O ideal de corpo sexuado e a normatização da vida: binarismo de gênero X despatologização das identidades trans e travestis. Entrevista especial com Tatiana Lionço

“A Medicina moderna ocultou sistematicamente a evidência material de corpos intersexo, que passaram a ser invisibilizados por meio do binômio patologização/normalização. A Medicina encara estes corpos não como sinais do limite de suas verdades, mas como erros essenciais”, ressalta a psicóloga

Por Leslie Chaves – IHU On-Line

Quais são os limites éticos e da dita precisão científica? Esse é um questionamento importante de se refletir quando se tem em perspectiva áreas que alicerçam suas premissas em resultados de análises laboratoriais, que acabam conferindo o status de “verdade absoluta” a tais concepções.

Um dos exemplos mais candentes dessa questão são as discussões acerca da sexualidade e dos modos de experienciar as identidades de gênero, que extrapolam a relação física e morfológica, pertencendo a uma lógica mais complexa, ampla e profunda, mas sobre as quais ainda prevalece uma demarcação científica que busca definir o que é normal e anormal.

De acordo com a psicóloga Tatiana Lionço, esse ponto de vista sobre as identidades de gênerofundamentado na ciência como saber exato pode desembocar em justificativas para assimetrias sociais. “Os discursos científicos sobre diferenças entre homens e mulheres mantêm presunções de verdade inquestionáveis sobre o sentido das vidas, pois permaneceram ideologicamente comprometidos com a verdade da diferença essencial entre homens e mulheres. Os discursos dasciências modernas assumiram paradigmaticamente a diferença entre os sexos como dado bruto incontornável a partir do qual se lançaram inferências de cunho naturalizante que reificam a desigualdade social sexista, mas tambémheterossexista e cis-sexista”, frisa.

Entre outros aspectos, ao longo da entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a psicóloga analisa os diversos processos que são afetados por uma concepção binária acerca do gênero, como a qualidade do acesso aos serviços de saúde e a construção das identidades de gênero dos sujeitos de uma maneira geral; e questões mais específicas, como a retificação de nome e sexo no registro civil para pessoas que se identificam com um gênero diferente do qual foram registradas, e o acesso a terapias e procedimentos cirúrgicos relacionados à transexualização.

Conforme explica Tatiana Lionço, “o acesso às tecnologias biomédicas existentes depende estritamente do aval da própria medicina na enunciação do que haveria de ser normal ou não. A questão é: que sujeitos humanos a medicina consente em produzir? Sob o manto da natureza, a medicina tem sistematicamente produzido a norma e condicionado a inteligibilidade sobre não apenas a anormalidade, mas, sobretudo, em que condições aceita converter anormais em normais. É assim que regula, por exemplo, a construção de corpos sexuados de pessoas intersexo e transexuais que, ainda que sejam explicitamente efeito das biotecnologias e procedimentos cirúrgicos, dependem de uma regulação moral sobre quais haveriam de ser corpos humanamente viáveis ou não”.

Tatiana Lionço é graduada em Psicologia, mestra em Psicologia Clínica e doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília – UnB, instituição onde atualmente é pesquisadora e docente no Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento. Também é conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que maneira você avalia o modo binário como frequentemente algumas áreas da saúde têm entendido e tratado a questão do gênero?

Tatiana Lionço – O pensamento científico moderno naturalizou o binarismo de gênero por meio de múltiplos discursos, com ênfase nas narrativas médicas e jurídicas, mas também pelos discursos psi, incluindo a Psicologia e também a Psicanálise. Podemos pensar o patriarcado e sua ideologia de dominação masculina como uma herança cultural e simbólica pré-moderna que moldou significativamente a inteligibilidade moderna sobre os sujeitos, práticas sociais e mesmo parâmetros institucionais.

É um equívoco pensar que a secularização teria superado a arbitrariedade da verdade transcendental judaico-cristã no ocidente pelo simples deslocamento da legitimidade do saber para as narrativas das ciências. Os discursos científicos sobre diferenças entre homens e mulheres mantêm presunções de verdade inquestionáveis sobre o sentido das vidas, pois permaneceram ideologicamente comprometidos com a verdade da diferença essencial entre homens e mulheres. Os discursos das ciências modernas assumiram paradigmaticamente a diferença entre os sexos como dado bruto incontornável a partir do qual se lançaram inferências de cunho naturalizante que reificam a desigualdade social sexista, mas também heterossexista e cis-sexista.

Afirmação de diferenças físicas como legitimação de estereótipos

Na Medicina, o binarismo tem sido naturalizado tanto por meio da diferenciação biológica essencial entre machos e fêmeas, que percorre desde a anatomia fisiológica até, mais recentemente, a busca por determinantes genéticos e neurológicos. Desconsidera-se a ampla variabilidade corporal e anatômica, reificando estereótipos tais como superioridade da força física de homens a despeito dos processos de educação generificados, que incentivam práticas desde a infância que desenvolvem aspectos físicos também distintos como, por exemplo, a força física que decorre de anos de permissão e incentivo a atividades esportivas e mesmo brincadeiras que impliquem habilidades de espacialidade, motricidade etc. para meninos.

Estudos sobre diferenças cerebrais entre homens e mulheres também desconsideram significativamente a história de desenvolvimento na busca desenfreada por uma evidência biológica que naturalize características emocionais e cognitivas. Ainda, a Medicina moderna ocultou sistematicamente a evidência material de corpos intersexo, que passaram a ser invisibilizados por meio do binômio patologização/normalização. A Medicina encara estes corpos não como sinais do limite de suas verdades, mas como erros essenciais.

