Leitura cínica de decreto do prefeito (que proíbe apreensão) e bandeirantismo midiático visam compor imagem de moradores de rua como “feios, sujos e ingratos”
Por Alceu Luís Castilho – Outras Palavras
O antropólogo José Ribamar Bessa Freire cunhou no fim de semana a expressão “agrobandeirantes“, em referência à matança de indígenas no Mato Grosso do Sul. Dos excluídos do campo aos excluídos da cidade, temos em São Paulo a matança – real e simbólica – de pessoas em situação de rua. Centenas deles morrem por ano. E, para completar, ainda são vítimas de mortes simbólicas, de assassinatos de reputação. Para esta tarefa existem os bandeirantes midiáticos.
Como definir de outra forma a capa do Estadão de hoje? Ao fundo, o Pátio do Colégio. Em primeiro plano, cobertores. “Cobertores abandonados”, diz o jornal. “Após fim de semana de doações para moradores de rua”.
Ou seja, além de enfrentarem o frio, a tuberculose, a pneumonia, o risco de estupros, a violência dos guardas metropolitanos, os moradores de rua ainda são descritos como ingratos. E desleixados. Por abandonarem seus pertences. A generosa elite paulistana – essa que oferece as cobertas – ainda estaria se preocupando em excesso. Doando cobertores para quem os abandona.
Nada disso foi dito. Mas é o que está embutido nas imagens, na edição. Na mesma capa onde lemos que a Samarco sabia de trinca em barragem, ou de uma dívida de R$ 65 bilhões da Oi, ou de R$ 3,3 bilhões liberados por Michel Temer para emendas de deputados aliados, quem é que ganha imagem negativa? Os moradores de rua.
E isto sem direito a aparecerem. Sem voz, sem rostos. Invisíveis. No espaço off da foto. Só ganham o direito de serem retratados como aqueles-que-abandonam-os-cobertores. (A capa similar da Folha traz um morador de rua procurando algo.) É a semiótica da maldade, do escárnio, aliada ao cinismo dos responsáveis pela limpeza em São Paulo.
Esses decidiram que não iam recolher as cobertas, após o prefeito Fernando Haddad decretar, no sábado, que as apreensões estavam proibidas. (Como se o decreto se referisse a objetos abandonados, e não àqueles utilizados pelo povo de rua.)
São Paulo tem entre 15 mil e 20 mil moradores de rua. Este continua sendo o fato que deveria motivar espanto. Os cobertores amontoados por funcionários da prefeitura – e obviamente não enfileirados pelas próprias pessoas em situação vulnerável – deveriam chamar a atenção pelo que revelam de horror opressor, e não de suposto descaso pelos próprios oprimidos.
Chegamos, assim, com a ajuda de editores de primeira página embrutecidos e de patrões despudorados, a uma sequência narrativa mais do que surreal. Moradores de rua vivem em condições degradantes porque vivem em uma sociedade que os expulsa, onde 62 pessoas detêm metade do PIB mundial. Cunhas e teles e uma doleira e a Samarco rondam a notícia sobre os moradores de rua. Mas o desperdício – aos olhos dessa mídia violenta – é o dos cobertores.