Carta da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil ao STF sobre a vaquejada

Excelentíssimos Senhores Ministros do Colendo Supremo Tribunal Federal,

Os professores de Direito Ambiental que esta carta subscrevem, integrantes da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil, extremamente preocupados com os rumos do julgamento em curso da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983, por meio da qual o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, questiona a validade da Lei 15.299/2013, do Estado do Ceará, vêm à presença de Vv.Ee. apresentar as seguintes ponderações:

01. Ninguém ignora que haja quem considere maltratar um animal uma forma válida de diversão, uma atividade cultural ou desportiva. Da mesma forma, há também quem ache que subjugar uma mulher é uma conquista do homem, que espancar uma criança é um direito dos pais e que encarcerar um idoso num quarto é uma solução prática para os dias atuais.

02. Considerar vaquejada, farra do boi ou rinha de galo meras manifestações culturais que mereçam ser preservadas é um paradigma de pensamento próprio daquele que despreza seus semelhantes em situação vulnerável. Se práticas “culturais” não evoluíssem, o Coliseu ainda estaria funcionando; os moradores de Esparta ainda atirariam crianças com deficiência física ou mental do alto do monte Taigeto, por não serem aptas a integrar seu exército; não teria havido a abolição da escravidão, em razão dos graves prejuízos à economia rural brasileira do Século XIX; as touradas não teriam sido proibidas em Barcelona desde 2010 (apenas para citar alguns exemplos)!

03. O Ministério Público Federal ajuizou uma ação contra uma lei do Ceará que regulamenta as “vaquejadas”, modalidade deprimente de espetáculo altamente lucrativo e que hoje não tem absolutamente nenhuma relação com a labuta diária dos vaqueiros tradicionais – esta sim uma prática que deve integrar o patrimônio cultural brasileiro. Conforme esclarece o MPF na peça inicial, a vaquejada consiste em espetáculo no qual são formadas “duplas de competidores que correm a galopes, cercando o boi em fuga. O objetivo é conduzir o animal até uma área marcada com cal e, estando ali, agarrá-lo pelo rabo, torcendo-o para, na queda, posicioná-lo com as quatro patas para cima”.

04. Para o pesar dos que atuam na área ambiental, forma-se uma tendência junto ao STF segundo a qual a vaquejada seria uma manifestação cultural que deve ser garantida. Em outras palavras, a lei cearense nada teria de inconstitucional.

05. Não podemos crer que o Supremo Tribunal Federal permita a consumação do retorno à idade média em nosso país. Apaga-se a previsão constitucional do art. 225, § 1º, inciso VII, que reconhece que os animais são seres sencientes (i.e., sentem dor e prazer) e, por isso, proíbe sejam eles submetidos a crueldade.

06. Daí será um passo para se permitir a agressão a qualquer outro ser vivo em situação de vulnerabilidade. A vaquejada, sem dúvida, se assemelha à farra do boi, às rinhas de galo, aos animais confinados em circos, às brigas de cachorros, etc. Atente-se que vários Estados brasileiros já aprovaram legislação que proíbe o uso de animais em circos (Goiás, Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo) e diversos municípios já fizeram o mesmo.

07. Por banalizar a dor e o sofrimento em prol do lucro, a vaquejada é prática que não merece amparo constitucional. A imagem de quem agride uma mulher, uma criança, uma pessoa com deficiência, um trabalhador humilde (ou daquele que testemunha essa agressão e não faz nada para impedi-lo) não é tão diferente daquela do sujeito que se diverte em ver a dor nos olhos de um animal acuado.

08. Não ignoramos que haja quem entenda que referida prática distancia-se de outras práticas congêneres, como a Farra do Boi ou a Rinha de Galo. Para os defensores da vaquejada, nos outros casos há sempre a morte cruel e lenta dos animais, enquanto nesta os animais correm por natureza e instinto e são “apenas” derrubados quando puxados pelo rabo em terreno coberto de areia.

09. Em busca de argumentos que lhes sejam favoráveis, afirmam também os adeptos da vaquejada que barbárie maior é a criação em regime especial de contenção de bezerros, para posterior matança para satisfação do apetite humano por carne de animais.

