Uma esquerda latino-americana, sem a ecologia, cairá novamente na crise dos progressismos

IHU – “O progressismo aceitou os impactos ambientais dos extrativismos, já que priorizou como opção econômica a exportação de matérias-primas. Por sua vez, na medida em que aumentava a resistência cidadã a esses empreendimentos, esses regimes passaram a ignorar, rejeitar e inclusive criminalizar as organizações cidadãs que colocavam em evidência os impactos negativos desses extrativismos”, critica Eduardo Gudynas, militante em temas ambientais e de desenvolvimento, membro do Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES).

Em sua avaliação, na “íntima associação entre a justiça social e ambiental estão os maiores desafios para uma renovação das esquerdas na América Latina”.

O artigo é publicado por  La Izquierda Diario, 22-07-2016. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Comecemos apresentando com clareza algumas questões recentes nas relações entre a esquerda e meio ambiente na América Latina. Os atuais progressismos no governo são regimes políticos distintos das esquerdas que lhes deram origem e, nessa diferenciação, a incapacidade de abordar a temática ambiental teve um papel chave. Portanto, qualquer renovação da esquerda só é possível, caso incorpore a visão ecológica. Em caso contrário, a esquerda voltará a cair em meros progressismos.

As esquerdas latino-americanas, ao menos desde os anos 1970, tiveram certas dificuldades enormes em aceitar a problemática ambiental. Alguns viam esses temas como excentricidades burguesas importadas do Norte; outros consideravam que paralisariam planos de industrialização; e, finalmente, existiam os que compreendiam que na militância, por exemplo, nas fábricas, era inviável atender questões ambientais. No entanto, também existiam alguns grupos ou militantes que abordavam essas questões, por diversos motivos. Alguns respondiam a demandas cidadãs, por exemplo, as que partiam de organizações camponesas que denunciavam tanto as injustiças econômicas, como a contaminação de suas terras e águas. Outro compreendiam que uma crítica radical ao capitalismo era incompleta, caso não considerasse o papel subordinado da América Latina como provedora de matérias-primas (ou seja, de recursos naturais). Outras questões podem ser acrescentadas, mas acima de tudo, é preciso reconhecer que todos eles desempenhavam papéis secundários no seio da maior parte das organizações políticas da esquerda.

As coisas não eram melhores em nível internacional, uma vez que seja em agrupamentos partidários, como na reflexão teórica, a questão ambiental era minimizada ou marginalizada.

Esforços intensos para colocar sobre a mesa, por exemplo, a um Marx em chave ecológica (como é a proposta de John Bellamy Foster) ou a insistência em um ecossocialismo (apontada por Michael Lowy) tiveram impactos limitados.

Uma mudança substancial ocorreu em fins dos anos 1990 e inícios da década de 2000. Boa parte do ambientalismo politicamente militante colaborou, apoiou e participou diretamente em conglomerados de esquerdas mais amplas e plurais que lutavam contra governos conservadores e posturas neoliberais. Em vários países, esses grupos participaram das eleições. Houve uma contribuição ambientalista nas vitórias da Aliança País, no Equador, do PT e seus aliados, no Brasil, do MAS, na Bolívia, e da Frente Ampla, no Uruguai; em menor medida participaram na Venezuela.

Nos planos daquelas esquerdas foram incorporados temas ambientais, em vários casos, com muita sofisticação ao propor mudanças radicais nas estratégias de desenvolvimento, ordenamento territorial e o tratamento dos impactos ambientais. Alguns ambientalistas entraram nesses governos e, a partir deles, lançaram algumas iniciativas notáveis.

O caso mais proeminente se deu no Equador, onde esses militantes verdes alcançaram alguns êxitos notáveis. Foram fundamentais para instalar, por exemplo, a proposta de uma moratória petroleira na Amazônia, não somente como uma defesa de sua biodiversidade, mas também como uma contribuição para a mudança de matriz energética. Eles também representaram um apoio central no reconhecimento dos direitos da Natureza, na nova constituição equatoriana, fazendo dela a mais avançada do mundo nessa matéria. A esquerda dos países do Cone Sul (Argentina, Chile e Uruguai) não avaliou como deveria as inovações ambientais no primeiro governo de Rafael Correa.