Binarismos de gênero e padronização de comportamentos e expressões

A intersexualidade escancara a arbitrariedade do discurso médico moderno que essencializa a diferença entre homens e mulheres, mas é preciso lembrar que a medicina sistematicamente manipula os corpos das mulheres por meio do acompanhamento ginecológico, bem como da oferta de tecnologias biomédicas, farmacológicascosméticas comprometidas com um certo ideal de corpo sexuado. Além disso, a medicina psiquiátrica, que apenas com o advento das neurociências passa a dispor de suas evidências biológicas, se constituiu historicamente como discurso de atribuição de anormalidade psíquica pautada em aspectos estritamente morais, atribuindo caráter doentio a expressões subjetivas em desacordo com a ideologia patriarcal da estereotipia de gênero, da expressão da masculinidade e da feminilidade bem como do desejo e das práticas sexuais.

O pensamento jurídico, por sua vez, se pauta grandemente nas verdades médicas para regular a institucionalização das vidas. Isso faz com que as pessoas fiquem reféns do aval da medicina para uma série de pleitos individuais que se relacionam a dimensões da vida que escapam muitas vezes às normas que se construíram como verdades científicas. Precisamos do aval da Medicina e isso pode ser entendido como um abuso de poder generalizado e que deve ser passível de questionamento explícito. Um exemplo é que apenas com a despatologização da homossexualidade nos manuais diagnósticos da Medicina é que as pessoas homossexuais puderam acessar direitos humanos e sociais básicos, tais como constituir família reconhecível juridicamente, bem como adotar crianças e mesmo acessar tecnologias reprodutivas assistidas.

A decisão sobre a viabilidade humana dos corpos

O acesso às tecnologias biomédicas existentes depende estritamente do aval da própria medicina na enunciação do que haveria de ser normal ou não. A questão é: que sujeitos humanos a medicina consente em produzir? Sob o manto da natureza, a medicina tem sistematicamente produzido a norma e condicionado a inteligibilidade sobre não apenas a anormalidade, mas, sobretudo, em que condições aceita converter anormais em normais. É assim que regula, por exemplo, a construção de corpos sexuados de pessoas intersexo e transexuais que, ainda que sejam explicitamente efeito das biotecnologias e procedimentos cirúrgicos, dependem de uma regulação moral sobre quais haveriam de ser corpos humanamente viáveis ou não.

Evidentemente, o ativismo trans tem tensionado este poder hegemônico ao pleitear autonomia na decisão sobre o acesso a procedimentos biomédicos, implicando inclusive demandas jurídicas a despeito das “correções” normalizadoras que a medicina oferece. Esse é o caso de pessoas transexuais que buscam retificação do nome e sexo no registro civil a despeito da plástica na genitália.

Fuga da condição binária e da patologia

Os discursos psi, por sua vez, contribuíram para a patologização das sexualidades e expressões de gênero não hegemônicas e apenas recentemente passam a ressignificar seus discursos na lógica do reconhecimento da diversidade subjetiva e das práticas sexuais não heterossexuais. A Psicanálise é o campo de conhecimento de onde surge inclusive o termo identidade de gênero, que emerge em um contexto de normalização dos corpos intersexo e de legitimação dos procedimentos cirúrgicos como solução terapêutica.

Já a Psicologia naturalizou a diferença entre homens e mulheres como se gênero e/ou sexo fossem variáveis autoevidentes a partir das quais se reificou uma série de estereótipos tanto nos discursos sobre desenvolvimento humano nos aspectos cognitivos, emocionais e sociais, quanto em outros campos de atuação e de produção de conhecimento, tais como a própria clínica psicológica, mas também em estudos quantitativos e de relevância estatística na psicologia social. Mais recentemente a Psicologia evolucionista tem contribuído para a naturalização dos estereótipos de gênero, denotando que a revisão histórica do caráter normalizador da Psicologia, sobretudo decorrente do seu compromisso com os direitos humanos e com a ética democrática, não é um processo homogêneo no campo.

IHU On-Line – Que implicações trazem para a elaboração de políticas públicas de diferentes áreas e para o exercício da cidadania como um todo, o estabelecimento de concepções que tratam as questões de gênero como uma variável na organização social e não como eixo estruturante da sociedade?

Tatiana Lionço – A principal contribuição é a desnaturalização, ou seja, um princípio ético e técnico que prescinde da presunção de saber prévio sobre o modo como as pessoas são e como levam a vida. Na assistência à saúde, o acompanhamento ginecológico é um exemplo de como a formação profissional se organizou em torno da heteronormatividade e da normalização dos corpos sexuados. Não se cogita que a mulher não tenha relações sexuais com homens, uma queixa bastante comum entre mulheres lésbicas sobre a inadequação dos atendimentos diante de suas necessidades de saúde. Esta é uma questão complexa, pois ainda que uma mulher responda um questionário de anamnese se afirmando heterossexual, isso não significa que ela não tenha relações sexuais com mulheres.

Da mesma forma, caso um profissional de medicina inclua o reconhecimento da homossexualidade no acompanhamento de suas pacientes, isso não significa que não existam lésbicas que nunca transem com homens. Como sair desta aporia? Abrindo espaço para a escuta nos atendimentos clínicos, abrindo mão da detenção de um saber prévio e unívoco sobre o que é a vida sexual das pessoas, ou seja, decidindo partir dos relatos das próprias mulheres sobre si e suas práticas sexuais para só então pensar em intervenções.

Multiplicidades de corpos e de seres

Outra questão menos discutida é que a ginecologia não consente com a variabilidade na produção endógena de hormônios entre mulheres. É comum que já na adolescência as mulheres sejam submetidas à chamada regulação hormonal, ou seja, espera-se que toda mulher em idade reprodutiva realize no corpo um ideal biológico de aptidão à reprodução da espécie. Evidentemente justificarão esta necessidade de intervenção com uma série de riscos advindos do tal desequilíbrio hormonal, mas amplamente ocultam a existência de agravos decorrentes de suas próprias intervenções farmacológicas. Não se considera sequer que o ciclo de ovulação possa variar entre diferentes mulheres, você tem que mensalmente dispensar um óvulo. A norma é discursiva e o discurso legítimo não é passível de questionamento.

