No Taqui Pra Ti
Há mais de trinta anos, em setembro de 1982, um telegrama da Agência France-Presse chegava a Paris noticiando a luta dos índios Pataxó-Hã-Hã-Hãe que iniciavam o processo de expulsão do grileiros invasores de suas terras. Naquele dia cerca de 50 bonecos do Teatro Dadá, de Curitiba, encenavam o sonho de um índio na peça que representou o Brasil no VI Festival Mundial de Teatros de Marionetes, em Charleville-Mezières, França. Foi durante o VI Festival Mundial de Teatros de Marionetes, realizado de 24 de setembro a 1º de outubro de 1982, que contou com a participação de mais de 40 países.
Foi mera coincidência. “O Sonho do Pongo” encenado pelo grupo brasileiro não relata diretamente a luta dos Pataxó, mas permite refletir sobre o tema. É uma adaptação de um conto quíchua anônimo recolhido pelo escritor peruano José Maria Arguedas. A história conta a exploração do trabalho indígena fornecidos pelos “pongos” – denominação dada aos índios que habitam as montanhas andinas e que, expulsos de suas terras, são obrigados a trabalhar de graça na casa do “gamonal” – o patrão, em troca de cama, comida ou do aluguel da terra. Os bonecos encenam os diferentes e excessivos trabalhos realizados pelo pongo, a relação de exploração, o papel da igreja e, finalmente, a visão dos índios sobre a “justiça divina”.
O sonho
O espetáculo começa com um índio descendo do pico das montanhas para cumprir suas tarefas domésticas na fazenda do patrão. O índio é obrigado, então, a fazer todo tipo de tarefas domésticas: engraxar as botas do “gamonal”, lavar roupa, varrer a casa, lavar os pratos e até mesmo tricotar. Passa ainda por sofrimentos similares aos narrados por Arguedas em seus contos “Água” e “Warma kuyay” (amor de criança).
Todas as tardes, na hora do Angelus, quando os empregados da fazenda se reúnem para fazer orações, o patrão conta aos índios o sonho que teve enquanto dormia a siesta. Ele sempre sonhava com os pongos, em papéis humilhantes, obrigando-os a representar teatralmente, na frente de todos, cada episódio sonhado. O patrão sonhou que o pongo era um cachorro? O pongo é obrigado a ladrar. No dia seguinte no sonho patronal um toureiro aparece enfiando bandarilhas e farpas no touro, que é um pongo? O capataz encarna o toureiro e o índio é obrigado a fazer o papel de touro. Nesta cena, o patrão pede ao público que grite “olé’, mas não teve sucesso em Charleville.
Numa bela tarde, quando o patrão se preparava uma vez mais para humilhar o pongo, este se adiantou e pela primeira vez tomou a iniciativa de dirigir-lhe a palavra. Pediu respeitosamente licença para também contar o seu sonho. O patrão concede e escuta curioso. O índio narra, então, que enquanto dormia, sonhou que ele e o gamonal haviam morrido e subiram juntos, nus como Adão e Eva, à presença de Deus para serem julgados.
Lá, no céu, o Supremo Pai chamou um anjo de luz, muito belo, com trajes de seda, que trazia em suas mãos uma taça de ouro contendo mel perfumado com uma flagrância floral ensolarada. Ordenou que ele lambuzasse o corpo do patrão, o que foi feito. Em seguida, chamou um anjo torto, nauseabundo e satânico, fedendo a enxofre, que carregava um penico cheio de excremento humano. Mandou que derramasse o conteúdo sobre o corpo do pongo.
O gamonal ficou entusiasmado e feliz com a solução, dizendo que a vontade divina se manifestava com justiça, pois reproduzia no juízo final a ordem natural das coisas que aconteciam na terra.
Acontece que a narrativa do sonho ainda não havia terminado. No final, depois de examinar profundamente a vida dos dois e de pesar os pecados e as virtudes de cada um, Deus ordenou:
– Agora, que um lamba o outro!
Na cena do festival os dois bonecos colocam para fora uma enorme língua e, numa cena escatológica e violenta, se lambem mutuamente como Deus ordenara.
Luta indígena
O espetáculo em Charleville, que durou uma hora, foi apresentado para uma sala lotada por cerca de 400 pessoas de mais de 40 nacionalidades. Os bonecos falaram português, mas uma tradução simultânea foi feita ao francês por um certo titiriteiro conhecido como José Freire Bigodinho. Duas outras apresentações aconteceram na Casa do Brasil, em Paris, e outras duas em Madri e Lisboa.
– Por que um tema peruano para representar o Brasil?