Contudo, o problema é que essa relação entre os novos governos e a temática ambiental começou a atritar. Essas administrações optaram por estratégias de desenvolvimento que priorizavam metas econômicas à custa de altos impactos ambientais. Suas expressões mais claras foram a exploração mineira e petroleira, e as monoculturas. Gerou-se uma relação perversa, já que na medida em que esse perfil extrativista mais se aprofundava, menos era possível atender as questões ambientais, e mais protestos e resistências cidadãs se acumulavam. Muitos ambientalistas que estavam dentro dos governos se afastaram, e os que permaneceram se desligaram de seus compromissos com a Natureza. Algo semelhante ocorreu em outras áreas, especialmente nas políticas sociais. É desta maneira que estava em marcha a divergência entre as esquerdas plurais e abertas iniciais e um novo estilo político, o progressismo.

A maturação rumo ao progressismo ocorreu em todos os países. Independente se em alguns casos se citava Marx ou Lenin, em todos se acentuou a subordinação aos mercados globais como provedores de matérias-primas. Os planos de combate à pobreza ficaram focados, sobretudo, em pacotes de assistências financeiras e as relações com muitos movimentos sociais foram rompidas. Esse progressismo não é neoliberal, mas está claro que abandonou os compromissos daquelas esquerdas iniciais em assuntos como a radicalização da democracia, ampliar as dimensões da justiça e proteger o patrimônio ecológico.

Hoje, admite-se que esse progressismo está em crise, como é evidente no Brasil, e que inclusive perdeu eleições nacionais (Argentina) ou regionais (Bolívia). Mas, o que passou despercebido para alguns é que a temática ambiental teve um papel chave nessa diferenciação entre esquerdas e progressismos. O progressismo aceitou os impactos ambientais dos extrativismos, já que priorizou como opção econômica a exportação de matérias-primas. Por sua vez, na medida em que aumentava a resistência cidadã a esses empreendimentos, esses regimes passaram a ignorar, rejeitar e inclusive criminalizar as organizações cidadãs que colocavam em evidência os impactos negativos desses extrativismos.

Há muito pouco da sensibilidade social de esquerda em um governo que impõe às comunidades camponesas um projeto de megamineração, ou que force a entrada de petroleiras dentro de terras indígenas, ou que ameace exilar membros de ONGs que alertam sobre esses impactos.

Quanto mais os progressismos se afastavam da esquerda, mais se fundiam em contradições teóricas e práticas. Não hesitaram, então, em apelar a misturas bizarras entre citações marxistas e denúncias ao imperialismo, junto a acordos comerciais com empresas transnacionais que levavam seus recursos. Invocavam o povo, mas não vacilavam em criminalizar os protestos cidadãos e, inclusive, em alguns casos, passaram à repressão.

A lição destas experiências é que a ausência de uma dimensão ambiental na esquerda, na América Latina, e neste momento histórico, não constitui um pequeno déficit. Ao contrário, é um dos fatores que explica o fato desta esquerda perder a sua essência para se converter em meros progressismos.

Uma esquerda própria de nosso continente deve abordar as questões ambientais porque a América Latina se caracteriza por uma enorme riqueza ecológica. Aqui, estão presentes as maiores reservas de áreas naturais e as maiores disponibilidades de solos agrícolas. O uso que se faz desse patrimônio ambiental não só envolve as necessidades de nossa própria população, como também nutre múltiplas cadeias produtivas globais, com enormes repercussões geopolíticas.

Além disso, uma esquerda do século XXI deve ser ecológica porque a atual evidência aponta, sem sombra de dúvidas, que estamos explorando intensivamente esses recursos, que as capacidades do planeta para lidar com os impactos ambientais foram superadas, e que problemas planetários como a mudança climática já estão se manifestando. Portanto, pensar uma esquerda sem a ecologia seria uma aposta política desconectada com a América Latina e a conjuntura atual.

Finalmente, o compromisso desta nova esquerda está na justiça social e ambiental, onde uma não pode ser alcançada sem a outra. Isto permite um reencontro com muitos movimentos sociais, uma redescoberta dos problemas reais das estratégias de desenvolvimento atuais e um chamado à renovação teórica. É por isso que nessa íntima associação entre a justiça social e ambiental estão os maiores desafios para uma renovação das esquerdas na América Latina.

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