Não se questiona o efeito da prescrição hormonal para fins desta regulação da aptidão ao exercício reprodutivo, que decorre muitas vezes em agravos à saúde, tais como acidentes vasculares e mesmo anorgasmia. Eu lembro quando escutei em um serviço de saúde o relato de algumas mulheres transexuais que colocavam em dúvida para si mesmas a terapia hormonal por impactar a libido e a potencialidade orgástica. Fiquei bastante impactada, pois naquele momento eu mesma usava hormônios acriticamente e estava acostumada a pensar na incapacidade ao orgasmo como sintoma neurótico histérico, um deslocamento abusivo de interpretação sobre as determinações da anorgasmia como decorrentes de fragilidades psíquicas essencialmente femininas, e não como efeito de práticas médicas banalizadas e que contribuem grandemente para a manutenção da atribuição de precariedade às mulheres, seus corpos e potencialidades.

É importante, portanto, reconhecer que os tratamentos médicos ou mesmo psicológicos deveriam considerar ampla diversidade corporal e subjetiva entre as pessoas. Para algumas mulheres pode parecer aceitável não sentir orgasmos, para outras isso é fundamental. Na assistência a pessoas transexuais o reconhecimento da ampla diversidade corporal e também subjetiva é necessário para um atendimento digno e minimamente comprometido com direitos humanos e sociais. Se para uma mulher trans a modificação corporal genital é fundamental, não é o médico e nem a psicóloga que podem atestar se haverá arrependimento ou não, se o desejo é realmente este ou não.

As necessidades das pessoas são diversas, para algumas o fator estético-anatômico é tão fundamental que incide sobre todos os outros aspectos para além do biológico, como sobre as emoções e mesmo sobre aspectos psíquicos e sociais tais como representação de si mesma, qualidade das relações familiares, de amizade e sexuais. Para outras mulheres trans as demandas são outras, querem assistência social para se organizarem na vida, querem apoio psicológico para se sentirem mais seguras inclusive para recusar adequações corporais que não lhes parecem os melhores caminhos para si.

Políticas públicas que dialoguem com as realidades

A proposição e qualificação de políticas públicas que levem em consideração a necessária desnaturalização dos estereótipos de gênero binários e da heteronormatividade é importante para avançar no reconhecimento da diversidade corporal e subjetiva das pessoas, sejam elas cisgênero, transexuais, heterossexuais, homossexuais, bissexuais etc. Trata-se de uma decisão histórica de reconhecimento de sujeitos e práticas invisibilizadas, negadas, que foram em alguns momentos históricos criminalizadas, em outros patologizadas, mas que agora podem e devem ser entendidas como integrantes das potencialidades de existir, posto que já há muita resistência contra a violência simbólica que decorre da imposição de um modelo unívoco de ser e de viver. É importante notar, no entanto, que políticas específicas, tais como políticas de saúde LGBT, não devem ser entendidas como suficientes nelas mesmas. O que quero dizer é que, mesmo sendo importante, é insuficiente constituir equipes especializadas na atenção a estes segmentos populacionais se todas as outras políticas públicas prescindirem do reconhecimento desta diversidade.

As políticas afirmativas e identitárias devem servir para especificação de serviços especializados voltados às demandas distintas, como é o caso, por exemplo, do processo transexualizador, mas não se pode considerar suficiente existirem alguns serviços aptos à oferta de atenção a este grupo. Isso porque os sujeitos são complexos e têm necessidades para além do que se identifica como específico à sua posição identitária na sociedade. A pessoa trans pode buscar atendimento psicológico por quaisquer motivos, assim como pode demandar assistência à saúde por questões quaisquer. Se todas as equipes não se deixarem impactar pela mudança das representações, acolhendo a diversidade humana, a hegemonia da precarização da assistência e da violência institucional permanecerá como problema não resolvido.

IHU On-Line – De que modo a luta pela despatologização das identidades transexuais e travestis passa pela desnaturalização e “desbinarização” do gênero?

Tatiana Lionço – Eu costumo dizer a estudantes de graduação em Psicologia que ao nascer somos filhotes animais. Isso não é o mesmo que reduzir a inteligibilidade sobre a condição humana à verdade biológica. O psiquismo é transmitido por contágio, e caso este contágio não se realize, permanecemos na esfera animal sem tanta distinção assim dos outros animais, a não ser pelas potencialidades filogenéticas que dispomos de desenvolver linguagem e nossa capacidade de cognição que, contudo, requerem condições para o desenvolvimento. Sem o contexto social para o desenvolvimento e sem o outro humano, no entanto, restamos animais pura e simplesmente, tais como revelam as crianças encontradas abandonadas em florestas, privadas de convívio social e de investimento afetivo e simbólico por parte de outros seres humanos. Portanto, o bebê não representa a si mesmo e nem às outras pessoas, ele precisa que o sujeito psiquicamente e culturalmente constituído que cuida dele lhe contamine com suas próprias representações e arsenal simbólico.

Esta dimensão psíquica, que nos configura humanos e que inclusive nos torna aptos a nos representar como diferentes de todas as outras espécies animais, é algo que se desenvolve ontogeneticamente, ou seja, no desenrolar da vida e das experiências necessariamente sociais. Em diferentes teorias psicológicas o paradigma de sermos seres sociais se apresenta. O que isso significa? Que para sermos sujeitos psíquicos dependemos do outro, não há possibilidade de representação de si fora da relação com o outro.