10. O argumento, porém, é cínico e não socorre os defensores da vaquejada. Não há dúvida que é preciso combater também práticas de abate que provocam sofrimento e medo nos animais, mas também não resta nenhuma dúvida que a vaquejada envolve a instrumentalização dos animais para finalidade de entretenimento e, como tal, deve ser questionada, tal como devemos questionar a legitimidade moral e jurídica de circos com animais, dentre outras atividades.

11. Na vaquejada a crueldade é ínsita, inerente à prática, pois envolve necessariamente o tracionamento da cauda do animal e sua consequente derrubada ao solo. A cauda é extensão natural da coluna vertebral, região rica em vasos sanguíneos e terminações nervosas e, portanto, extremamente vulnerável a graves e permanentes lesões.

12. Além disto, mesmo que eventualmente caia na areia, as lesões ortopédicas são muito comuns, haja vista a aceleração, a velocidade da queda e o peso do animal, o que, em física, se denomina de quantidade de movimento.

13. Por analogia, imagine-se não um touro, mas um ser humano (que tem um peso menor e menor velocidade) correndo e, em sequência, sendo puxado pelo braço e derrubado desavisadamente ao solo. Ninguém negaria que submetermos alguém a este gesto violento seria um ato odioso, ilícito, condenável.

14. Embora haja evidentes diferenças entre humanos e animais, e a intenção aqui não é a equiparação absoluta entre eles, devemos tentar aplicar a regra de ouro no sentido sempre de nos colocarmos no lugar do outro, especialmente quando o outro está em condição de vulnerabilidade. Animais são outros. Estão no âmbito de nossa comunidade moral na qualidade de seres sensíveis à dor e ao sofrimento. Não vemos, portanto, justificativa para tal prática.

15. Ainda que fossem tidas como “culturais”, práticas que causem dor e sofrimento aos animais (como no caso da vaquejada em que se tem o deslocamento da coluna vertebral dos bois puxados pelo rabo e a quebra das patas quando caem) são absolutamente vedadas pelo art. 225, § 1º, inciso VII da Constituição Federal de 1988. E, atente-se, esta é uma regra (e não princípio) que estabelece expressamente que o Estado deve coibir as práticas que submetam os animais a crueldade. Não há que se sopesar tal regra com a proteção das manifestações culturais (princípio), pois nelas está imanente o limite de não incidirem na vedação da crueldade. Só é legítima a manifestação na medida em que não é cruel. Permitir a vaquejada é permitir a continuidade de uma cultura de violência, opressão e dor.

16. A Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil e os seus professores associados manifestam profunda preocupação com o risco de grave retrocesso jurisprudencial que poderá implicar em banalização da crueldade. Em Minas Gerais, na Justiça Federal, há teses em curso propondo a exclusão de ilicitude em razão de rinha de pássaros. Em prevalecendo a votação pela constitucionalidade da lei cearense, serão fortalecidas tais argumentações, como a de que rinha é também aspecto cultural.

17. A população brasileira, em sua imensa maioria, não aceita a legitimação de atividades lucrativas que têm por alicerce a violência e a covardia. Podemos nos divertir sem o uso de animais. Ainda temos muito a evoluir, inclusive no que tange ao tratamento dispensado aos animais abatidos para nos servir de alimento. O fim das vaquejadas também é um sinal de evolução e o brasileiro, que é criativo, certamente encontrará outros meios para se divertir.

São Paulo, 7 de junho de 2016

Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil

Guilherme José Purvin de Figueiredo (Coordenador-geral)

