O legado de Woodstock continua vivo

Por Pedro Ferreira, no Esquerda.net

A data de 15 de agosto de 1969 pode já estar perdida na memória dos tempos. No entanto, foi neste dia que há 47 anos teve início o Festival de Woodstock, na cidade de Bethel, estado de Nova Iorque, e que acabou por ficar na História como um marco para todos aqueles que quiseram mudar o mundo, eliminando as guerras, a discriminação racial e sexual e as desigualdades.

A música foi a “arma” que revestiu a atmosfera deste icónico evento. Uma utopia que, no entanto, deixou raízes e rasgou os horizontes daqueles que no presente não desistem de lutar por um futuro diferente.

“Paz e Amor”, são as expressões que melhor definem Woodstock. Naqueles três dias marcados por um tempo instável, o festival levou até à propriedade de Max B. Yasgur cerca de 500 mil pessoas, na sua maioria jovens, sedentos de música, cansados do consumismo e do individualismo que acabavam por ser um espartilho à liberdade de todos os que não se reviam nos alicerces de uma sociedade onde o espaço para a generosidade e a partilha era cada vez menor.

Vivia-se a guerra, a longa guerra do Vietname que tendo começado na década de 50 só terminaria em 1975 com a derrota do exército norte-americano. Por essa altura, milhares de jovens davam a vida no sudeste asiático num conflito que deixou marcas profundas em várias gerações.

Foi também por essa razão que Woodstock se realizou e para alguns a dimensão que ganhou – inicialmente estava prevista uma assistência de 50 mil pessoas – esteve relacionada com as exigências que ali foram feitas para se colocar um ponto final na guerra.

Ávidos de liberdade

A verdade é que apesar dos problemas relacionados com o número elevadíssimo de pessoas que acorreu ao festival, não houve desacatos. Woodstock que acabou por se tornar num enorme movimento de celebração da liberdade e de contestação a todas as formas de opressão acabou por ganhar a simpatia de pessoas de meia-idade e mesmo mais velhas e também de trabalhadores das mais variadas áreas que se disponibilizaram para ajudar na organização do festival sobretudo quando a avalanche de gente ameaçava não ter fim. Há quem afirme que cerca de um milhão de pessoas ficou nas redondezas do recinto porque este se encontrava lotado.

As pessoas, sobretudo os mais novos, estavam ávidos de liberdade. Uma liberdade sem entraves, sem as barreiras da hipocrisia e as grilhetas de um sistema decrépito que as empurrava para onde elas não queriam ir.

Não foram só hippies que lá estiveram. Foi gente que nascida em famílias que ainda tinham sido apanhadas pelo horror da 2ª Guerra Mundial, estavam de novo a viver um conflito depois de muitas delas terem despertado para uma nova realidade através dos ventos que sopraram de Maio de 68.

E se é certo que alguns terão interpretado de forma excessiva a máxima “é proibido proibir”, há também que dizer que devido à importância que o festival ganhou a chamada indústria do dinheiro fácil criou uma série de mitos em torno do mesmo, alguns dos quais estão longe de corresponder à realidade porque este foi muito mais do que um mega encontro de “sexo, drogas e rock”.

“Foi sem sombra de dúvida uma enorme manifestação de contestação com uma natureza política muito vincada”, afirma Mário Caldas, médico reformado, que em 1969 andava envolvido nas lutas estudantis contra o regime fascista.

“É para mim evidente que o poder político norte-americano abanou com Woodstock tanto mais que não tinha respostas para dar aos jovens fosse em relação à guerra, fosse em relação a outros aspetos que colocavam sob tensão aquela sociedade”, sublinha.

Para Mário Caldas, o festival não mudou o curso da História mas abriu novas expetativas trazendo para a ribalta questões que até ali estavam quase ausentes do pensamento e do debate entre as pessoas”.

Neste sentido, o médico de 71 anos, recorda as questões ambientais que começaram a estar no centro das preocupações de muitos e também uma rejeição ainda mais forte ao capitalismo gerador de desigualdades e naturalmente à guerra do Vietname que na sua opinião foi o catalisador que arrastou toda aquela gente para o festival.

