A absurda contradição do “Escola sem Partido”

Por Bruno Amabile Bracco, no Justificando

1. A contradição performativa

Na Filosofia, Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas falavam sobre a contradição performativa. É uma ideia interessante. A contradição performativa denuncia uma espécie de ponto cego daquele que discursa.

O exemplo clássico é o da pessoa que afirma que não existe: sua afirmação está em contradição com o fato de que, se a pessoa de fato não existisse, não poderia dizer nada – nem mesmo que não existe. Um peixe que, no fundo do oceano, dissesse que não conhece a água, estaria em notória contradição com o fato de que está envolto de água por todos os lados. Não importa se a água é de tal forma parte de sua vida que passa despercebida. A contradição performativa está lá assim mesmo.

Fiquemos, então, com essa imagem do peixe que, no fundo do oceano, diz que desconhece a água.

2. A “Escola sem Partido”

O movimento “Escola sem Partido” parte, essencialmente, da ideia de que os professores não devem defender, ao menos na frente dos alunos, qualquer ideologia política. É contra qualquer forma de doutrinação, advogando a “liberdade de pensamento e o pluralismo de ideias”. No art. 1º, I, o projeto de lei aponta, como princípio, a “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”.

Neutralidade política, ideológica e religiosa: eis aqui a razão alegada para que se implemente a “Escola sem Partido”. Teríamos, enfim, uma escola absolutamente desvinculada de qualquer ideologia, em que os alunos aprenderiam, de maneira neutra, os conteúdos de cada disciplina, sem juízos de valor capazes de levá-los para um ou para outro lado do espectro político-ideológico.

Não quero entrar, aqui, em questionamentos óbvios sobre como seria uma aula neutra a respeito do Fascismo ou da Revolução Indiana, por exemplo – Gandhi, Mussolini e Hitler devem ser, afinal, apresentados pelo professor com a mesma neutralidade com que se apresenta a fórmula de Bhaskara. Seria até ingênuo criticar o projeto por aqui.

Na realidade, todos sabemos que a neutralidade político-ideológica simplesmente não pode existir em determinados assuntos. A História que se conta tem um caráter necessariamente político-ideológico: o que significa dizer que a História é contada pelos vencedores, senão que a História é contada de acordo com a ideologia dos vencedores? Inclinações político-ideológicas estão na essência do ensino. A realidade óbvia é que o incômodo surge, na realidade, quando as inclinações do professor se chocam com as inclinações sociais dominantes: é aí que o lado incomodado faz tremular a hipócrita bandeira da “neutralidade”.

3. A base político-ideológica do sistema educacional

O ponto crucial para analisarmos a “Escola sem Partido” parece ser, para mim, um fato notório e óbvio. Tão notório e tão óbvio quanto o fato de que a vida do peixe é, a todo o tempo, envolta de água por todos os lados – quer o peixe perceba isso, quer não.

Esse fato tão evidente é: nosso sistema educacional é estruturado a partir de uma linha político-ideológica marcada e forte.

Não é por acaso que, na escola, seguimos um sistema de horários firmemente estabelecidos. Não é à toa que sentamos em carteiras enfileiradas, voltadas para um professor que, à frente, insiste em exigir o silêncio absorto dos alunos. Não é à toa que estudamos disciplinas que pouquíssima relação guardam com a vida cotidiana. Não é à toa que somos estimulados a competir, nem é à toa que, na escola, apenas algumas habilidades e apenas alguns tipos de inteligência humana são louvados.

Durkheim já detectava a existência de um “currículo escolar oculto”, consistente em regras e procedimentos disciplinares, estrutura hierárquica de autoridade, passividade dos alunos, distribuição de prêmio e castigo, etc [1]. Rudolf Lanz, o principal expoente da chamada Pedagogia Waldorf no Brasil, diz que as tendências hierarquizadas e verticais “do mundo adulto… dominam o ensino e a pedagogia no mundo inteiro. Mesmo onde não há totalitarismo político, reina o totalitarismo mental” [2].

O currículo escolar oculto tem uma estrutura próxima à militar. Altos sinos tocam. Os alunos vestem uniformes. A primeira aula começa muito cedo. O silêncio é valorizado. A insubordinação e o que se considera fracasso são punidos: advertência, expulsão e repetência são respostas a quem não cumpriu o esperado. As vozes particulares dos alunos tendem, assim, a ser abafadas. Forjam-se os corpos dóceis e úteis de que tanto falava Foucault – corpos dóceis e úteis que, saindo da escola e da faculdade, já estarão devidamente preparados para a submissão à rotina enfadonha do mercado de trabalho e, se optarem pelo caminho do funcionalismo público, às provas acéfalas dos concursos (já tratei do tema aqui).

Criticar é valorar. Jung ligava essa capacidade valorativa ao que chamou de função sentimento. A função sentimento é exatamente aquela que nos permite uma aproximação verdadeira do mundo – ou, na escola, dos conteúdos ensinados. Sem valoração, sem crítica, sem capacidade de avaliar os conteúdos como sendo bons ou maus, não é difícil saber (todos o sabemos por experiência própria) que nossa atenção se dispersa, nosso interesse voa para outros lugares. Pelo olhar morto do aluno passivo, passam fórmulas físicas, equações matemáticas, o holocausto judeu, valências dos elementos químicos, a Guerra Fria – e o mesmo olhar buscará, tempos depois, moldar-se, mais e mais, ao roteiro social ideal. Sem valoração e crítica, a formação do homem há de levá-lo à conhecida e incontáveis vezes repetida tragédia de uma existência sem autonomia e sem sentido.

Ninguém deveria ser a favor de qualquer espécie de doutrinação, seja da esquerda ou da direita. Pelo contrário: todos deveríamos ser ferrenhos defensores da autonomia. O grande problema acontece quando, erguendo a falsa bandeira da neutralidade, supostamente combatendo a doutrinação, tenta-se aniquilar a visão contrária – e a visão contrária é sempre a semente de qualquer senso crítico. A “neutralidade” propagada pela “Escola sem Partido” parece querer, na realidade, retirar de cena tudo o que pode atrapalhar o perfeito desenvolvimento do currículo oculto de que falava Durkheim. Tudo o que pode atrapalhar nossa conhecida estrutura de autoridade, regras e procedimentos disciplinares, hierarquia cega, passividade dos alunos, distribuição de prêmio e castigo, fomento à competição, desrespeito às individualidades etc. Tudo o que pode atrapalhar, enfim, a doutrinação oculta a que temos sido submetidos já há um punhado de séculos.

Alguns defensores da “Escola sem Partido” talvez ignorem o fato de que nosso sistema educacional está permeado, por todos os lados, de uma inclinação político-ideológica tão evidente quanto, ao peixe marinho, a água que sempre o envolveu. E, ao advogarem a “neutralidade”, nada fazem a não ser reforçar a ideologia desde sempre dominante. Nosso sistema educacional é absurdamente falho e todo pensamento a seu respeito é válido. O movimento“Escola sem Partido” tem o mérito de fomentar o debate; mas, criticamente, devemos concluir: a “Escola sem Partido”, em si mesma, [é] uma absurda contradição.


Bruno Amábile Bracco é Mestre e Doutorando em Criminologia pela USP, Defensor Público do Estado de SP, autor do livro “Carl Jung e o Direito Penal”.

REFERÊNCIAS

1 V. Biaggio, Ângela Maria. “Kohlberg e a ‘comunidade justa’: promovendo o senso ético e a cidadania na escola”, p. 6. V. ainda Durkheim, Emily. Moral Education.
2 Lanz, Rudolf. A pedagogia Waldorf, p. 79.

 

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