Acontece que a diferença sexual, tão comumente adotada como parâmetro básico para o esclarecimento de como se agenciaria a construção da imagem de si em relação de distinção com a imagem do outro, é não apenas um dado anatômico universalizado no binarismo macho-fêmea, como também é efeito de toda a construção sócio-histórica de diferenças essenciais entre signos culturalmente estabelecidos e associados à segmentação binária de homens e mulheres na sociedade. Isso implica que todas as pessoas nascidas podem, para além de sua anatomia sexuada, serem revestidas representacionalmente por quaisquer signos, ou seja, a cultura humana está disponível como universo simbólico compartilhável e passível de internalização e ressignificação por cada sujeito humano de modo particular, ainda que os processos hegemônicos de representação possam reificar normas e padrões.

Normatização e mundo simbólico

Como defender que determinados signos culturalmente estabelecidos valem para uns sujeitos e para outros não? É isso o que a naturalização do binarismo de gênero pretende: especificar quais signos seriam corretamente e convenientemente apropriados por determinados sujeitos e quais signos seriam interditados. É arbitrário designar como anormal a apropriação de signos por parte de sujeitos, é como dizer que a cultura existe, mas não pode ser acessada igualmente por todas as pessoas.

Muitas pessoas equivocadamente questionam por que algumas pessoas transexuais reificam estereótipos de gênero, como se lhes estivesse interditado encarnar a estereotipia de gênero. É como questionar por que as pessoas se apropriaram de determinados signos para representarem a si mesmas e para organizarem psiquicamente sua agência no mundo social. Não estou com isso dizendo que pessoas transexuais deveriam, necessariamente, corresponder a estereótipos de gênero, mas que se a pessoa usa determinadas roupas, gesticula de tais modos, usa determinados jargões de linguagem, adota tais ou quais práticas sociais, isso é efeito da identificação desta pessoa a tais signos culturalmente estabelecidos e que esta identificação aos signos é justamente o que apoia o sujeito na afirmação de si e na ocupação de determinado lugar social.

Se um homem trans afirma que é homem porque abre a porta do carro para mulheres, podemos até questionar que os homens não necessariamente precisam abrir a porta do carro para as mulheres, mas isso não é o mesmo que deslegitimar a identificação daquele homem transexual a este rito estereotipado de comportamento generificado como parte das representações que sustentam a imagem que ele faz de si mesmo como homem. Assim como uma mulher trans usar vestidos, salto alto, unhas grandes e pintadas, maquiagem e afirmar que gosta de arrumar a casa denota os caminhos por meios dos quais ela está identificada a signos estereotipadamente atribuídos a mulheres na sociedade. Por que ela haveria de recusar tais signos se são estes os signos que integram sua representação de si mesma? Isso não quer dizer que uma mulher trans não possa ser uma executiva de sucesso, cortar os cabelos curtos, mas que esta mulher transexual está apoiada em outros signos na afirmação de si como mulher, ou mesmo identificada a outras formas de ser mulher em sociedade para além do estereótipo binário do gênero.

O discurso patologizador sobre a transexualidade, no entanto, buscou na adesão incondicional aos signos da estereotipia o fundamento da verdade da identidade de gênero. A tão criticada ideia de verdadeiros transexuais se trata disso, de deslegitimar subjetividades trans que não reificassem a estereotipia de gênero. Despatologizar as identidades trans é reconhecer que a cultura humana está disponível para quaisquer sujeitos humanos para apropriações singulares da masculinidade e da feminilidade. É uma questão que interessa a toda a sociedade, pois é como a ponta de um iceberg: despatologizar as identidades trans é também liberar todas as pessoas para a legitimidade de suas apropriações singulares da masculinidade e da feminilidade, sem ônus moral e social para aquelas que rompem com a hegemonia da estereotipia.

IHU On-Line – Quais são as principais polêmicas e adversidades do debate da despatologização das identidades transexuais e travestis? Quais perdas e ganhos estão em jogo nessa luta, principalmente no contexto brasileiro, onde estão envolvidas questões como as que dizem respeito ao acesso a procedimentos médico-cirúrgicos de transexualização?

Tatiana Lionço – Parte do problema é que importamos reflexões do norte acriticamente. Precisamos romper com a colonização de nossas possibilidades de pensamento. Algumas pessoas, seja no movimento social de pessoas travestis e transexuais, seja na academia, assumem que as críticas de [Judith] Butler, realizadas no contexto norte-americano de assistência à saúde, fazem sentido para as pessoas transexuais no Brasil, sem considerar que nosso marco legal de direito universal à saúde, bem como de não restrição do direito à saúde ao tratamento de doenças, é uma conquista histórica a ser defendida e ampliada por meio do tensionamento de saberes hegemônicos, sobretudo o saber médico, para a implementação do SUS.

Quero dizer que o paradoxo da despatologização explicitado por Butler, ao afirmar que a necessidade do reconhecimento das subjetividades trans sem o jugo da atribuição de psicopatologia encontraria como entrave ético a desassistência à saúde, faz sentido no contexto dos Estados Unidos, onde a saúde não é um direito social, mas um bem passível de consumo de acordo com normativas próprias, entre as quais, a existência de um número de doença constante nos manuais diagnósticos médicos.

É possível pressionar o debate sobre despatologização das identidades trans no Brasil sem que isso decorresse em vulnerabilidade à desassistência pública à saúde porque aqui a saúde é direito de todas as pessoas, e o princípio da integralidade no cuidado remete necessariamente a dimensões de promoção da saúde e de prevenção a agravos evitáveis que consideram inclusive os chamados determinantes sociais da saúde. É perfeitamente viável em nosso marco legal que pessoas transexuais viessem a pleitear assistência integral à saúde, incluindo procedimentos biomédicos na atenção especializada, por meio de outras justificativas que não a da doença mental. No entanto, é difícil abalar a hegemonia de saber da Medicina. Se as condições estipuladas em normativas da categoria de classe profissional médica estipula que o diagnóstico da doença é requisito para a aplicabilidade do procedimento cirúrgico de transgenitalização e de hormonioterapia, é a condição para que profissionais aceitem realizar as intervenções. Isso não significa que as normativas não possam ser revistas sob pressão da sociedade, seja do movimento social de pessoas trans, seja de próprios profissionais de medicina implicados nas transformações das práticas e discursos na área. Foi assim que se regulou a legitimidade da transgenitalização.

