações. A continuidade dessa estratégia tende a levá-las a um envelhecimento precoce. Entre outros motivos porque a “intimidade” com as forças que controlam o aparelho do Estado tende a ser utilizada por determinados grupos internos das ditas organizações para a resolução de conflitos existentes nelas próprias, ou mesmo nas disputas com outros movimentos sociais. Nesse caso, ganha “quem tem bala na agulha”. Ou seja, quem dispuser de múltiplos recursos para esse enfrentamento (humanos, materiais, financeiros etc.).

5. Por fim….
Outros itens importantes nesse debate diz respeito à relação entre a academia e os movimentos sociais, bem como as problemáticas suscitadas pelas crises ambiental e climática. Mas isso será objeto de uma outra postagem.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

2 × two =