Necessidades básicas. Basta sua satisfação ser prevista em lei?, por Jacques Távora Alfonsin

No Sul21

 A turbulência política sob a qual vive o Brasil desde 2014 tem reduzido bastante o espaço de discussão da sociedade civil sobre assuntos do seu interesse imediato, como os das garantias devidas à boa convivência humana nas cidades. A Constituição Federal já completou quase 28 anos, abrigou um capítulo inteiro para isso (artigos 182 e 183) e determinou a elaboração de uma lei posterior que o regulamentasse.

Depois de um longo período de muito debate, essa lei (10.257 de 2001, denominada Estatuto da Cidade) está completando agora 15 anos e a 6ª Conferência nacional das cidades, prevista para ser realizada entre 5 a 9 de junho de 2017, pretende fazer uma avaliação crítica dos seus resultados práticos sob um lema ambicioso: “função social da cidade e da propriedade: cidades inclusivas, participativas e socialmente justas.”

A repetida lembrança da função social da propriedade, desde 1934 introduzida nas Constituições brasileiras, ganhou em 1988 esse importante reconhecimento de que as próprias cidades têm uma função dessa espécie, o que pode inspirar um evento como o da 6ª Conferência a conferir em que medida essas funções tem-se refletido, eficaz ou ineficazmente, “no bem estar dos habitantes” das cidades, de acordo com o artigo 182 da Constituição; no reconhecimento do direito de propriedade urbana, somente quando o seu exercício está sendo feito “em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”, como determina o parágrafo único do primeiro artigo do Estatuto da Cidade; “assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”, conforme impõe o artigo 39 da mesma lei.

Dessas três disposições de lei, a do artigo 39 do Estatuto da Cidade parece suficiente para alimentar quase toda a 6ª Conferência, se a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos forem objeto de corajoso e decidido enfrentamento sobre as causas pelas quais o direito de moradia, por exemplo, reconhecido como direito humano fundamental social no artigo 6º da Constituição Federal, pela Emenda 26 de 2000, ainda sofre para ser acessado por milhões de brasileiras/os. A velha distância dos direitos sociais previstos em lei não ultrapassarem sua letra prossegue fazendo vítimas quantas pessoas são suas titulares…

O francês padre Lebret, em meados do século passado, quando a guerra fria ainda dividia o mundo entre duas potências (Estados Unidos e União Soviética), tratou de identificar como as necessidades básicas eram tratadas por uma e outra. Desde “Suicídio e sobrevivência do Ocidente” até “Princípios para a ação”, ele advertia como a satisfação dessas necessidades deveria obedecer uma hierarquia de prioridades. Francisco Whitaker recordou o fato, numa entrevista concedida ao IHU notícias, na última sexta-feira:

“Lebret inclusive fazia uma análise do problema das necessidades. Segundo ele, havia as necessidades básicas, que têm que ser atendidas de qualquer maneira pelo governo; as necessidades de comodidade, que podem ser atendidas desde que as primeiras sejam atendidas; e as necessidades de superação, que fazem com que se viva em um patamar de humanidade maior. Ele dizia que desenvolvimento é a passagem de uma fase menos humana para uma fase mais humana, e é esse sentido humano que pode ser aperfeiçoado sempre, em uma perspectiva de solidariedade, de vida coletiva respeitosa e isso levaria, de fato, a felicidade às pessoas.”

Para quem se preocupa com função social de qualquer direito ou instituição, um ensinamento como esse, óbvio mas esquecido pela chamada pós modernidade pode servir de motivação para ser rediscutido. É o que parece estar inspirando a Defensoria Pública do Estado de São Paulo a promover um seminário, a partir de segunda-feira dia 15 deste agosto, para lembrar os 15 anos do Estatuto da cidade, no qual uma das Mesas de debate tem esse tema provocativo: “O descumprimento da função social da propriedade como violação de direitos humanos fundamentais sociais.”

Trata-se de questionar, pois, aquela interpretação tradicional da função social da propriedade como uma simples hipótese de exercício desse direito a cargo do seu titular, uma obrigação que ele cumpre ou não cumpre, tudo parando por aí. Agora, como integrado nas funções sociais da cidade, esse direito pode e deve ser visto como já aconselhava José Afonso da Silva, um pioneiro do Direito Urbanístico brasileiro, não só como planejado (Plano diretor condicionante do seu exercício, como determina a Constituição) mas também como justificado, ou seja, sujeito a ser impugnado se lesar direitos sociais alheios, respeitado o próprio nome da sua função.

Tanto o Seminário da Defensoria Pública de São Paulo, quanto a 6ª Conferência Nacional das Cidades estão capacitadas para empoderar lições antigas e novas sobre função social e a necessidade básica da moradia, quando não satisfeita pelo descumprimento daquela função, como uma gravíssima violação de direito. Tendo como base um novo paradigma de interpretação da nossa realidade e do nosso direito, uma e outro tão fiéis a ideologias privatistas contrárias a dignidade humana do povo pobre sem-teto. Esse é sujeito de um direito indispensável à sua própria vida, a urgência do seu atendimento impondo não continuar apenas esperando por uma hipotética satisfação futura. A casa é para hoje e não para amanhã.

Imagem: “O descumprimento da função social da propriedade é uma violação de direitos humanos fundamentais sociais”. (Foto: MTD Sapiranga/Divulgação)

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