Deslocamento de poder no âmbito do corpo

Durante algum tempo médicos eram passíveis de punição por seus conselhos de classe, mas também do sistema penal caso realizassem o procedimento cirúrgico, mas houve pessoas que lutaram pelo reconhecimento de que a transexualidade era uma doença e que, portanto, nestes casos os procedimentos não deveriam ser entendidos como crime de lesão corporal, mas intervenções terapêuticas. Da mesma forma, seria possível lutar pela mudança das normativas médicas em vigência, no sentido de respaldar a decisão pelos procedimentos de modificação corporal do sexo por meio do termo de consentimento esclarecido, e não mais a partir do diagnóstico de uma doença. Seria muito mais eticamente relevante desenvolver entre profissionais de medicina a convicção de responsabilidade por meio do esclarecimento de riscos e benefícios decorrentes dos procedimentos do que tomarem para si os critérios da decisão sobre acesso às tecnologias biomédicas. Isso requer um deslocamento de poder: do médico para a pessoa sob cuidado. A pessoa deveria ser entendida como protagonista de um processo de cuidado, e não como objeto da gerência ou governo da Medicina. Faz muito mais sentido pensar que a pessoa, que é o corpo em questão, é quem deveria ter poder de decisão sobre si mesma, pois é a vida desta pessoa que muda a partir do acesso ou não às tecnologias.

A questão que sempre retorna é a do arrependimento, mas esta é uma questão levantada pelos profissionais da Medicina porque eles têm medo de sofrerem processos judiciais. Ora, quaisquer pessoas podem se arrepender de procedimentos estéticos, por exemplo. Uma pessoa que faz uma correção plástica no nariz pode se arrepender. Esta é uma questão absolutamente fora de controle, pois não decorre necessariamente do erro médico, mas também de como aquela pessoa continua produzindo sentido sobre o próprio corpo e a si mesma após o acesso a tecnologias médicas de cirurgia plástica. Não há como prever isso.

Mas é perfeitamente viável que o profissional de medicina esclareça os riscos implicados no procedimento e os cuidados necessários para evitá-los. Ao invés de investir neste processo subjetivo de produção de sentido sobre os próprios limites da tecnologia biomédica, no entanto, médicos muitas vezes contribuem para a idealização dos efeitos do procedimento, minimizam os riscos e adotam apenas protocolarmente o laudo que explicita o diagnóstico, como se isso eximisse os profissionais de responsabilidade sobre interferirem nos corpos das pessoas, e, portanto, nas próprias pessoas e em suas vidas. Se a pessoa está consciente dos riscos implicados em um procedimento, se obteve todas as informações necessárias para a tomada de decisão por si mesma, a sombra do processo judicial recairia apenas sobre o erro médico, e não mais sobre todo o processo.

Processo transsexualizador e psicologia

A pessoa, como em quaisquer outras condições, continua a produzir sentido sobre si mesma, sobre seu próprio corpo, sobre seus ideais e suas frustrações. Poderia e deveria processar um médico por erro técnico, mas não haveria fundamento jurídico para processo caso a responsabilidade ética sobre esclarecimentos dos riscos e benefícios tivesse sido cumprida satisfatoriamente para informar a tomada de decisão livre e consentida. O medo do processo é tão grande que na própria normativa da medicina delega-se a outros profissionais a corresponsabilidade na decisão sobre os procedimentos médicos. É o caso da menção à obrigatoriedade da psicoterapia e laudo diagnóstico atribuído a profissionais de Psicologia no processo de assistência. Isso é o que a Medicina diz, mas o que a Psicologia teria a dizer? Passamos por um processo amplo de debates sobre isso, em diálogo com o movimento social de travestis e transexuais, até o momento em que emitimos uma Nota Técnica, em 2013, para orientar o exercício profissional de psicólogas no processo transexualizador.

O que tivemos que afirmar, em outras palavras, foi que não estamos como categoria profissional em serviços de saúde para respaldar legalmente procedimento de outra categoria de classe, a dos médicos. Temos epistemologias próprias e temos nossa própria regulação ética da profissão na Psicologia. Fizemos o esforço de afirmar nesta nota a despatologização da transexualidade, bem como que na área da saúde poderíamos trabalhar com muitas outras intervenções que não a psicoterapia. Não precisamos organizar nossas práticas de assistência em torno da decisão sobre procedimentos técnicos de outra categoria profissional.

O grupo de trabalho que formulou esta nota, o qual integrei, foi unânime na compreensão de que não deveria haver obrigatoriedade da psicoterapia por no mínimo dois anos, tal como estipulado pela normativa da Medicina. Este é um processo longo, no entanto, e inclusive de tensionamento histórico e político junto a gestões no Ministério da Saúde. Seria relevante ao SUS outras epistemologias que não a médica na decisão sobre o processo transexualizador? Minha resposta a esta pergunta é que depende da gestão, e nos últimos anos a gestão tem priorizado a inteligibilidade médica sobre a questão. Então, seria o poder médico inabalável? Minha resposta é não, pois me recordo plenamente que por meio de uma iniciativa da Flavia Teixeira (que inclusive coordena o serviço do meu ponto de vista mais interessante na assistência a pessoas trans no Brasil, por se pautar no princípio da integralidade no cuidado) em conjunto com ativistas trans e outras acadêmicas incluindo eu mesma, submetemos, via Ministério Público, o pedido ao Conselho Federal de Medicina – CFM para que retificasse a resolução que normatiza os procedimentos de modificação corporal para transexuais, pois excluía homens trans do acesso aos serviços públicos do processo transexualizador tal como estipulado em 2008 devido à compreensão, na época, de que todos os procedimentos, incluindo mastectomia e hormonioterapia, além da transgenitalização, eram experimentais.