“Os músicos que passaram por lá durante três dias deram um contributo enorme para o sucesso do mesmo mas a maioria das pessoas queria mais, acima de tudo pressentia-se a avidez pela liberdade que se expressou na revindicação de formas comunitárias de vida, ou até pela sua atitude perante nudez que muitos assumiram como natural ou pelo consumo de drogas”, sublinha, acrescentando que “ houve atos de liberdade e provocação que assustaram os poderosos e desta forma houve uma clara intenção de denegrir Woodstock remetendo-o para a condição de festival de música povoado por marginais ou então como um golpe de marketing para os organizadores ganharem dinheiro. Isso foi dito e escrito por alguns”, recorda.

“Mas felizmente não foi esse a marca que ficou nem o legado que ele nos deixou”

Mário Caldas refere que um dos momentos altos de Woodstock foi indubitavelmente quando o virtuosismo de Jimi Hendrix o levou a tocar o hino norte-americano arrancando sons semelhantes aos de bombas a rebentar. Por detrás da música havia um cenário sonoro de guerra.

“Atendendo ao momento que se vivia, não há melhor mensagem de paz do que a protagonizada pelo Hendrix”, afirma.

O médico português não esteve no festival mas acompanhou-o na medida do possível tendo em conta que Portugal era um país muito fechado e vigiado e a imprensa da época colocou-o apenas como mais um festival de rock “à americana” expurgando-o de toda a sua carga política e de contestação.

“Valeu-me um amigo e futuro colega que estava a fazer uma especialização precisamente em Nova Iorque e conforme me disse ainda conseguiu ir espreitar o festival”, refere.

“Falámos algumas vezes por telefone com os cuidados necessários porque eu andava metido em confusões mas quando ele chegou uns seis ou sete meses depois passámos algumas horas em conversas sobre a sociedade norte-americana em geral e sobre a importância do festival”, recorda.

“O Sérgio (nome do amigo) era uma pessoa muito idealista e um dia chegou a dizer-me isto: “Ó Mário, vamos fazer algo semelhante a Woodstock para rebentar com a guerra colonial e com o regime. E eu tive que o fazer descer à terra e dizer-lhe que Portugal estava muito atrasado em termos de consciência política e por isso a ideia era irrealizável”.

“Vontade não me faltava mas fazê-lo é que teria sido a utopia das utopias. Eu, como muitos, pressentia que a liberdade ia chegar a tempo. Infelizmente já não apanhou o meu amigo que morreu dois anos antes num acidente”.

Novos valores

Quando o festival chegou ao fim (no dia 18), houve muita gente que começou a interrogar-se sobre o que via à sua volta e se não era possível abrir caminho para uma sociedade marcada por outros valores. A partir daquele momento começaram a ganhar vida movimentos contra o consumismo e o léxico do cidadão comum ganhou novas palavras como sustentabilidade, autossuficiência, entre outras.

O movimento hippie ganhou adeptos e mais do que isso conseguiu consciencializar as pessoas para a necessidade de alterar padrões de vida que eram tidos como vitais mas eram afinal desnecessários.

“Independentemente de todos os problemas e dos avanços e recuos que fazem parte da História da Humanidade, não é exagero dizer que se hoje estamos onde estamos ficamo-lo também a dever a esse movimento e a Woodstock”, afirma Mário Caldas.

Falar hoje de liberdade sexual, de direitos sociais, de igualdade de género ou de políticas ambientais são passos que ganharam um vigor extraordinário após Woodstock”, acentua Mário Caldas, finalizando com um desafio: “Se calhar a malta mais nova tem de voltar a pensar em fazer algo do género daquilo que fizeram os seus pais ou avós para continuar a abrir os caminhos da liberdade plena. Que a meu ver, não tem nada de utópico. Fica o repto”.

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Entre 15 e 18 de agosto de 1969 passaram pelo Festival de Woodstock vários músicos ou bandas como: Richie Havens, Sweetwatter, Ravi Shankar, Melanie, Joan Baez, John Sebastian, Santana, Grateful Dead,Creedence Clearwater Revival, Janis Joplin, The Who, Joe Coker, Ten Years After, Crosby, Stills, Nash & Young, Jimi Hendrix, The Band, Blood, Swett &Tears, Santana.

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Joan Baez: “We shall overcome”

Jimi Hendrix: o hino estadunidense revelado em bombardeios

Janis Joplin: “Try (Just a Little Bit Harder)”

Woodstock teve um cunho político inquestionável. Foto: Burk Uzzle.

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