Professores associados da APRODAB que subscrevem esta carta:
1.    Édis Milaré, professor de Direito Ambiental do COGEAE-PUC/SP
2.    Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
3.    Odete Medauar, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
4.    Paulo Afonso Leme Machado, Professor de Direito Ambiental da UNIMEP
5.    Alessandra Galli, professora de Direito Ambiental da Pós-Graduação da Escola da Magistratura do Paraná (EMAP) – Curitiba/PR
6.    Ana Maria de Oliveira Nusdeo, Professora de Direito Ambiental da Faculdade de Direito da USP – São Paulo/SP
7.    Ana Maria Jara Botton Faria, Professora de Direito Ambiental da FESPPR – Curitiba/PR
8.    Ana Stela Vieira Mendes Câmara, Professora de Direito Ambiental do Centro Universitário Christus – Fortaleza/CE
9.    Andrea Maria da Silva Rocha, Professora da Direito Ambiental das Faculdades de Vitória – ES
10. Andreas J. Krell, Professor de Direito Ambiental da Faculdade de Direito da UFAL e da UFPE – Maceió/AL
11. Anete Garcia Fiuza, Professora da pós graduação em Direito AgroAmbiental e Gestão e Perícia Ambiental da UFMT
12. Beatriz Souza Costa, Professora da disciplina de Direito Constitucional Ambiental da Escola Superior Dom Helder Câmara – MG
13. Belinda Pereira da Cunha, Professora de Direito Ambiental – PPGCJ e PRODEMA/UFPB
14. Branca Maria Pereira da Silva Martinz da Cruz, Professora de Direito do Ambiente da Universidade Lusíada de Lisboa, Portugal
15. Carolina Dutra, Professora de Direito Ambiental do Centro Universitário Monte Serrat – Santos/SP
16. Christianne Bernardo, Professora de Direito Ambiental da Escola Superior de Advocacia da OAB, Subseção de Barra da Tijuca – RJ
17. Daniel Braga Lourenço, professor de Direito Ambiental da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro/RJ
18. Danielle de Andrade Moreira, professora de Direito Ambiental da PUC/Rio – Rio de Janeiro/RJ
19. Danielle Mendes Thame Denny, Professora de Direito Ambiental da UNIP – São Paulo-SP
20. Edson Ricardo Saleme, Professor de Direito Ambiental da UNISANTOS
21. Élida Séguin, professora de Direito Ambiental do IBAP e Defensora Pública/RJ – Rio de Janeiro/RJ
22. Elival da Silva Ramos, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Procurador Geral do Estado de São Paulo
23. Elizabeth de Almeida Meirelles, professora de Direito Internacional do Meio Ambiente da Faculdade de Direito da USP – São Paulo/SP
24. Erika Bechara, Professora de Direito Ambiental da PUC/SP – São Paulo/SP
25. Erika Pires Ramos, Pesquisadora na UNISANTOS (Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Vulnerabilidades) – Santos/SP
26. Fernanda Menna Pinto Peres, Professora de Direito Ambiental da Universidade Católica de Santos – SP
27. Fernando Cavalcante Walcacer, Professor de Direito Ambiental da PUC-Rio
28. Fernando de Azevedo Alves Brito, Professor de Direito Ambiental do IFBA, Vitória da Conquista/BA
29. Fernando Reverendo Vidal Akaoui, Professor de Direito da Universidade Santa Cecília – UNISANTA – Santos/SP
30. Flávia C. Limmer, Professora de Direito Ambiental da PUC-RIO
31. Francelise Pantoja Diehl, Professora de Direito Ambiental da UNIVALI – SC
32. Francisco Ubiracy Craveiro de Araújo, Professor de Direito Ambiental do IBAP – Brasília/DF
33. Geovana Cartaxo, Professora de Direito Ambiental da Universidade Federal do Ceará
34. Germana Belchior, Professora de Direito Ambiental da Faculdade 7 de Setembro – Fortaleza/CE
35. Guilherme José Purvin de Figueiredo, Professor de Direito Ambiental do COGEAE-PUC/SP, NIMA-PUC/Rio e Escola Paulista de Magistratura
36. Helena Sampaio, Professora de Direito Ambiental da Faculdade Farias Brito – Fortaleza/CE
37. Heline Sivini Ferreira, Professora da Faculdade de Direito da PUC/PR – Curitiba/PR
38. Isabella Franco Guerra, Professora de Direito Ambiental da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio – Rio de Janeiro/RJ
39. Jalusa Prestes Abaide, Professora de Direito Ambiental da UFSM – Santa Maria/RS
40. Joana Setzer, British Academy Postdoctoral Fellow – London School of Economics and Political Science – Londres/GB
41. João Alfredo Telles Melo, Professor de Direito Ambiental da Faculdade 7 de Setembro – Fortaleza/CE