Argumentamos que havia evidências suficientes de que a mastectomia não era experimental, por exemplo, e assim o CFM em 2010 atualizou sua normativa sob pressão externa, reconhecendo a validade e pertinência do pleito. Ainda assim, o Ministério da Saúde demorou bastante, até 2013, para retificar sua própria normativa sobre o Processo Transexualizador, mas nós estávamos há tempos oferecendo caminhos para as mudanças. Volto a dizer: o entrave é da ordem da gestão, e não das possibilidades de pensarmos em outros termos o que se coloca como norma. Desde 2005 estávamos cientes de que não havia justificativa para a exclusão das travestis, por exemplo, mas a barreira do poder médico é de difícil tensionamento. A resolução do CFM era clara: diagnóstico de “transexualismo”. Não importa que no Brasil as pessoas travestis tenham se organizado muito anteriormente à própria classificação do tal “transexualismo”. Respeito muito as guerreiras que decidiram manter suas identidades sociais e políticas como travestis a despeito do ônus decorrente desta arbitrariedade conceitual de palavras supostamente corretas em normas técnicas. É evidente que em nenhum outro país que ofereça serviços de saúde para pessoas trans exista esta diferenciação entre travestis e transexuais.

Liberdade para autodeterminação e acesso à saúde

No Brasil faz sentido usar ambas as palavras, pois se trata de autonomia de pessoas e grupos sociais na autodeterminação de suas próprias identidades políticas e sociais. A exclusão das travestis, no caso, nada mais foi do que evidência de transfobia institucionalizada; qualquer pessoa minimamente comprometida com o direito universal à saúde não se prenderia à suposta necessidade de excluir pessoas porque elas decidiam se autodenominar travestis e não transexuais, pois é evidente que as necessidades em saúde são exatamente as mesmas. O Ministério da Saúde notoriamente é o setor de governo que mais avançou na garantia de direitos para a população travesti e transexual brasileira. De início na oferta de serviços de prevenção e tratamento do HIV/Aids, mas a partir do Programa Brasil sem Homofobia, de 2004, ampliando as políticas na lógica da atenção integral à saúde.

Evidentemente a regulamentação do Processo Transexualizador foi uma importante conquista, anterior mesmo à formalização da Política de Atenção Integral à População LGBT no SUS, mas não decorreu apenas de vontade política, como também da pressão da sociedade civil e do Ministério Público. A discussão sistemática sobre assistência integral à saúde de travestis e transexuais junto ao Ministério da Saúde iniciou em 2005. Na época eu era consultora para ações de equidade em saúde no Ministério da Saúde e estávamos articulando o comitê técnico Saúde da População LGBT no SUS. Entre o SUS e a hegemonia da Medicina, no entanto, existem forças de defesa do potencial do SUS e de resistência à lógica hierárquica dos saberes na saúde, mas também existem aquelas pessoas que acreditam que sociedade civil e outras categorias profissionais são uma pedra no meio do caminho da inquestionável Medicina na assistência à saúde. Posso dizer, onze anos depois, que há pleitos que fazem sentido desde 2005 e que até hoje não foram devidamente incorporados na política. Um deles é a despatologização das identidades trans, que estava em discussão no Brasil antes mesmo da campanha mundial pela despatologização no Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais – DSM (na sigla em inglês) e Classificação Internacional das Doenças – CID.

No último seminário sobre o tema saúde da população trans promovido pelo Ministério da Saúde em que eu tive direito à palavra, aproveitei para dizer que existia um problema de gestão e que não era o governo que tinha legitimidade para dizer que não era momento para discutirmos despatologização, como aconteceu naquela ocasião. Tratava-se de um seminário para a revisão da portaria que regulamenta o Processo Transexualizador, que visava inclusão de homens trans no processo transexualizador, após bastante tempo desde que nós havíamos conquistado coletivamente a mudança da resolução do CFM. Naquele momento, em 2013, eu disse que o problema de gestão era que se atribuía à coordenação de alta complexidade um status hierárquico nas definições do processo transexualizador e que a conivência com a hegemonia do saber médico interditava o avanço da política na lógica da integralidade do cuidado.

O Processo Transexualizador se tornou um dispositivo de alta complexidade e regulação do acesso a cirurgias, e não em serviço de atenção integral à saúde de pessoas trans, já que todos os outros procedimentos implicados giram em torno da decisão e preparação para cirurgias. Evidentemente, me tornei uma pessoa não mais bem-vinda nos debates oficiais sobre o tema e não me arrependo, pois cada qual é responsável pelo modo como decide participar do processo histórico.

Há pessoas muito comprometidas fazendo verdadeiros milagres. É o caso da Flavia Teixeira no Hospital das Clínicas de Uberlândia, que coordena um serviço ambulatorial que desde sua origem funciona como dispositivo de atenção integral à saúde de travestis e transexuais e que, do meu ponto de vista, todos os serviços do Processo Transexualizador deveriam ter seguido esta mesma lógica amparados nos princípios do SUS. Isso implicaria nunca ter interditado o acesso de pessoas travestis aos serviços, por exemplo. Significaria oferecer diversas formas de assistência, incluindo práticas de atenção básica, e não apenas procedimentos viabilizadores das cirurgias e demais modificações corporais.

No entanto, curiosamente o serviço encontra vários entraves burocráticos para se habilitar formalmente como Centro de Referência do Processo Transexualizador no SUS. Vale ressaltar que não tenho me dedicado nos últimos tempos a analisar os serviços de saúde e posso mesmo estar desatualizada. No campo acadêmico, caberia verificar junto a outras pessoas, tais como Flavia Teixeira, Mario Carvalho, Rodrigo Borba, Guilherme de Almeida, Fatima Lima,Daniela Murta, para citar apenas pesquisadores com os quais estou mais familiarizada, o andamento de suas próprias visões sobre o processo histórico de implementação da política.

