Quanto mais se sobe, mais se toca no fundo. A poucos quilômetros do Maracanã, as Olimpíadas terminam, e começa outra história. Suja e desesperada. O gueto é aqui, no topo de subidas estreitas, onde chega pouca luz e nenhum sorriso. Cidade na cidade, muros de tijolos quebrados que é difícil de imaginar que sejam casas. Uma em cima da outra, sem cercas. Nem mesmo as do desespero
Alberto Caprotti – Avvenire* / IHU
Não as chamamos de “favelas”, porque, aqui, é um termo que é considerado depreciativo. Mas estas o são, para todos. No Rio, preferem dizer “comunidade”. Que não dá a ideia e simplifica o drama. Para entender, é preciso subir. Dez, vinte enormes aglomerados de casas, talvez mais. É difícil contá-las em uma megalópole que nunca termina.
Cidade de Deus é o nome daquela que olha do alto para a Vila Olímpica, e faz você pensar em que Deus devem se agarrar aqueles que vivem sem sapatos e sem esperança. Depois, você lê os nomes das ruas: Rua da Luz, Rua do Evangelho. E você intui que a fé sempre supera toda degradação. Não é um sinal, não é uma bandeira com cinco círculos. Mas isso seria o mínimo, conta José Carlos de Paula, para todos Zezé, um homem grande que foi goleiro do Fluminense e atualmente é educador que, pela Action Aid, a organização internacional empenhada na luta contra as causas da pobreza e da exclusão social, tenta arrancar dos traficantes de drogas as crianças que, nas suas mãos, têm uma esperança de vida inferior aos 25 anos. Os 65.000 habitantes da Cidade de Deus vivem entre os zincos em ruas muito estreitas e sujas: e parte das fronteiras da favela são delimitadas por uma rodovia muito movimentada; assim, passa o desejo de ir embora.
Porém, as crianças aqui têm sorrisos desarmantes, e algumas delas constroem pipas coloridas para vender no centro. Aqui, entre fios desencapados e esgotos a céu aberto, de vez em quando, sobe algum carro “normal”, que chega dos bairros ricos da Barra. Pessoas que vêm para comprar drogas ou para contratar trabalhadores domésticos para as mansões com piscina que ficam a apenas alguns quarteirões.
“Os humilhados serão exaltados”, está escrito em um muro nas fronteiras Cidade de Deus, onde estacionam os carros da polícia. Eles controlam quem sai, aconselham para evitar fazê-lo aqueles que entram. Não há garantia de segurança além deste ponto.
No Rio, há uma unidade especial que lida com as favelas, a UPP (Unidade de Policia Pacificadora), mas esse câncer da cidade, de pacificado, tem pouco. Mas há um acordo em vigor com as gangues, um pacto de aço, enquanto durarem as competições olímpicas.
Ninguém o oficializou, obviamente, mas as pessoas sabem disso. O governo carioca pediu um mês de trégua: nada de assassinatos, nada de idas ao centro, nada de ataques, até que a tocha se apague. Em troca, o Estado renuncia aos seus direitos de impor a legalidade. Tranca-se do lado de fora e joga a chave fora.
“Mas estamos preocupados com aquilo que vai acontecer depois – continua Zezé –, quando as luzes se apagarem, quando esse pacto acabar…” Muitos, no Rio, fazem-se a mesma pergunta, contam os dias, e se preparam para o pior. A tensão social não vem apenas das favelas, e a grande manifestação organizada em frente ao Copacabana Palace, há poucos dias, confirma isso. Corrupção, a pobreza, desemprego em níveis sem precedentes e o governo transitório de Temer que as pessoas detestam.
Tudo isso arde debaixo das Olimpíadas desorganizadas e precárias do Rio, aos pés da Cidade de Deus. “O mais grave não é tanto a falta de espírito olímpico entre essas ruas miseráveis: é a ausência total de retorno social e de certos grandes eventos desportivos para a população pobre brasileira. Nenhum posto de trabalho na Vila Olímpica foi destinado aos moradores da favela, nenhuma infraestrutura a mais. Nenhum ingresso para as disputas, nem mesmo uma entrada grátis para os vários ensaios das cerimônias: foram todos para os ricos e para os políticos. E assim tinha sido nos anos passado para os Jogos Pan-americanos e para a Copa do Mundo”, conta Zezé.
Mais ao norte, mudam os números e, em parte, a degradação, mas a miséria continua. Na Rocinha, de acordo com o último Censo, vivem 69.000 pessoas: 150.000 de acordo com as associações locais. É a maior favela do Brasil e, talvez, da América do Sul. Ela se desenvolveu como os tentáculos de um polvo, abraçando o morro que, nos anos 1970, pela simples razão econômica, era uma terra que nenhum proprietário jamais reivindicaria.
Juliana Câmara, responsável pela Action Aid, que nos acompanha entre os becos, explica: “A prefeitura esconde os números verdadeiros para não ser forçada a levar os serviços básicos para a comunidade”; Mas os problemas não podem ser escondidos: “A favela aqui está nas mãos da facção Amigos dos Amigos, mas nós somos respeitados porque oferecemos um serviço à comunidade e, portanto, somos bem vistos”.
Rocinha significa “pequena fazenda”: há 80 anos, havia apenas isso. Hoje, só cresce lixo. As Olimpíadas, aqui, não estão ausentes, mas vivem de rabiscos, nos desenhos das crianças de uma creche que a Action Aid, com a contribuição do Comitê Olímpico Nacional Italiano (Coni) e dos patrocinadores italianos, reformou e acompanhou para dar alívio a essas crianças de grandes e de futuro pequeno.
“O legado social que esse Jogos vão deixar – continua Juliana – será mínimo. Aqui, falta tudo. Temos apenas quatro escolas primárias e, ao terminar as aulas, esses jovens deixam de estudar. A saúde pública não existe: três ambulatórios para 150.000 pessoas não são nada. As mulheres, as poucas que têm um emprego, quando dão à luz, devem abandonar o trabalho, porque não têm onde deixar os filhos.”
O governo, que, em teoria, investiu uma grande atenção aos problemas das favelas, tinha alocado um bilhão de reais em 2006 (300 milhões de euros) para melhorar a segurança e as condições de vida.
“Um dinheiro que nunca foi visto aqui, para obras jamais realizadas ou iniciadas sem terem sido concluídas. A Rocinha processou o Estado do Rio para saber que fim tiveram esses financiamentos, quem os embolsou sobre a pele das pessoas que aqui morrem de fome e de violência. Mas o processo já têm anos e não importa a ninguém…”
As Olimpíadas não sabem, não sentem. Mas chegou justamente da favela a primeira medalha de ouro do Brasil. A de Rafaela Silva, no judô. Em lágrimas e envolvida na bandeira verde e amarelo, ela contou orgulhosamente a sua vida de jovem na rua: “Eu era uma menina em um lugar sem objetivos de vida e agora sou uma campeã olímpica. Mas eu digo a vocês: sou sempre uma moradora da Cidade de Deus”.
Em Copacabana, a música toca forte. Os Jogos da disparidade continuam.
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*Tradução é de Moisés Sbardelotto.