42. Jorge Alberto Mamede Masseran, Professor de Direito Ambiental da Universidade Presbiteriana Mackenzie – Campinas/SP
43. José Antônio Tietzmann e Silva, Professor de Direito Ambiental da PUC Goiás
44. José Flor de Medeiros Júnior, Professor de Direito Ambiental
da Faculdade Maurício de Nassau – Campus – Campina Grande – PB
45. José Nuzzi Neto, Professor do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – São Paulo/SP
46. José Renato Nalini, Professor de Direito Ambiental e Secretário de Estado da Educação – São Paulo/SP
47. José Rubens Morato Leite, Professor de Direito Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – Florianópolis/SC
48. Larissa Schmidt, Professora de Direito Ambiental da UNICEUB Brasília
49. Lúcia Reisewitz, Professora de Direito Ambiental da PUC/SP-COGEAE e Universidade São Judas Tadeu – São Paulo/SP
50. Luciana Cordeiro de Souza Fernandes, Professora de Direito Ambiental da UNICAMP – SP
51. Lucíola Maria de Aquino Cabral, Professora de Direito Ambiental da UNIFOR – Fortaleza/CE
52. Marcelo Abelha Rodrigues, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo – Vitória/ES
53. Marcelo Kokke Gomes, professor de Direito Ambiental da Escola Superior Dom Helder Câmara – Belo Horizonte/MG
54. Márcia Brandão Carneiro Leão, Professora de Direito Ambiental da Universidade Presbiteriana Mackenzie – Campinas/SP
55. Márcia Dieguez Leuzinger, Professora de Direito Ambiental da UNICEUB, Brasília/DF
56. Maria Lúcia de Castro Teixeira, Professora de Direito da UNIFOR – Fortaleza/CE
57. Mário Pragmácio,  Professor do Mestrado Profissional  em Preservação do Patrimônio Cultural – PEP/IPHAN
58. Marisa Medeiros Santos, Professora de Direito Ambiental da Faculdade de Bertioga/SP e da Faculdade do Guaruja/SP
59. Martinho Olavo Gonçalves e Silva, Professor de Direito Ambiental da Faculdade Cearense – FAC
60. Mary Lucia Andrade, Professora de Direito Ambiental da UNIFOR – Fortaleza/SP
61. Natália Jodas, Professora de Direito Ambiental da UNIP – Campus de São José do Rio Preto-SP
62. Norma Sueli Padilha, Professora de Direito Ambiental da UNISANTOS e da UFMS – Santos/SP
63. Oscar Alexandre Teixeira Moreira, Professor de Direito Ambiental das Faculdades Integradas de Caratinga – Caratinga/MG
64. Oscar Graça Couto, Professor de Direito Ambiental da PUC/Rio
65. Paulo Velten, Professor de Direito Ambiental da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES – Vitória/ES
66. Renata Neris, Professora de Direito Ambiental da Faculdade Farias Brito – Fortaleza/CE
67. Ricardo Stanziola Vieira, Professor de Direito Ambiental da UNIVALI – SC
68. Rodrigo Jorge Moraes, Professor de Direito Ambiental da PUC-SP
69. Rodrigo Vieira Costa, Professor do Curso de Direito da Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA, Campus Mossoró/RN
70. Rogério Portanova, Professor de Direito Ambiental da UFSC – Florianópolis/SC
71. Rogério Rocco, Professor da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro
72. Sandra Verônica Cureau, Professora de Direito Ambiental da Escola Superior do MPU – Brasília/DF
73. Sheila Cavalcanti Pitombeira, Professora de Direito Ambiental da UNIFOR – Fortaleza/CE
74. Silvia Cappelli, Professora de Direito Ambiental da PUC/RS
75. Sônia Maria Pereira Wiedmann, Professora Doutora de Direito Ambiental Internacional – Brasília/DF
76. Solange Teles da Silva, Professora de Direito Ambiental da Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo/SP
77. Tatiana Tucunduva P. Cortese, Professora do Mestrado em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da UNINOVE – São Paulo/SP
78. Teresa Cristina de Deus, Professora de Direito da UNIP e do COGEAE/PUC-SP – São Paulo/SP
79. Themis Aline Calcavecchia dos Santos, Professora de Direito Ambiental  das Faculdades Tecnológicas do Rio de Janeiro – Faeterj/Faetec
80. Tiago Fensterseifer, Professor de Direito Ambiental da PUC-RS
81. Vanêsca Buzelato Prestes, Professora convidada do Curso de Especialização em Direito Internacional Ambiental da UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
82. Virginia Totti Guimarães, Professora de Direito Ambiental da PUC-Rio – Rio de Janeiro/RJ

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