A transexualidade não é mais uma questão pouco explorada nas pesquisas acadêmicas, existe uma diversidade de perspectivas sobre os mesmos processos históricos de construção das políticas de garantias de direitos.

IHU On-Line – Como estão atualmente no Brasil as políticas referentes à regulamentação da permissão para troca de nome e sexo no registro civil e à adoção do nome social para as pessoas trans? E a possibilidade de desvinculação da mudança do registro civil da realização da cirurgia de transgenitalização?

Tatiana Lionço – Como ainda não há uma lei federal aprovada que garanta a retificação de nome e sexo no registro civil, há uma multiplicidade de situações jurídicas, a depender da compreensão do juiz que analisa determinado processo. Já existem casos no Brasil em que a pessoa transexual conseguiu mudar nome e sexo mesmo sem passar pelo procedimento de transgenitalização, e isso é muito importante caso estejamos levando a sério a diversidade subjetiva e corporal como algo a ser protegido, sem ônus social e/ou jurídico para as pessoas trans que não reificam hegemonias corporais e que não querem recorrer a procedimentos de modificação corporal.

É cruel condicionar o deferimento do pleito por mudança de nome e sexo às modificações cirúrgicas e ao diagnóstico, pois isso interfere diretamente na autonomia das pessoas nas suas tomadas de decisão sobre procedimentos médicos e no geral torna compulsória a busca por assistência psicológica e/ou psiquiátrica na expectativa por um laudo a anexar em um processo, e não por demanda de saúde mental. O projeto de lei que considero mais interessante é o conhecido como PL João Nery, apresentado pelos deputados federais Jean Wyllys e Erika Kokay, que desvincula a mudança de nome e sexo da tutela médica e jurídica.

IHU On-Line – A transexualidade tem sido incluída em estratégias já existentes no âmbito da gestão federal do setor da saúde. As mulheres transexuais têm sido incluídas em ações como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher e o Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da AIDS e outras DST. De que modo você avalia esse processo?

Tatiana Lionço – É muito importante que outras políticas de saúde contemplem a especificidade das demandas de pessoas transexuais para além do processo Transexualizador e da Política de Atenção Integral à Saúde da População LGBT no SUS. Não apenas as políticas de prevenção e tratamento do HIV/Aids, mas também todas as políticas de saúde que pudessem ser requeridas pela população trans. Políticas específicas para adolescentes e jovens, idosos, saúde mental, etc. Veja o caso das doenças crônicas, por exemplo. Existe uma vulnerabilidade a agravos decorrentes do uso continuado de hormônios por longos períodos de tempo. As equipes de atendimento oncológico estariam preparadas para receber usuários trans em seus serviços?

No caso da saúde mental, os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS conhecem os desafios da atenção integral à saúde de travestis e transexuais? No caso de uma pessoa travesti ou transexual necessitar recorrer a atendimento em função de sofrimento psíquico grave, as equipes dos CAPS conhecem as discussões sobre despatologização das identidades trans ou a identidade de gênero das pessoas entraria na contabilização de sintomas psicopatológicos associados a um quadro de sofrimento psíquico intenso que pode ou não estar associado à vivência trans?

IHU On-Line – O que é transfeminismo? Quais são suas demandas principais? Como se relaciona com os movimentos LGBT?

Tatiana Lionço – Entendo transfeminismo como uma nova epistemologia pós-colonial que abala a inteligibilidade instituída cientificamente sobre não apenas a transexualidade, mas sobre gênero numa perspectiva mais ampla. Em relação ao movimento LGBT, o transfeminismo é uma forma também de recuperar, por meio de pressupostos feministas, a potencialidade na crítica ao sexismo e cis-sexismo interno ao movimento LGBT, sobretudo invisibilizando e subalternizando as pessoas trans. Carateriza-se pela enunciação de saberes sobre transexualidade e gênero com protagonismo de pessoas trans e reconhecendo a relevância de discursos de pessoas trans não acadêmicas para a própria revisão acadêmica dos saberes sobre transexualidade e gênero.

Neste sentido, não me sinto apta a aprofundar uma apresentação de seus pressupostos e conceitos fundamentais. O que posso dizer é que como feminista e estudiosa sobre gênero e sexualidade, mas, sobretudo, como uma pessoa que busca construir sentido sobre si mesma em termos da expressão de gênero, eu busquei tensionar, em um dado momento, o conceito cisgênero apresentado pelas transfeministas. Aleguei na época que me parecia um binarismo e que haveria pessoas que tensionariam esta demarcação de fronteiras.

No fundo, eram questões bastante mobilizadoras que eu fazia a mim mesma. Fui entendida naquele momento como uma afronta ao transfeminismo, mas o que gostaria de dizer é que as narrativas transfeministas me mobilizam o pensamento, ou seja, são discursos com potencialidade transformadora, pois movem novas ideias a partir de suas provocações e neste sentido são ótimas contribuições ao processo histórico de construção de sentido sobre gênero, sexualidade, corporeidade, subjetividade e mesmo epistemologia.

Hoje o que eu penso a respeito do conceito cisgênero é o mesmo que penso sobre as identidades sexuais e de gênero: servem para uma coisa e não para outras, como quaisquer conceitos. No caso, entendo que as chamadas identidades sexuais e de gênero são fundamentais para o processo de diálogo formal com o Estado, na construção de políticas públicas, na diferenciação estratégica entre segmentos sociais identitariamente referidos etc.

No entanto, há dimensões da vida que não devem estar submetidas a um regime de governo, seja este do Estado ou dos discursos considerados legítimos em consensos deliberados por movimentos sociais etc. Me refiro aqui a dimensões da vida, tais como autonomia na autodeterminação do sentido que se dá a si mesmo, as possibilidades de construção de pertencimentos comunitários que não necessariamente se organizam em torno da identidade política, mas do reconhecimento mútuo por afinidades imprevisíveis etc.