Diante da pergunta, o diretor do Teatro Dada, Euclides Coelho de Souza, responsável pela adaptação do conto, explicou:
– O tema do colonialismo é universal. Na América Latina, a opressão colonial significou a tentativa permanente de esmagamento e destruição das culturas indígenas, que resistiram e continuam resistindo ainda hoje contra a invasão de seus territórios e contra a discriminação de suas línguas e culturas. Escolher um tema peruano foi ainda uma forma de homenagear os povos andinos, com quem convivemos durante mais de sete anos em que estivemos exilados no Peru e proibidos de representar nossas peças no Brasil.
Euclides nasceu em Roraima, onde passou a infância convivendo de perto com as injustiças e o preconceito contra os povos Makuxi, Wapixana, Ingaricó e Taurepang. Nos anos 1950, cursou o secundário em Manaus, para onde desciam muitos índios do Rio Negro. Este convívio despertou uma sensibilidade que foi amadurecida na Bolívia e no Peru, onde viveu exilado durante vários anos, fazendo teatro de bonecos.
O Teatro de Bonecos Dadá, composto por Euclides e Adair Chevonika, que é paranaense, percorreu diversos países no exílio: Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, para fixar-se finalmente no Peru. Dedicaram toda sua vida ao teatro de bonecos e, na volta do exílio, voltaram a apresentar-se todos os domingos no Teatro do Piá, em Curitiba.
Com os títeres, eles trabalharam com um público adulto, em processo de alfabetização e conscientização, tanto no Chile como no Peru. Apesar dos 50 bonecos coloridos e belos apresentados na peça com técnicas de luva, de vareta e outras, manipulados com refinamento, Euclides faz questão de enfatizar que é contra a preocupação tecnicista excessiva que possa levar a um descuido com a mensagem, o que ocorre algumas vezes com esse tipo de teatro.
– A técnica do teatro de bonecos é fundamental, porque sem ela não se pode dizer nada. É importante que se faça um teatro o mais refinado possível; no entanto, não podemos esquecer que a técnica tem de estar subordinada a uma mensagem, a um conteúdo, que reflita as emoções humanas, as lutas cotidianas a alegria, a dor, o sofrimento, o humor, os problemas concretos de uma cultura.
A voz do índio
Euclides explica ainda que esta peça, quando representada no Festival de Curitiba, provocou grande polêmica. Uns acharam que era “revolucionária”, mas muito dura com a Igreja, na medida em que o patrão usa as orações para cristalizar sua dominação. Outros chegaram a classificá-la de “reacionária”, argumentando que a justiça não é feita pelos próprios povos indígenas, que transferem para uma entidade de fora, o próprio Deus, o ajuste de contas.
Euclides e Adair respondem que o objetivo preciso da peça é justamente abrir a discussão e eles se limitaram apenas a recriar um conto indígena anônimo, que circula nos Andes e foi elaborado depois da chegada dos espanhóis.
– A nossa finalidade é abrir espaço para a voz do índio, tal como ela se apresenta hoje, denunciando o colonialismo. Queremos sensibilizar as pessoas, através do teatro de bonecos, para uma solidariedade maior com os povos indígenas de nossa América.
P.S.1 Versão ligeiramente modificada da que foi publicada originalmente no jornal PORANTIM – Em defesa da causa indígena. Brasília. Ano V, Nº 45, novembro de 1982.
http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=hemeroindio&pagfis=3652&pesq=
P.S. 2 – “O Índio virou pó de café?” é o título do livro de Marcelo Lemos lançado nessa sexta-feira, 15 de julho de 2016, na Casa da Ciência da UFRJ, numa mesa redonda, seguida de sessão de autógrafos. Trata-se de uma versão atualizada da dissertação de mestrado defendida em 2004. Analisa a resistência dos índios Puri, Coroado e outros no século XIX frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba (RJ e MG). A pesquisa foi orientada em 2004 pelo historiador Marco Morel da UERJ que prefaciou o livro, em cuja orelha, redigi essa pequena nota: “Dona Elisa, lá no Amazonas, usa o pó de café misturado com farinha de ossos e de sangue para adubar o solo do quintal onde cultiva plantas. Foi isso que Marcelo Sant´Ana Lemos fez. Localizou nos arquivos documentos inéditos e os analisou criticamente para fertilizar a resistência dos índios diante da expansão cafeeira no Vale do Paraíba, do esbulho de suas terras e da extrema violência contra sua integridade física, cultura, língua. O índio virou pó de café? O autor do livro que você vai ler retira o véu que encobria os Coroado, os Puri e os Coropó, colocando-os outra vez no mapa do Rio de Janeiro.