Para o Estado, por exemplo, eu sou uma mulher heterossexual cisgênero. Para grupos organizados politicamente em torno das identidades sexuais e de gênero, provavelmente eu também seja uma mulher heterossexual cisgênero. Para a “sociedade”, nem sempre é assim. Sou lida socialmente como lésbica e algumas pessoas ficam confusas ao meu repeito, ainda mais porque de fato sou uma heterossexual que teve ocasionalmente experiências homossexuais. Ainda, a identidade cis é bastante distante do modo como eu mesma me represento e das comunidades de pertencimento social e afetivo nas quais eu encontro possibilidade de compartilhar vida e relações sociais e afetivas.

Houve uma época, anterior ao surgimento do transfeminismo por aqui, em que eu inclusive disse para uma pessoa transexual que o tal conceito transgênero, que havia perdido legitimidade tanto entre travestis quanto entre pessoas trans, talvez me coubesse e me interessava muito. Enfim, hoje desisti de entender isso conceitualmente e as pessoas pensam que eu falo brincando, mas é muito sério quando provoco dizendo que sou na verdade etéreassexual transviada. Com isso, não estou absolutamente convocando pessoas a se identificarem a uma nova identidade, mas produzindo por mim mesma palavras que entendo me representarem tanto pessoalmente, quando coletivamente em meus espaços de sociabilidade e afetividade.

Sabe quando um homossexual reivindica ser reconhecido como bicha? Não faz sentido para as políticas públicas, mas faz para falar de si e para denotar pertencimento social. É difícil travar este debate em um momento político de extrema vulnerabilidade de pessoas LGBT, e sobretudo trans, ao genocídio, pois precisamos priorizar a denúncia, a reparação e a abolição destas violências estruturais. Portanto, meu lugar de privilégio cis não está sob questão quando eu afirmo que estranho, para mim mesma, esta designação identitária. Trata-se, para mim, de poder vir a ser reconhecida como sujeito de gênero e sexualidade para além das narrativas que possam me reduzir ao olhar e ao discurso do outro, podendo dizer nos próprios termos como me represento. Quando eu era adolescente, dada uma puberdade bastante tardia, eu era muito confundida com homem e na época foi muito difícil me constituir mulher diante de múltiplas recusas de reconhecimento de minha feminilidade.

Eu, por outro lado, nunca me representei como homem, mas desde a minha puberdade eu vivo como se não fosse exatamente uma mulher. Isso que já foi vivido com intensa angústia, hoje é um traço que me constitui pessoa. Por mais que pareça estranho para muitas pessoas, desde minha puberdade, mas até hoje, aos 40 anos de idade, há situações sociais em que as pessoas não sabem dizer se eu seria homem ou mulher. Isso não é efeito de meus estudos acadêmicos, mas efeito do olhar do outro sobre meu corpo, meu modo de vida.

Minha primeira história de amor significativa foi com um homem gay, na época eu era uma jovem bastante andrógina contra a minha própria intencionalidade, e eu busquei estratégias de construção de mim mesma que passaram pela montação esporádica como mulher em casas noturnas por meio de artifícios estereotipados tais como perucas e vestidos de época. Foi bastante difícil na época não saber, comigo mesma, se eu era amada como menino ou como menina, pois de fato eu parecia mesmo menino e investia bastante na pergunta sobre o que seria de fato uma mulher.

Hoje em dia exploro toda essa errância ou incerteza no meu devir, pois na época em que eu acreditei que isso fosse confusão de juventude e tentei parecer “exatamente uma mulher” eu sofri muito, pois perdi mesmo a conexão com elementos de androginia e de masculinidade que também me constituem de modo estruturante do ponto de vista psíquico.

De qualquer forma eu fiquei muito impactada pela recusa das transfeministas e até hoje ainda não consigo organizar conceitualmente minhas ideias e me lanço numa espécie de verborragia autobiográfica toda vez que sou confrontada com este assunto que me é hoje mais intimamente pessoal do que um exercício intelectual. Me satisfaço experimentando possibilidades de expressão tais como Drag King, montação-de-mulher-para-mulher, ou mesmo tendo o benefício de andar muitas vezes pela minha cidade à noite sem que possam me reconhecer como uma mulher à distância. Me protejo do assédio de homens heterossexuais não sendo exatamente uma mulher e isso é uma glória inexplicável, a não ser pela minha devoção a Joana D’Arc. No momento o que me é mais importante é poder existir desta forma e ter espaços de pertencimento e reconhecimento comunitários.

IHU On-Line – De que modo os movimentos feministas têm se relacionado com as demandas transfeministas? Quais são os principais pontos de convergência e de divergência entre os feminismos e os transfeminismos?

Tatiana Lionço – A principal afronta às narrativas transfeministas é o chamado feminismo radical, ainda que a questão não se deixe reduzir a isso. Evidentemente um grupo de mulheres feministas que definem critérios de pertencimento à categoria mulher com base na naturalização é incompatível com o pensamento transfeminista. Ainda, não podemos deixar de notar certa exotificação que feministas cisgênero, ainda que não as radicais, estabelecem na relação com mulheres transexuais. Não expressar a transfobia paradigmaticamente e conceitualmente não exime nenhuma feminista de não ser transfóbica. Da mesma forma, feministas que decidem pelas putas, que estas são incondicionalmente oprimidas e não reconhecem a legitimidade do protagonismo de mulheres que de fato exercem a prostituição no debate sobre o tema, são como as que excluem as trans: querem decidir entre elas o que é de fato uma mulher. Para finalizar, eu mesma me pergunto há tanto tempo o que haveria de ser uma mulher, e só teria a dizer que tais certezas inabaláveis me parecem narrativas sintomáticas e defensivas do ponto de vista psíquico. Tendem à banalização da violência por meio da recusa da alteridade como paradigma.

Imagem: http://ouseja.jor.br

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